Posse não é amor
   Simulação de agressão entre namoradas.
   FOTO: Yasmim Barreto
Mulheres adoecem em relações abusivas com outras mulheres

por Yasmim Barreto

Depressão, ansiedade, obesidade, câncer, pensamentos suicidas. Esses são alguns dos problemas de saúde mental e física causados pelo ciclo de violências em um relacionamento abusivo, segundo a delegada titular, Simone Moutinho, da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam). O machismo é a origem do abuso, mas engana-se quem pensa que os protagonistas dessa violência são apenas casais heterossexuais - formados por um homem e uma mulher, nos quais o homem assume o papel do agressor e a mulher da vítima. Entre mulheres o cenário pode ser o mesmo: controle dos horários, ciúmes exacerbados, agressões psicológicas e físicas, ou seja, violência doméstica. 

“Relacionamento entre mulheres não é isento dessa violência e é até muito corriqueiro. Uma delas assume a posição de poder como se fosse o ‘lado masculino’ na relação e quer subjugar, dominar a outra pessoa e isso está longe de ser uma relação de amor’’, disse Simone Moutinho.

À reportagem, a psicóloga e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), Darlane Andrade, reitera que esse padrão de comportamento repetido faz parte da cultura que está incutida na sociedade, na qual o homem aprova ou desaprova a existência da parceira, que por sua vez entende que esse é o modelo de relacionamento e isso perpassa da orientação sexual. 

“A gente aprende a se relacionar dentro dessa cultura, então não quer dizer que porque é uma pessoa do mesmo sexo que vai manter uma relação totalmente igualitária. A gente vê muitas mulheres lésbicas se agredindo, tendo relações abusivas, também dependentes economicamente, o que dificulta a saída, a ruptura dessa relação abusiva, então se a base é patriarcal das relações então ela também vai ser base para muitas relações homoafetivas”.

Os estudos de construção de gênero e a influência disso nas interações humanas, a partir da teoria da sociedade patriarcal, em que homens e mulheres protagonizam relações de poder e subordinação, acabam tornando invisíveis casais entre mulheres, sejam lésbicas ou bissexuais, e suas problemáticas. Contudo, a violência também está presente dentro da perspectiva não-heterossexual, o que é explícito na história da jovem lésbica, 21 anos, Joana*, que foi agredida, chantageada e controlada pela ex-namorada. 

"Ela me empurrou e depois pediu desculpas, aí eu falei ‘tudo bem’ e me aproximei de novo, ela me empurrou novamente na parede, depois disso tentei me aproximar e ela me deu uma ‘chave de braço’ e um ‘mata leão’, me deixou imobilizada, sem ação, ela me agrediu, além de me empurrar contra a parede, também apertou meus pulsos muito forte", relembra Joana, que viveu durante oito meses um relacionamento abusivo. 

Os traumas deixaram resquícios na jovem de 21 anos e foram criados ainda no início do relacionamento com a ex-companheira, Laura*. "Haviam muitas cobranças: não demorar de respondê-la no WhatsApp, conversar o tempo todo, e eu nunca fui essa pessoa, não tinha um apego com meu celular. Eu demoro para responder, essa sou eu, mas ela não aceitava isso muito bem, então passei a usar com muita frequencia, criei Facebook, Instagram, por coisa dela e eu fiz isso para agradá-la", relatou. 

Para Darlane Andrade, esse comportamento é característico das companheiras (os) abusivas (os). "A questão da relação abusiva é o controle sobre o outro, o que vai vestir, como vai andar, se portar. Tem que ter cuidado também com as chantagens emocionais que podem acontecer, mas o que mais caracteriza é esse controle que a pessoa abusiva impõe sobre a vítima. Isso normalmente vem de forma muito sutil, aí a outra parte começa a ceder e quando vê já está engolida, não tem individualidade mais e está imersa numa relação violenta, que aí pode ser emocional, psicológica, sexual, dando ênfase ao sexo sem consentimento para agradar o parceiro ou parceira". 

Além de Joana, outra mulher lésbica também relatou vivências de violência que viveu em um relacionamento anterior ao atual. "No início, eu fiquei totalmente refém. A abusividade era no sentido de que eu não podia sair daquilo ali e, sempre que tentava, a pessoa me trazia de volta, com chantagens, jogos, mensagens de eu te amo, etc. Depois de muitos episódios eu me desvencilhei. Mas, foi tudo muito difícil. Um processo lento", relata Louise*

Com 28 idade, Louise lidou com circunstâncias que ainda carrega até hoje: "Eu sinto que me envolvi com minha atual namorada como forma de mostrar que seria capaz viver uma história com alguém novamente. Mas, não faz nem um ano que eu saí da relação abusiva e entrei em outra. Então, ainda vivo esse impasse do ‘como será que eu vou ficar sozinha’. Às vezes, até o próprio sexo se torna algo que me desmotiva, como se fosse uma obrigação. No relacionamento anterior este era um aspecto muito forte, que pesava muito, eu acho que adquiri algumas restrições. Tenho vivido meio que um dilema entre: me sinto bem com minha atual namorada, mas a questão do prazer sexual nem sempre acontece. Atualmente, eu continuo com alguns medicamentos, em doses menores, e com terapia".  

Contudo, além da terapia e medicamentos, os amigos e familiares amigos foram essenciais para que Louise conseguisse sair desse ciclo de violência. "Acabei entrando em uma depressão severa por causa do relacionamento, exatamente no momento em que eu decidi me afastar. Me sentia dependente, achava que nunca mais conseguiria ter alguém. Minha mãe precisou me levar em uma consulta de emergência com psiquiatra e eu busquei uma terapia para cuidar especificamente dessa questão naquele momento". 

A frequência com que as (os) agressoras (os) abusam das (os) companheiras (os) tem consequência direta na saúde dessas mulheres, que desenvolvem depressão, ansiedade, crises de estresse, de forma mais grave. A psicóloga relata que, em sua maioria, as vítimas desconhecem a causa específica e só aparecem nos consultórios quando já estão adoecidas. Darlane ainda reitera que nesses casos quando é feita a investigação há a constatação de violência como causa principal desses transtornos. 

Essa realidade contribui para a ocupação das mulheres em primeiro lugar no mundo que mais usam medicação para ansiedade e depressão, que são os transtornos mentais mais comuns, informou a especialista em gênero. "Tem uma condição de gênero que nos adoece e a base de muito desses adoecimentos está na violência cotidiana que a gente sofre, no âmbito doméstico ou fora dele, e a gente precisa olhar pra isso, porque estamos adoecendo". 

Lei Maria da Penha protege mulheres vítimas de mulheres

Posteres na delegacia da mulher
Pôsteres na sala da delegada Simone Moutinho que denunciam a violência contra a mulher. (FOTO: Victória Valentina)

Os relacionamentos abusivos, caracterizados com violência física, psicológica, moral, sexual e/ou patrimonial, se enquadra no crime de violência doméstica, porque os abusadores, em sua maioria, têm relações próximas com a vítima. "Esse crime engloba a violência nas relações íntimas, familiar e na doméstica propriamente dita, como o caso do agregado ou daquele que tem livre acesso ao lar da pessoa e essa proximidade que facilita a violência", pontua a delegada titular da Deam, Simone Moutinho. Para coibir e punir os agressores, foi criada a Lei Maria da Penha.

No entanto, ressalta-se que a lei assegura os diversos tipos de relação: homem e mulher; familiares; ex-companheiros; e, inclusive, relações entre mulheres. Apesar da sua atuação, a jovem lésbica, Louise*, criticou a pouca divulgação da lei voltada para mulheres que se relacionam com outras mulheres. "A questão de informação ainda deixa desejar. É comum associar lei Maria da Penha a casais heterossexuais, o que, com certeza, leva a uma subnotificação grande de agressões sofridas por gays, trans. É importante que haja divulgação, seja pelo poder público ou organizações que tratem do tema". 

A delegada titular da Deam atribui essa realidade ao preconceito que mulheres lésbicas sofrem. "As lésbicas gozam de muito preconceito no país, são tratadas de forma muito diferenciada, acho que talvez não seja uma questão de não conhecer a norma, mas achar que de fato se eu vier noticiar isso a polícia não vai ter nenhuma efetividade em relação a mim, porque vão me olhar de jeito estranho. Mas aqui na delegacia a gente tem registrado algumas denúncias nesse sentido considerando mesmo uma perspectiva de gênero". 

Contudo, Simone Moutinho e Darlane Andrade partilham da mesma opinião: mulheres devem ficar atentas a sua individualidade e respeitar suas vontades, para que não haja espaço para uma segunda pessoa entrar e assumir o controle de suas vidas e identidades. Porém, quando a violência se instala a decisão mais importante é buscar ajuda e denunciar. 


..:: Saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais ::..
por Laila Cirne, Victória Valentina, Vinícius Marques e Yasmim Barreto