Max Bittencourt


Foto: Terje Sollie/Pexels/Creative Commons

O verdadeiro lugar de aprender, se é que há um só, é a criação de oportunidades de convivência entre os sujeitos, na compreensão e no aproveitamento das suas diferenças. Pessoais, sociais, culturais, como forma de enriquecer e multiplicar estímulos, imagens, alternativas. De convivência e de realizações.

Reconhecer e aproveitar a tão falada diversidade vai mais além de tolerar as diferenças dos outros. Vai na trilha de valorizar, de fato, algo que, inicialmente, possa até ser ou parecer desagradável ou menos importante. Criar ou se deixar surpreender por algo ou alguém desconhecido ou diferente, passa por poder gostar de se desconstruir e se reconfigurar a partir da diferença, mais ou menos forte, do outro em sua relação consigo mesmo.

Esta é a primeira grande lição para o indivíduo que participa de um projeto audiovisual, coletivo e colaborativo por natureza: a compreensão do outro. Esse trabalho força-o a aprender a conviver e a entender, às vezes até profundamente, em alguns aspectos, o Outro. Do contrário, não se consegue fazer o filme, dirigir o ator,  pensar na luz. A partir de sua relação com outras realidades e outras individualidades na realização de tarefas, na resolução de problemas, nas discussões criativas ou nas tomadas de decisão, a interação entre os envolvidos no projeto configura-se em parte fundamental da mecânica de funcionamento de uma produção, porque só o diálogo comunica. 

Na medida em que ocorrem as situações, ou os problemas de produção se apresentam, o diálogo intensifica-se entre os diferentes integrantes do grupo, que reagem a eles de formas distintas umas das outras; essa reunião de esforços, oriunda de diferentes individualidades em favor de um objetivo partilhado, instaura um dinamismo nas relações que favorece a interação e o diálogo multissensoriais.

Promover relações grupais pode propiciar uma oportunidade para o exercício da colaboração e o ambiente da produção audiovisual, acadêmica ou profissional, conforme já posto, é forçosamente colaborativo e cooperativo, já que propõe relações nas quais os sujeitos interagem uns com os outros, trocam entre si, em condições mais ou menos de igualdade.

Num contexto onde todos são considerados iguais em importância e responsabilidades é possível descobrir as diferenças entre si, pois se colocar no lugar do outro, conhecê-lo, é fundamental para convencê-lo a respeito de uma ideia, como, por exemplo, quanto à definição da proposta visual do filme, ou à condução do roteiro, ou à elaboração de uma decupagem técnica. Esse esforço em sair de si para conhecer o Outro, de sensibilizar-se perante o Outro, é necessário, inclusive, para a dissolução do egocentrismo, que, em muitas circunstâncias, pode minar relações e interferir na obra em processo.

No ambiente colaborativo e cooperativo da produção audiovisual acadêmica, espera-se do estudante iniciativa e autonomia, porém quem conhece os objetivos pedagógicos das disciplinas e das ações propostas ao grupo é o docente, que não tem a sua importância, influência e autoridade (não autoritária) diminuídas nesse processo, pelo contrário.

Ele, professor, continua como o coordenador do processo educacional do estudante porque, dentro do programa da disciplina, ele sabe onde pretende chegar. O que muda é que não é mais o docente quem determina tudo dentro da sala de aula, nem o que estabelece as regras sozinho. Assume-se uma posição dialética que busca equilibrar as relações; e essa abordagem do processo requer a construção dessas relações, que se baseiam no respeito mútuo e na reciprocidade. 

Então, levar em consideração o ponto de vista do estudante e valorizar sua criação passam a ser estratégias didáticas neste processo, que, com isso, almeja estimular a iniciativa criativa e operacional no estudante. Como quando um diretor pede que seu assistente decupe ou dirija uma cena.

Certamente, esse assistente ficará inseguro e preocupado com suas ações no sentido de cumprir essa determinação, afinal estará tomando decisões e criando no lugar do diretor e responsabilizando-se pelo trabalho feito. Este estudante precisa entregar a tarefa, e para isso utiliza seus conhecimentos teóricos aplicados à prática, observando as características do produto ou da obra, seu público e suas demandas de produção.

Mas o mais importante é que este estudante, obtendo êxito no trabalho ou não - com a ajuda de um profissional mais experiente, mas que, neste projeto, possui o mesmo grau de importância que ele - estará desenvolvendo novas habilidades e novos conhecimentos, indispensáveis para todo e qualquer indivíduo hoje em dia, seja no nível acadêmico, seja nas suas interações sociais ou no trabalho, como a criatividade, a autonomia, a iniciativa para tomar decisões, a visão crítica do mundo e a compreensão das diversidades.

Produzir figurinos, montar cenários, ensaiar com os atores, buscar locações para as filmagens, operar uma câmera, definir a estilística, o conceito de uma obra ou  dirigir um filme deixaram de ser práticas apenas de profissionais de cinema e audiovisual. Entretanto, o aprendizado adquirido nesse trajeto acadêmico pelo estudante é significativo e determinante no desenvolvimento do discente.

O percurso de formação acadêmica em produção audiovisual, em tese, busca preparar o produtor audiovisual para o dia a dia da produção de obras ou peças audiovisuais. Entretanto, pela natureza da atividade, acaba por prestar uma importante contribuição também na formação humana de um indivíduo que pode ser mais sensível e agir com mais empatia.

São dinâmicas que se desenvolvem em um processo educacional horizontalizado e democrático, em que todos os envolvidos têm o mesmo nível de importância e responsabilidade dentro do projeto. Isto porque não deixa de haver, na estrutura interna de uma equipe de produção cinematográfica ou audiovisual, uma certa hierarquia entre seus integrantes, suas funções e departamentos.

As situações estabelecidas pelos grupos durante o processo criativo de realização dos trabalhos acadêmicos (as obras audiovisuais) naturalmente deslocam o foco do saber do professor para a coletividade, ou seja, o discurso dos estudantes, envolvidos na atividade proposta, ganha expressão nos trabalhos realizados. Nesta “sala de aula”, todos são sujeitos de um processo mútuo de construção de conhecimento, professor e estudantes.

A experiência de produzir um filme ou qualquer obra audiovisual requer uma associação entre a criatividade e o pensamento lógico e racional. Existe a construção da fotografia do filme, mas existe também a necessidade de cumprimento de um cronograma e de um determinado número de cenas para gravar em uma diária de filmagem.

Todas as decisões e tarefas executadas durante a produção audiovisual são planejadas com bastante antecedência. São disponibilidades de agenda, orçamento de produção, aluguel de equipamentos, cronograma de produção, uma série de elementos que devem ser considerados ao se iniciar uma produção.

Nesse sentido, o estudante desenvolve um senso de responsabilidade e engajamento ao vivenciar a prática de seu futuro ofício, traduzido na forma como dá conta das tarefas sob sua responsabilidade; familiariza-se com os códigos e regras desse campo e, através da observação e atuação prática, assim como também da observação permanente, feita tanto pelo professor quanto muitas vezes pela própria equipe, ele aperfeiçoa, criticamente, tanto sua prática e atitudes quanto determinados conceitos, vistos em algum momento também na sala de aula, de maneira meramente expositiva e passageira, como a composição da imagem cinematográfica, produção de cena ou montagem, para citar alguns.

Por exemplo: ao posicionar a câmera e procurar o plano ideal, o estudante, obrigatoriamente, racionalmente ou instintivamente, é levado a pensar em questões como a regra dos terços ou o ponto de fuga; deve saber, tecnicamente, como distribuir as informações no quadro significativamente, relacioná-las ao contexto da cena. Ao filmar um diálogo, deverá preocupar-se com o “pulo” de eixo de ação e com a continuidade.

A aplicação do conceito à prática, nesse instante, torna-se uma verdadeira aula in loco sobre planos de câmera, pois até alcançar um resultado definitivo sobre o plano a ser filmado, e antes do “ação”, o estudante-diretor investiga outras possibilidades de composição do quadro, a partir do assunto a ser registrado, suas especificidades, tema da obra, perfil do público espectador, entre outros fatores que direcionam seu trabalho criativo e seu olhar. 

E a aprendizagem desta seqüência de comportamentos necessários é um passo a passo, que, além de ser aprendido por imitação e observação, é complementado por explicações – seja do professor ou do orientador – ao estudante, acompanhada muitas vezes de uma atenção especial durante o momento em que ele vai fazer por si mesmo. Uma supervisão próxima, continuada e personalizada, como, aliás, é a maior parte das aprendizagens do campo das artes; mal comparando, como as corporações de ofício.

O estudante, no mesmo contexto em que aprende, por exemplo, a enquadrar uma imagem, desenvolve, simultaneamente, a consciência crítica e apura o seu senso estético; relaciona-se com conceitos como forma, volume, cor, luz, movimento, ritmo, profundidade e perspectiva; ao testar o ator, deve dominar o perfil das personagens da história que se quer contar e saber como transmitir essas informações ao ator que está prestes a dirigir.

No teste de elenco, características psicológicas e físicas são importantes, mas algo de imponderável ocorre em cena em determinadas atuações, e sentimo-nos atraídos por um ator ou atriz em especial. Aquele material humano apresenta em si nuances da personagem que, em muitos casos, na hora de filmar interessam mais ao diretor do que a aparência física ou o próprio desempenho do ator no teste para a câmera. O estudante-diretor deve estar sensível a isto na hora de fazer suas escolhas.

Então, o estudante é levado a desenvolver sua sensibilidade no trato com os atores e na consciência que terá de ter sobre si mesmo e sobre suas preferências, mesmo que não haja explicação para suas escolhas. Uma postura crítica acerca do trabalho do ator, das propriedades da personagem para qual o ator está sendo testado, ou dirigido, bem como suas motivações, as evidentes e, sobretudo, as interiores, facilitam, tanto a direção quanto a escolha do ator certo para o papel.

Com certeza é necessário testar todos os atores que estiverem presentes, pois o jogo pode mudar a qualquer momento. Além do mais, trata-se de uma questão de respeito pelo ator, que respondeu à convocatória e compareceu ao teste. No nosso caso, a palavra consciência crítica não abarca simplesmente o domínio racional da palavra na discussão; mas sim o domínio dos instrumentos e formas de se lidar com o fazer fílmico.

O estudante-diretor e o professor-orientador precisam estar atentos ao desenvolvimento desse tipo de olhar, o olhar cinematográfico do estudante. Não se está aqui falando do olhar do ponto de vista da percepção visual, que é um dado para cada ser humano. Fala-se da visão treinada, que de forma mais ou menos automática aprende a manejar os instrumentos da visualidade fílmica como um pintor, que ao manejar seus pincéis não pensa neles.

Aprender a ver é componente essencial para o realizador audiovisual, seja na escolha de uma locação, na definição de um plano de câmera ou na direção de atores. O professor-orientador deve poder apresentar ao estudante de produção audiovisual um vasto material artístico, como a pintura, a fotografia, o próprio cinema, a fim de apurar nele o senso estético, a percepção e a atitude crítica exigidas de um profissional do audiovisual no dia-a-dia da produção, mas também desse indivíduo frente às questões da vida.

O contato com outras existências o faz distinguir e reconhecer seu contexto de vida face a outras realidades, outras formas de ser, de agir e de enxergar as coisas. Essa atitude reflexiva, e crítica, de pensar sobre si e sobre a sua realidade, parece fazer nascer nele a necessidade de se colocar como sujeito de sua própria história no mundo. Somente quando chegamos aqui, sinto que o trabalho foi feito.

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