Maternidade em laboratório
   Ensaio fotográfico de Jéssica e Daniela 'grávidas' de Bento.
   FOTO: Arquivo pessoal

De preços ao preconceito: como um casal de mulheres gera uma criança por Victória Valentina

“Quando a gente contou pra nossa família, foi uma alegria geral, num ponto que a mãe de Daniela, minha esposa, reformou a casa inteira para a chegada de Bento”.

Foi assim que Jéssica Sandes, jornalista baiana que mora em Portugal, conta que realizou sua vontade de gestar. Ela e Dani, como carinhosamente chama sua cônjuge, namoraram por cerca de quatro anos, se casaram e começaram a pensar em ter um bebê, que hoje tem um ano e seis meses.

Entre as soluções encontradas por casais homoafetivos para ter filhos, estão a adoção homoparental e tratamentos de fertilização ou inseminação. A primeira forma –  legalizada em abril de 2010 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), e permitida em apenas 24 países do mundo – abriu as portas para que homens e mulheres que se relacionam com pessoas do mesmo sexo pudessem criar, amar e cuidar de quem precisa de um lar. No Brasil, segundo o último censo divulgado pelo IGBE em 2010, estima-se que há cerca de 58.000 famílias homoafetivas, número que corresponde a apenas 0,1% total de unidades domésticas. Mesmo com a adoção, há quem sinta vontade de gerar sua própria criança e que consiga pagar pelo tratamento, visto como financeiramente custoso por muitos casais.

"A gente sempre ouviu que era bem caro. Tínhamos o plano de morar fora do Brasil, no Canadá, para estudar, e pra isso a gente tava juntando uma grana. Aí veio a questão: 'pô, a gente não tem grana pra isso'. Eu entrei em contato com as clínicas de Salvador, que são três. Fazem fertilização, inseminação e resolvemos marcar uma consulta para ver como era", disse a jornalista.

Jéssica e Daniela registram foto no momento do nascimento de Bento
Jéssica e Daniela registram foto no momento do nascimento de Bento (FOTO: Arquivo pessoal)

Depois de muitos exames, a decisão estava tomada. Por recomendação da médica que as acompanhava, o método utilizado foi a fertilização in vitro. Fizeram tratamento para ovular mais e recorreram ao sêmen de um doador anônimo. O casal ainda optou por utilizar o material genético e óvulos de Daniela, mas era Jéssica quem iria receber o embrião.

"A fertilização aproveita o sêmen ao máximo. Coloca o material genético dentro de cada óvulo, e podem ter mais embriões. Tivemos vários, mas colocaram dois em mim, vingando um. Temos mais quatro congelados, porque queremos ter mais bebês", explicou a jornalista.

A ginecologista Sofia Andrade, especialista em reprodução assistida que atendeu e acompanhou Jéssica e Daniela, contou que as opções de gerar um bebê, neste caso, são inseminação e a in vitro. Quando o casal escolhe o método, a médica solicita exames para ambas, para avaliar qual das duas oferece uma melhor condição para a gestação e uma melhor taxa de sucesso no tratamento.

Riscos à saúde

Dentre os exames solicitados, estão aqueles que são comuns inclusive para mulheres heterossexuais, como sorologia e laboratoriais gerais. Quanto aos riscos, a médica explica que existem por causa do uso de medicações. “Tanto na fertilização quanto na inseminação, usamos medicações hormonais. Pode causar trombose, retenção de líquido e dor de cabeça durante o tratamento”, contou.

Já na fertilização in vitro, a ameaça é durante o procedimento cirúrgico. “A captação do óvulo é feita com a paciente sedada, então existe risco anestésico. Há, também, risco de sangramento durante a captação, porque ela é feita com a inserção de uma agulha via vaginal, que é guiada por ultrassom. Mesmo assim, existe a possibilidade de atingir algum vaso sanguíneo, causando sangramento”, explicou.

Em termos de valores, Sofia Andrade esclareceu que a inseminação tem um custo menor, e varia de dois a quatro mil reais. Já na fertilização, escolha de Daniela e Jéssica, a faixa de preço está entre 12 e 16 mil reais. Além disso, tem também o valor das medicações, que chegam a custar, em média, quatro a seis mil reais, mais o sêmen do banco de dado, que leva o casal a desembolsar cerca de cinco mil reais.

Na Bahia, não é possível realizar estes tratamentos pelo Sistema Único de Saúde. Mas, de acordo com a médica, casais que não têm condição financeira para pagar tudo podem recorrer a programas de acesso, que fazem o valor reduzir em até 50%.

Já em São Paulo, alguns hospitais oferecem tratamento gratuito e ainda são referência no atendimento. O Hospital Estadual Pérola Byington, por exemplo, trata pacientes pelo SUS, mas a mãe precisa ter até 40 anos, não ter doenças crônicas graves e ter feito, no máximo, até duas cesáreas anteriores, segundo reportagem da Globo News. A iniciativa de ajudar esses casais parte do Governo Federal de São Paulo, que paga, ao ano, dois milhões e 500 mil reais para que o hospital faça o serviço.

Em 25 de julho de 1978, há 41 anos, na Inglaterra, nascia Louise Brown, o primeiro bebê concebido via fertilização in vitro. Segundo dados divulgados no Congresso da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE), estima-se que mais de oito milhões de crianças foram geradas pelo método.

Duas mães? Como assim?


Jéssica e Daniela na festa de um ano de Bento. (FOTO: Arquivo pessoal)

"A gente levou ele uma vez na emergência e tinha que passar pela triagem, para ver como estava a temperatura. A enfermeira perguntou: 'quem é a mãe?'. E eu respondi: 'as duas'. E ela insistiu: 'mas, sim, quem é mãe, quem pariu?'. Isso interessa para triagem? Não importa!”, disse Jéssica quando perguntada sobre preconceito.

Ver duas mulheres andando na rua com um carrinho de bebê, por exemplo, é passível de estranhamento. Há quem nem pense na possibilidade de que, ali, são duas mães exercendo seus direitos de ir e vir, existirem e serem uma família.

Para Raíssa Lé, psicóloga e pesquisadora com foco em Gênero e Sexualidade, isso acontece porque "a família ainda é regida por normas religiosas e econômicas, com base na monogamia e heteronormatividade". Ela explica que "durante muito tempo, mulheres não podiam construir uma família, juridicamente falando, porque não poderiam procriar".

A parcela preconceituosa da sociedade muitas vezes se questiona "como a criança será criada por duas mães". Raíssa reforça que, enquanto psicóloga, não acredita que existam métodos diferenciados para cuidar de um filho inserido nessa configuração familiar. "Se fosse pra pensar em diferentes métodos devido a uma família homoafetiva, seria necessário então rever as diversas outras possibilidades de configurações familiares, inclusive a monoparental", constatou.

A profissional esclarece, ainda, que por mais que a criança questione e compare sua família com uma "tradicional", isso "ajuda a conviver com a diversidade e compreender a pluralidade de formas de ser e estar no mundo".

Apesar destas situações embaraçosas, Jéssica Sandes e Daniela Furtado não se privam de trocar carícias e andar de mãos dadas quando estão na rua, inclusive na presença do pequeno Bento. “As pessoas acham que é muito difícil que duas pessoas do mesmo sexo tenham filho. Acham que ser homossexual é ser promíscuo. Parece que a gente é um ponto fora da curva, o que não deveria ser, porque às vezes eu acho que as próprias pessoas LGBTs acham difícil ser família”, desabafou.


..:: Saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais ::..
por Laila Cirne, Victória Valentina, Vinícius Marques e Yasmim Barreto