Dupla Vulva

Lésbicas e bissexuais são invisíveis no mapeamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis nas pastas de Saúde

por Laila Cirne, Victória Valentina, Vinícius Marques e Yasmim Barreto

Quase três anos de relacionamento e as jovens de 23 anos, Clara* e Isadora* (nomes fictícios para preservar a identidade das fontes), já viveram muitas coisas juntas: viagens, eventos familiares, dividem até as mesmas roupas. A intimidade e sintonia são perceptíveis. O que elas não sabiam é que, além das experiências que qualquer casal tem, teriam de partilhar dúvidas, medo e lidar com o desconhecido de frente, sem muitas informações. Bissexual, Clara percebeu, junto à namorada, que havia uma verruga na região da vagina. Ela descobriu que contraiu o vírus do HPV - Papilomavírus Humano.

Além da contração de uma das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) - termologia que substitui a nomenclatura Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), pois é possível que a pessoa tenha ou transmita infecção mesmo sem sinais e sintomas - há um preconceito que gira em torno do problema: nos casos com pessoas heterossexuais, poderia ser questionada a falta do uso do preservativo atrelada à displicência em meio a tantas informações e campanhas de educação sexual. Mas, quando se trata de mulheres que transam com outras mulheres, o que poderia ser feito para prevenir a transmissão ou contágio de ISTs? O silêncio, sem resposta, é porque não há um método, nem dados atuais, muito menos ações comunicacionais voltadas para as especificidades das práticas sexuais entre mulheres. 

Foto ilustrativa de casal
Foto ilustrativa de um casal de mulheres. (FOTO: Yasmim Barreto)

O último mapeamento sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais foi registrado há 13 anos pelo Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas: Promoção da Equidade e Integralidade, através da Rede Feminista de Saúde. Segundo o levantamento, 3,5% das mulheres lésbicas e bissexuais foram detectadas com tricomoníase; 1,8% com clamídia; 7% foi infectada com hepatite B; 2,1% com hepatite C; 6,3% com HPV; e 2,9% com HIV. Ressalta-se que esses dados são um compilado de pelo menos cinco estudos, realizados nos períodos de 1998, 2001, 2002, 2004 e 2005. Esses números pouco se aproximam com a realidade atual desse público, isso por causa do tempo em que eles foram colhidos, que pode ter como consequência a subnotificação.

Na disseminação de informação, o cenário é bem parecido: há falta de mobilização por parte do Ministério da Saúde (MS) em promover campanhas para informar sobre a saúde sexual desse público, diferentemente das práticas sexuais que envolvem o pênis. No carnaval, principalmente, é muito fácil ver outdoors, propagandas de televisão e preservativos sendo distribuídos, através de uma perspectiva de sexo com homens.

Inclusive, atualmente, está sendo veiculada na televisão aberta uma propaganda com o slogan “Sem camisinha (preservativo) você assume esse risco. Não vacile, use camisinha e se proteja contra as infecções sexualmente transmissíveis como a sífilis, gonorreia, HIV, hepatite, HPV, herpes, cancro mole e também contra uma gravidez não planejada”. A ação do MS destaca a importância do uso do preservativo para evitar essas enfermidades, o que não é possível no sexo entre mulheres, já que os preservativos – tanto o feminino quanto o masculino – não foram pensados para essas práticas sexuais.

Já em relação às mulheres lésbicas e bissexuais, a última ação do Ministério da Saúde aconteceu há quatro anos, com a campanha “Cuidar bem da saúde de todas. Faz bem para as Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Faz bem para o Brasil”, que teve o intuito de alertar os profissionais de saúde a realizar um atendimento baseado nas demandas específicas dessas mulheres (confira imagem ao lado).

O diagnóstico da pasta sobre a necessidade de trazer esse debate para os ginecologistas também foi constatado na pesquisa realizada pela reportagem em agosto de 2019. No total, 167 mulheres lésbicas, bissexuais, heterossexuais e héteros que transam ou já transaram com mulheres destacaram um padrão de comportamento por parte desses profissionais, que são as consultas baseadas em práticas heterossexuais e que não levam em consideração outras formas de se relacionar.

A médica generalista Sheila Neves, formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com foco de pesquisa em saúde sexual da mulher que faz sexo com mulher, explica que essa realidade é uma consequência da raiz da medicina. Segundo a pesquisadora, a profissão foi pensada para elites (classe alta, brancos, heterossexuais) e por isso exclui a outra parte da sociedade, que são as mulheres lésbicas e bissexuais. “[A medicina foi] reproduzindo conceitos do patriarcado e ideias hegemônicas acerca de sexualidade e prazer. Dessa forma, não é uma prioridade fornecer um ambiente inclusivo. Por se tratar de um universo pouco discutido dentro da academia médica, muitos e muitas ginecologistas não possuem sensibilidade para abordar sexualidade de uma forma ampla, pois nunca foram capacitados para isso”, comentou a médica.

À reportagem, a ginecologista e obstetra Lilian Moreira defende a importância da reciclagem dos profissionais de saúde desde a formação na faculdade para que seja feito um atendimento que leve em consideração as especificidades do sexo entre mulheres no qual não existe a presença do pênis, e sim o contato entre vulvas, dedos, boca e brinquedos sexuais. Lilian ainda diz acreditar que o atendimento para a saúde sexual desse público é precário devido ao preconceito e pouca divulgação das necessidades dessas mulheres. “A relação entre mulheres acontece há muitos anos, mas isso está vindo à tona na mídia, sendo divulgado agora. Talvez isso não tenha atentado a classe médica, aliás não só a médica, mas da saúde como um todo. Existe um certo tabu, preconceito sobre isso. Então talvez isso prejudique esse aconselhamento de uma forma mais adequada, dependendo do profissional”, completou.

A formação dos profissionais de saúde com pouco entendimento sobre as especificidades das relações entre mulheres afetou a consulta de Clara. Durante o atendimento, a jovem bissexual contou que a ginecologista examinou, detectou qual era a IST e receitou um remédio que ela deveria aplicar no local. De forma rápida e sem orientações, a consequência foi: ela saiu da consulta com ainda mais dúvidas.

Isadora, sua namorada, também não tem informações sobre saúde sexual e não frequenta o ginecologista há pelo menos três anos. A saída para o casal, que estava 'às escuras', foi a mãe de Clara e o Google.

"Ela não falou muito. Eu expliquei, mostrei, ela analisou e aí falou qual era a IST (Infecção Sexualmente Transmissível) e só, passou a medicação e pronto. Ela não me explicou os perigos que seria se eu transasse com a minha namorada, quem me explicou foi minha mãe, que foi no Google", relembrou.

Além disso, o casal demonstrou o descontentamento com a condução da médica durante a consulta e destacou que ainda há questionamentos que perpassam pela intimidade e sobre as alternativas de como ter um sexo seguro, mas que foram sobrepostos pelo conformismo e silenciamento.

"Eu fiquei chateada, porque eu fui em uma profissional para saber o que tava acontecendo, para que ela me tirasse algumas dúvidas e ela não fez nada. Fiquei incomodada por ela não falar muito, aí eu perguntava algumas coisas e ela desviava do assunto, aí eu deixei para lá, terminei a consulta e pronto. Depois disso eu não vou continuar com ela, vou tentar achar outra", disse Clara.

Confira uma reportagem especial sobre as experiências de mulheres lésbicas e bissexuais em consultórios ginecológicos

As lacunas que prejudicam a promoção da saúde sexual de mulheres que se relacionam com outras mulheres ficou visível para Raquel*, 24 anos, que frequenta a mesma ginecologista desde a infância. Segundo a jovem bissexual, as duas têm intimidade o suficiente para dialogar sobre qualquer coisa, levando a consulta para além de exames e protocolos do atendimento ginecológico. Entretanto, ela consegue pontuar com precisão as distintas orientações que recebeu da sua médica, quando levou as demandas sexuais com homem e com mulher.

Aos 15 anos, quando perdeu a virgindade com um homem, Raquel soube exatamente como proceder dali em diante: como usar preservativo, anticoncepcional, a necessidade de exames, e dos risco a ISTs. Dois anos depois, quando teve a primeira relação sexual com outra mulher e contou para a médica, tudo foi diferente. “A gente nunca conversou sobre como se proteger, Quando falei que transei com homem, ela disse ‘ah, usa camisinha e tal’, mas com mulher, não. Ela poderia ter me auxiliado de outra forma, mostrando como se proteger, porque até hoje eu não tenho ciência de como me protejo em sexo lésbico. E eu acho que falta entendimento da parte dela, porque sexo com homem ela soube muito bem me direcionar’’, comparou.

Raquel também faz parte das mulheres que contraíram ISTs. Ela descobriu que tinha herpes genital após levar a demanda para a ginecologista. No entanto, apesar de ter sido orientada sobre como proceder durante o tratamento, afirmou que há diferença de quantidade e qualidade das informações sobre os tipos de sexos (com homem e com mulher).

A desigualdade na saúde sexual de mulheres heterossexuais e lésbicas e bissexuais perpassam o espaço/tempo, visto que, no início dos anos 2000, o Dossiê da Rede Feminista de Saúde mostrou que a cobertura do exame Papanicolau, conhecido como Preventivo, que detecta o HPV e o câncer de colo de útero, em relação a heterossexuais corresponde a 89,7%. Já no estudo com mulheres que fazem sexo com mulheres, a proporção encontrada caiu para 66,9%.

Esse cenário é justificado a partir dos preconceitos que constituíram a sociedade patriarcal, que gira em torno do falocentrismo - o homem sendo superior - e o androcentrismo - experiências masculinas são consideradas como uma norma universal, segundo a mestra em Direitos Humanos e Cidadania, Julianna Motter.

“Toda a história da medicina foi centrada no homem branco, especificamente, então isso é um resultado de um processo histórico, de androcentrismo e falocentrismo, de muito descaso com a saúde da mulher. Especialmente para a saúde das mulheres que não são esses sujeitos universais. Lésbicas sofrem muito com essa estruturação da saúde, mulheres negras também”, analisou Julianna.

A médica, que também é pesquisadora sobre saúde sexual de mulheres que transam com mulheres, orienta que para romper com esses preconceitos e contribuir contra a evasão das mulheres no âmbito da saúde, é necessário que desde a sala de espera até a consulta sejam baseadas em acolhimento e não-julgamentos, através de perguntas abertas, opções para múltiplas respostas, além da competência dos profissionais de saúde para sanar dúvidas e explicar riscos de transmissão de ISTs, higiene pessoal e rastreio de doenças.

O que as secretarias de saúde dizem

A reportagem questionou ao Ministério da Saúde, no dia 30 de setembro de 2019, sobre a frequência e efetividade de ações comunicacionais voltadas para mulheres lésbicas e bissexuais; a confirmação da existência de apenas uma ação comunicacional, no período de 2000 a 2018; qual o problema diagnosticado pela pasta, que levaria a criação da campanha para reciclagem dos profissionais de saúde; se os ginecologistas passam por orientações para realizar atendimentos específicos com esse público; o que levaria a não existência de preservativo específico para o sexo entre mulheres; quais as ISTs podem ser transmitidas durante essa prática sexual; quais as formas de proteção; e se existem dados atualizados sobre o número de contração de ISTs em lésbicas e bissexuais. No entanto, nenhum dos questionamentos foram respondidos até o fechamento da matéria.

Na Bahia, os números também continuam invisíveis. Não há dados sobre ISTs em mulheres lésbicas e bissexuais na Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, informou Antônio Purificação, Coordenador de Promoção da Equidade em Saúde (CPES). “Não existe um controle específico para mulheres com este recorte em nível de vigilância epidemiológica, pois o formulário de notificação compulsória no Campo 11 apresenta ainda sexo: masculino; feminino e ignorado. A atualização é realizada pelo DATASUS/ Ministério da Saúde”, afirmou.

Ressalta-se, ainda, que o mapeamento de ISTs em mulheres que se relacionam sexualmente com outras mulheres continua no escuro quando o recorte é municipal. De acordo com o enfermeiro e um dos técnicos responsáveis pelo Campo Temático de Saúde da população LGBT da Secretaria Municipal de Salvador, Erik Abade, Salvador possui apenas informações sobre violência em relação a mulheres lésbicas, que será divulgado em um boletim em maio de 2020. Erik também reiterou que o MS não disponibilizou dados sobre o caso e que esses devem ser subnotificados.

Confira a nota na íntegra:

A gente tem dados em notificação das doenças sexualmente transmissíveis na notificação compulsória que é o HIV e sífilis. Sífilis não tem dados sobre a população LGBT, ou seja, não consigo saber se aquela pessoa notificada é lésbica ou bi. Na ficha de HIV eu até consigo saber se foi uma transmissão entre pessoas do mesmo sexo. O HIV é muito menos prevalente nas mulheres lésbicas, como é a vaginose, herpes, hpv, clamídia. O que temos dados não é sobre doenças sexualmente transmissíveis em mulheres lésbicas, mas de violência, o primeiro boletim sai em 05/2020. Mas são campos muito pouco preenchidos, pois não são obrigatórios. O Ministério da Saúde até hoje não disponibilizou os dados, estamos aguardando, inclusive um boletim desde o início do ano que nunca saiu. Porque os quesitos de orientação sexual e identidade de gênero foram incluídos na ficha em 2015, então a gente tem 3 ou 4 anos em produção desses dados. Hoje a gente não tem esses dados atualizados. Infelizmente, ainda é muito subnotificado.

Como se proteger

São diversas marcas de preservativos masculinos e femininos com lubrificantes sabores, cores, texturas variadas. Mas nenhum atende especificamente para o sexo entre mulheres. Essa ausência contribui para a propagação das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) entre este público, já que é o meio utilizado para proteção nas relações sexuais. Contudo, Sheila Neves apresentou algumas alternativas para que lésbicas e bissexuais possam se relacionar sexualmente com menos insegurança.

Gif que explica como se proteger corretamente
Gif explicativo de como se proteger no sexo oral (IMAGEM: Victória Valentina)

Apesar da possibilidade de usar métodos paliativos, a pesquisadora ressaltou que não há garantia de eficácia integral. “As camisinhas masculina e feminina (adaptadas), luvas de procedimento e Dental Dam podem ser utilizados na prática de sexo oral, desde que garanta a cobertura de vulva, canal vaginal e períneo, e na penetração (digital ou com acessórios). Entretanto não há método eficaz na prevenção de infecções durante o contato pele a pele”, explicou.

Gif colocando camisinha
Gif explicativo de como usar uma camisinha nos dedos (IMAGEM: Victória Valentina)

O questionário realizado pela reportagem mostrou a relação de mulheres que fazem sexo com outras mulheres com os métodos alternativos de proteção sexual. Das 125 respostas, 59 mulheres, ou seja 47,2%, responderam que não se protegem em sexo com mulher; 45 informaram que não sabem como se proteger, um percentual de 36%; já as mulheres que afirmaram se proteger, o número cai para 11, com porcentagem de 8,8%; e 10 mulheres disseram que “às vezes” utilizam métodos de proteção, ou seja 8%, das entrevistadas.

Na produção da videorreportagem, quatro mulheres lésbicas e bissexuais foram questionadas se conheciam ou usariam as alternativas apresentadas por Sheila Neves, e a resposta foi unânime: sentem incerteza sobre a eficácia da proteção.

Escute o primeiro episódio do podcast Dupla Vulva na íntegra!


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por Laila Cirne, Victória Valentina, Viínicius Marques e Yasmim Barreto