Cena do filme Noites de Cabíria
  Noites de Cabíria
  Cena do filme de Federico Fellini

Sexo na pandemia
por  Doris Pinheiro e Alberto Oliveira

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sem proteção
As mulheres invisíveis

Elas são garotas de programa, meretrizes, messalinas, michês, mulheres da vida, prostitutas, trabalhadoras e profissionais do sexo, como descrito desde 2002 na Classificação Brasileira de Ocupações-CBO, do Ministério do Trabalho e Emprego.

“Trabalham por conta própria, em locais diversos e horários irregulares. No exercício de algumas das atividades podem estar expostas a intempéries e à discriminação social. Há ainda riscos de contágios de doenças sexualmente transmissíveis e maus-tratos, violência de rua e morte”, destaca a CBO.

Na União Europeia foram reconhecidas na Alemanha, Áustria, Grécia, Hungria e Holanda, mas  têm sua atividade proibida na Lituânia e Romênia.

Na Islândia, Finlândia, França, Noruega, Suécia e em algumas partes do Reino Unido (Escócia e Irlanda do Norte) os clientes são criminalizados, assim como nos Estados Unidos, onde policiais femininas se disfarçam de prostitutas, nas ruas, para prender em flagrante homens que as procuram.

Desde o ano 1.100 antes de Cristo (portanto, há 3.120 anos) a sociedade tenta impedir o exercício da prostituição, ou tornar essas mulheres invisíveis. 

Os assírios foram os primeiros a criar regras de conduta para elas, proibindo as prostitutas de usar o véu, um símbolo de submissão da mulher. Quem descumpria as normas podia receber 50 chibatadas, além de ter piche derramado sobre a cabeça.

Na Roma Antiga, pagavam impostos por sua atividade, e no século XII foram proibidas de acusar outras pessoas de praticarem qualquer tipo de crime contra elas. Um decreto assinado por Luís IX em 1254 expulsava as prostitutas das cidades e aldeias francesas, e confiscava seus bens.

Nos Estados Unidos a prostituição foi colocada na ilegalidade em 1918 e, no final da década de 1920, na Rússia, com a chegada de Stálin ao poder, eram acusadas de “parasitismo”, sendo levadas a campos de trabalho forçado.

No Brasil, hoje, a atividade de se prostituir não é considerada ilegal, mas o seu incentivo e a contratação de mulheres para que atuem como prostituta são crimes.

"A prática da prostituição não pode ser ignorada, como se não tivesse importância na costura do tecido social. O caminho desejável a um Estado Democrático de Direito é, também, o de pôr fim aos estigmas sofridos por essas mulheres. E, principalmente, é dever do Poder Público parar de tratá-las como se invisíveis fossem, em especial, junto à Justiça do Trabalho, até porque a conduta, em si, não é ilícita, nos termos do Código Penal Brasileiro", destaca o artigo "As Profissionais do Sexo e a Justiça do Trabalho", de Maria Celeste Simões Marques e Lilian Samantha Vasconcelos Gomes.  

Em vídeo postado no Instagram, a blogueira Clara Aguilar Daga, que trabalha com sexo e se sente discriminada por isso, pergunta: "Até quando as mulheres vão ser julgadas por trabalhar com sexo, por fazer sexo?". O fato de ser uma boa pessoa, uma boa filha, uma boa mãe "é totalmente anulado", disse. E pediu: "Se você gosta de assistir pornografia, humanize as pessoas que trabalham nisso".

Mercado de escravos sexuais na Roma Antiga
Pintura de Jean-Leon Gerome
Mercado de escravas sexuais na Roma Antiga

Célia Gomes, coordenadora da Cuts-Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais queixa-se contra a inexistência de uma política pública, exige respeito e pede mais engajamento por parte das profissionais do sexo. "Que elas se mostrem, para que saibam que existimos e resistimos a qualquer tipo de preconceito e discriminação, que a luta continua para sairmos da invisibilidade, porque trabalho sexual também é trabalho. Temos CPF e Identidade, pagamos impostos como todo e qualquer trabalhador."

A cartilha "Sem vergonha, garota. Você tem profissão", distribuída pelo Ministério da Saúde, destaca: "Ser garota de programa não é crime. O seu trabalho é digno e você não precisa explicar para ninguém o que você faz: isso é assunto seu e de mais ninguém". 

"A prostituição se apresenta onde o povo está, por onde o povo transita", lembra o texto "A prostituta, o vírus, a cidade" de Soraya Silveira Simões, Laura Murray, Patrícia de Moura e Silva Toledo, Thaddeus Gregory Blanchette e Ana Paula Silva.  "Ou ela mesmo cria desvios para que o povo possa querer, vez por outra, mudar de caminho."

Mas o risco de contração da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, levou ao fechamento de zonas de prostituição, hotéis, motéis, bares, restaurantes, boates e postos de combustíveis nas rodovias. 

Fora das ruas, por causa do isolamento social provocado pela pandemia, essas mulheres estão ainda mais "invisíveis" e desprotegidas. "Aos olhos da sociedade é como se elas não existissem", diz Célia Gomes.

A Covid-19 expõe "as fragilidades e os preconceitos das estruturas estatais, sobretudo, agora, para o cuidado com idosos e trabalhadores informais", destaca o texto "A prostituta, o vírus, a cidade"

No caso de mulheres prostitutas, a situação é "bastante dramática",  de acordo com Soraya Silveira Simões, coordenadora do projeto Observatório da Prostituição, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Principalmente para aquelas que trabalham em ruas, casas de massagem, boates, assim como para outros trabalhadores do setor de serviços, em particular de cuidados com o corpo. 

"Ficamos entre o coronavírus e a fome", diz Célia Gomes, da Cuts, que tem tentado ajudar, fornecendo cesta básica de alimentos, álcool em gel e máscaras de proteção facial. 

Soraya Simões defende o reconhecimento institucional. "Isso implica em reconhecimento territorial, ocupacional, e de gênero, direito à cidade, entre tantos outros, e em políticas capazes de reduzir as inúmeras vulnerabilidades dos sujeitos que lutam por esse reconhecimento."  

Sem ajuda dos poderes públicos e com os clientes preocupados com a contaminação por coronavírus,  L*, indígena quilombola de Alagoas, passou a cobrar cada vez menos, para se sustentar. "Chego a aceitar apenas R$ 20".

A maranhense L* M*, de  48 anos, mora na Paraíba, tem 33 anos de profissão e curso superior em Ciências Contábeis. Está parada desde março. "Como podemos nos proteger, manter o distanciamento? E sem trabalho, como faremos para nos sustentar, como iremos pagar as contas?", pergunta, criticando a falta de atenção por parte do governo.           

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Cena do filme Viver a Vida
  Viver a Vida
  Cena do filme de Jean-Luc Godard

Manicures, depiladoras e outras trabalhadoras que se ocupam dos serviços de cuidados com o corpo têm conseguido ajuda diretamente de alguns clientes. É o que aconteceu com a colombiana M*, massoterapeuta em Salvador. "Um cliente está me ajudando a pagar o aluguel", disse.

No caso das prostitutas, isso ocorre com menos frequência. 

Lourdes Barreto, do Gempac-Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará e da Rede Brasileira de Prostitutas, interpreta esse dado como uma mudança na própria prostituição. "A migração das esquinas para o ambiente digital afetou as diversas formas de sociabilidade nas cidades e, com isso, o estabelecimento de laços mais ou menos duráveis marcados por relações de confiança", segundo Lourdes Barreto, citada no texto sobre o vírus e a prostituição.

A*, paraibana, 49 anos, curso superior de Serviço Social, confirma que algumas profissionais têm recebido ajuda de antigos clientes. "Mesmo não havendo contato nos ofertam uma cesta básica, um botijão de gás, por um laço de amizade que ficou."

O olhar do governo inexiste, queixa-se. "É um governo muito voltado aos princípios religiosos, mas as regras que precisamos seguir são as da Constituição", disse, reividincando auxílio direto às profissionais do sexo. "Somos pilar de sustentação dos nossos filhos e netos", reforça, sentindo-se "de fora de uma participação que dê a garantia mínima de sobrevivência". 

Ela pede políticas públicas que deem ao trabalhador sexual alternativas, condições de alcançar outra forma de sobrevivência e destaca o que considera descaso social. "Para o setor de saúde somos apenas objeto de pesquisas e nem mesmo os resultados desses estudos chegam até nós", observa. 

"Está sendo muito difícil", repete, em Natal, a cearense Denise R*, 47 anos, mãe de uma adolescente que sonha em ser veterinária. "Tenho aluguel, água, luz e internet e mesmo recebendo o auxílio emergencial e algumas cestas básicas isso é insuficiente."  

Para pagar as contas ela passou a se exibir em sites de sexo virtual. "Minha filha mora comigo e, para trabalhar, no quarto, tenho que deixar o som ligado, para ela não perceber."   

Em abril, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, lançou uma cartilha com orientações e informações sobre como se proteger e prevenir o contágio da Covid-19.

Em um dos trechos, destaca os trabalhadores autônomos, profissionais do sexo e pessoas sem renda fixa, reconhecendo que são os mais prejudicados durante as recomendações de quarentena. "Mas não é na crise que nascem as boas ideias? Se tiver que trabalhar, converse com seus clientes, tente a opção do serviço virtual", aconselha. 

Quem está ajudando

Em Salvador, a  Aprosba – Associação das Profissionais do Sexo da Bahia – conseguiu cestas básicas através do GAPA-Grupo de Apoio à Prevenção à Aids, da organização Força Feminina, que é de freiras, da RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e da Redtrassex - Rede Latino Americana de Profissionais do Sexo. A Aprosba enviou alimentos para três bordéis de Salvador.

Em Belo Horizonte, a Associação das Prostitutas de Minas Gerais discutiu com os donos de hotéis da rua Guaicurus uma ajuda para as prostitutas que estão em isolamento social nos quartos alugados. Elas estão recebendo refeições oferecidas pelos hoteleiros e atendimento de saúde por médicos conveniados com a associação. Algumas mulheres receberam passagens passagens para voltar a suas cidades de origem.

Outras mulheres, no entanto, estão se arriscando nas calçadas da Avenida Afonso Pena, à espera de clientes. 

Em Belém, o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, cadastrou pouco mais de 100 mulheres que trabalham na região central da cidade – Campina e Ver-o-Peso –, para receberem cestas básicas. 

Um canal virtual foi aberto para facilitar a comunicação com prostitutas que necessitam de apoio e não sabem como acessar o auxílio emergencial  dos governos federal e estadual. 

Em São Paulo, as prostitutas que trabalham na região representam uma faixa extremamente precária do comércio sexual, sendo composta principalmente por mulheres acima de 50 anos de idade para as quais a prostituição é a única fonte de renda. 

Como a sede da ONG Mulheres da Luz e o Parque Jardim da Luz (onde ficam) estão fechados, por causa da pandemia do novo coronavírus, as mulheres estão com dificuldades para receber mantimentos e outras doações. Esse tipo de ação passou a ser centralizada na sede de outros grupos, como o grupo de teatro Cia. Pessoal do Faroeste, que recebeu sabonetes e cestas básicas para distribuição aos habitantes das ruas da região. 

Em Campina Grande, todos os pontos de encontro estão fechados. As mulheres que têm telefone cadastrado no Centro Informativo de Prevenção Mobilização e Aconselhamento aos Profissionais do Sexo, associação de prostitutas formada em 1989, estão recebendo cestas básicas e encaminhamento para receberem auxílio federal e estadual. 

Em Recife, Vânia Rezende, coordenadora da Associação Pernambucana de Profissionais do Sexo - APPS fechou a sede. Ela tem 67 anos e está fazendo radioterapia. Cabarés, boates e outras casas de prostituição estão fechadas, na cidade. 

As mulheres que batalham nas ruas ainda estão se arriscando na Praça do Diário, centro da capital pernambucana

Em Natal, a maioria das casas fechou e alguns donos de bordéis estão dando suporte para que as mulheres possam ficar ali em isolamento. O apoio se resume às mulheres (lugar para dormir, alimentação etc) e não se estende às famílias que elas sustentam. 

Algumas continuam trabalhando com clientes antigos e fixos através de seus celulares e outro grupo, menor, que tem acesso a computadores, webcam e uma boa conexão de internet, tem trabalhado através de sites. 

A Associação de Profissionais do Sexo de Rio Grande do Norte está reunindo cestas básicas mas o número de doações tem sido insuficiente. 

No Rio de Janeiro, a Vila Mimosa, que reúne centenas de mulheres diariamente, foi fechada em fevereiro, pela CPI dos Incêndios, da Assembléia Legislativa, presidida por deputados do PSL. A Vila Mimosa foi reaberta dia 12 de março, e fechada totalmente uma semana depois, dia 19, agora por causa do coronavírus. 

Bordel europeu de 1537
Pintura de Brunswick Monogrammis
Um bordel europeu de 1537, onde a violência contra prostitutas é registrada

Como ajudar

Em Belo Horizonte
A Aprosmig promove uma campanha para doações em dinheiro, comida, produtos de limpeza e higiene pessoal para trabalhadoras sexuais e moradores da rua e trabalham com o poder público e hoteleiro na Rua Guaicurus para assegurar estadia e comida para quem ficará nos hotéis, enquanto estes ficarão fechados.
Campanha: https://bit.ly/346NOE8
Contato: Cida Vieira (31) 99723-8325
Doações em dinheiro: Caixa Econômica Agência: 0084 Conta: 53456-0 OP: 013 

Brasília e entorno
Tulipas do Cerrado está arrecadando doações de materiais de higiene pessoal, alimentos, roupas, cestas básicas, dinheiro e agua.
Mais informações: https://www.facebook.com/TulipasC/
Contato para doações: Juma Santos (61) 8223-1975
Doações em dinheiro: Tulipas do Cerrado CNPJ: 31.823.188/0001-00 Banco do Brasil Agência 1230-0 CC: 55.105-

Campina Grande
A organização CIPMAC está cadastrando mulheres associadas para receberem cestas básicas, itens de limpeza e higiene pessoal e aceita doações de alimentos e dinheiro.
Mais informações: https://www.facebook.com/cipmac.milene.7
Contato: Milene (83) 98687-7478
Doações em dinheiro: Banco do Brasil Agência: 1634-9 Conta corrente: 16.205-1 Curitiba 

João Pessoa
A APROS-PB tem conseguido cestas básicas e kit de higiene pessoal para as prostitutas da grande João Pessoa
Contato: Luza (83) 98872-0955 

Macapá
A AMPSAP tem registrado profissionais do sexo para receber cestas básicas.
Contato: Edna Maciel Tel: +55 96 9912-5653 WhatsApp +55 96 9185-4629 

Natal
A APRORN vem articulando cestas básicas para trabalhadorxs sexuais no município com o poder publico local e através de doações.
Contato: Diana Soares (84) 98806-5395, (84) 3033-1651 

Recife
A APPS está se mobilizando através das redes sociais com associadas e articulando apoio da Secretaria da Mulher de Pernambuco.
Contato: Vania Rezende (81) 8345-6766 

Ribeirão Preto
A organização Vitória Régia tem garantido cestas básicas para as profissionais do sexo do município.
Contato: Celular da Vitória Regia: (16) 99638-7064 

Rio de Janeiro
A AMOCAVIM está à frente de uma campanha online que têm destinado recursos, alimentos e produtos de limpeza para as profissionais, moradores e trabalhadoras da Vila. Através de parcerias com o Ministério Público do Trabalho, Caritas e a CasaNem, tem conseguido algumas cestas básicas para as mulheres da Vila e criou uma Vakinha para ampliar as parcerias e levantar mais recursos e doações.
Mais informações: https://www.facebook.com/pg/associacaovilamimosa
Contato: Cleide Almeida (21) 96446-9120
Link para campanha: http://vaka.me/976372 

São Luiz
A APROSMA articulou com a Secretaria de Direitos Humanos do estado cestas básicas para as prostitutas e outras populações em necessidade na área central do município. O Grupo Por Elas Empoderadas, mulheres filhas de coração da APROSMA uniram forças para se solidarizar com as profissionais do sexo que estão passando dificuldades nesse momento de pandemia para doar cestas básicas, máscaras e produtos de higiene e limpeza para as profissionais do sexo no Maranhão.
Contato: Maria de Jesus Almeida Costa (98) 8419-0077
Acesso à vaquinha: http://vaka.me/1052352 

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Cena do filme Sedução do Pecado
  Sedução do Pecado
  Cena do filme de Raoul Walsh

Políticas públicas

Em abril de 2020 o Workshop Prostituição Feminina, com  a participação de pesquisadoras da Unicamp (Universidade de Campinas) e da UnB (Universidade de Brasília) discutiu, em Brasília, desde o preconceito nas ruas à formulação de uma política pública capaz de garantir os direitos e a cidadania das profissionais do sexo.

Negra, líder comunitária, ex-presidiária, Doroth de Castro Pereira é relações públicas da Federação Nacional das Trabalhadoras do Sexo e tem 30 anos de atividade na prostituição. “Nosso trabalho é garantir direitos e cidadania para as prostitutas. Também queremos ajudar na rede de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes", disse, durante o encontro, considerando positiva a iniciativa da SPM-Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Bárbara Graner, do Coletivo Nacional de Transexuais, concorda. "O poder público reconheceu a demanda do movimento social e nos inclui no conjunto das mulheres. A SPM nos reconhece e legitima a nossa participação."

No encontro, os participantes destacaram como prioridade as áreas de segurança, justiça, direitos trabalhistas, saúde, direitos humanos, igualdade racial, turismo, educação e desenvolvimento social para a formulação de políticas públicas. E denunciaram "a grande violência policial, preconceito e discriminação pelo exercício da atividade, vulnerabilidade de saúde e qualidade de vida, exploração sexual e tráfico de mulheres". 

As políticas públicas, defendem, devem considerar a transversalidade de gênero, raça/etnia e pobreza. 

Um estudo da fundação francesa Scellesais revela que mais de 40 milhões de pessoas no mundo se prostituem.


..:: As mulheres invisíveis ::..
Uma reportagem especial do LEIAMAISba

por Doris Pinheiro e Alberto Oliveira