O preconceito que não se conta   Representação das bandeiras lésbica e bissexual nas mãos.
  FOTO: Vinícius Marques

Como a lesbofobia e bifobia se tornam doenças sociais
   por Laila Cirne

Lar.
Substantivo masculino.

  1. Local, na cozinha, onde se acende o fogo; lareira.
  2. Por extensão: a casa de habitação, domicílio familiar.
  3. Por metonímia: grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto; família.

O que era para ser um lugar acolhedor, de compartilhamento de amor, respeito e carinho, muitas vezes é o palco principal da lesbofobia e bifobia. Outros espaços urbanos como trabalho, faculdade, grupos de amigos e até mesmo desconhecidos tornam a vida de mulheres que decidiram se relacionar com outras mulheres, um inferno. Discriminação, julgamentos, violências verbais e físicas são as consequências dessas doenças sociais que estão presentes em uma sociedade que ainda não se curou do preconceito, da intolerância e desrespeito às diferenças.

Para a psicóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), Darlane Andrade, a sociedade ainda é doente e adoece as pessoas quando tenta determinar a forma de viver do indivíduo. “A palavra fere também, então uma representação na mídia, um xingamento, uma história que se conta, uma desqualificação que uma pessoa recebe, uma piadinha, sobre os afetos LGBT, nesse caso, das mulheres lésbicas’’, pontua Darlane.

A formação da sociedade baseada em um padrão de relações e expressões estéticas de acordo com o gênero traz como consequência comportamentos de agressões físicas e verbais que podem terminar em assassinatos voltados para esse grupo de mulheres.

Segundo o dossiê “Lesbocídio – As histórias que ninguém conta”, publicado em 2017, 64% dos assassinatos registrados entre 2014 e 2017 foram causados por pessoas conhecidas ou com vínculo afetivo e familiar. Já em um panorama geral, foram registradas 54 mortes de lésbicas no Brasil em 2017, número que corresponde a um aumento de 237% dos casos se comparado ao período de 2014 e 2017.

O documento também mostra que um determinado perfil de mulher é mais vulnerável a agressões: lésbicas que não performam feminilidade. Elas representam 55% dos registros de morte por lesbofobia.

Carolina* está dentro desse padrão, que é um alvo específico dos agressores. “Teve uma situação bem constrangedora, no ônibus. Um senhor, antes de sair do ônibus, olhou para mim e eu estava com uma menina, e começou a xingar a gente, disse que nós não éramos normais. Ele fez uma esculhambação no ônibus para acabar com tudo. A gente ficou bem assustada porque ele estava agressivo. Não chegou a tocar na gente, mas falava muitos palavrões, apontou o dedo antes de descer do ônibus. Foi constrangedor”, relembra Carolina.

Ainda de acordo com a jovem, a violência está presente em sua vida desde muito jovem, quando já não se apresentava esteticamente como a sociedade espera. “Quando criança eu sofria por ser uma menina que não performa feminilidade. E hoje em dia é muito pior, porque é complicado não ser reconhecida como mulher lésbica. A gente é invisibilizada o tempo todo”, disse Carolina*. 

Para a psicóloga Darlane Andrade, a invisibilidade dessas mulheres acontece por não atenderem às normas impostas pela sociedade patriarcal, como se relacionar com homens e se vestir com adereços que são vistos como ‘femininos’. “Desde pequenas acontecem piadinhas com crianças e adolescentes, que começam a expressar comportamentos de gênero que não condizem com o que é esperado socialmente. Expressar desejos sexuais e pensando mais na adolescência, por exemplo, o que não é heterossexualidade as pessoas começam a discriminar. Na escola, na família, o ambiente escolar e domiciliar é onde a gente mais percebe essas discriminações”, afirma Darlane.

Os assassinatos acontecem por crime de ódio e repulsa. O dossiê aponta que cerca de 47% dos casos acontece com execução de tiros de armas de fogo em grande quantidade. A segunda maior causa de morte de lésbica é brutalidade das facadas, que corresponde a 23% dos casos. Mas, é importante ressaltar que há uma dificuldade de contabilizar esses casos, porque tais crimes ainda não são tipificados no código penal, gerando uma subnotificação e dificultando o monitoramento, já que não há punição específica.

Ainda segundo o dossiê, 72% dos casos de lesbocído acontece em espaços públicos, seja em vias públicas, estabelecimentos comerciais ou espaços remotos. Por causa disso, muitas mulheres deixam de frequentar esses espaços por medo de serem mais uma vítima. “Em Salvador, por exemplo, tem bares lésbicos que a maioria das pessoas lésbicas frequentam. Então lá se tornam espaços protegidos para elas expressarem seus afetos. A gente ver que para as mulheres as expressões de afetividade em espaços públicos são perigosas”, afirma Darlane Andrade.

Os dados revelam que não é somente a saúde física dessas mulheres que é preocupante, mas também a saúde mental. Foram 19 casos de suicídio em 2017, representando 32% dos suicídios de toda a comunidade LGBT+ no Brasil, naquele ano. Diferentemente dos casos de assassinato de mulheres lésbicas, há uma incidência maior de registros de suicídio entre lésbicas feminilizadas, concentrando 73% do total dos suicídios.

"O preconceito e discriminação podem causar baixa autoestima, adoecimentos psíquicos mais graves, ansiedade e depressão"
Darlane Andrade

Essa violência de gênero se reproduz até mesmo dentro da comunidade LGBT, já que as mulheres bissexuais são vistas como indecisas por gostar de ambos os sexos. “Na verdade, não, elas não são indecisas. Elas gostam de homem, gostam de mulher, e elas estão muitas vezes bem resolvidas com isso”, explica Darlane Andrade.

Resposta ao preconceito

Na luta contra a lesbofobia e bifobia, são formados coletivos de mulheres que constroem narrativas de representação e reivindicação de direitos como a Velcro Choque, idealizada por Julianna Motter, juntamente com as amigas Marina Borges e Taís Laurindo.

Julianna Motter colando lambes pela cidade
Julianna Motter colando lambes pela cidade. (FOTO: Yasmim Barreto)

Julianna é uma mulher lésbica, de cabelo curto e camisão, que não corresponde ao padrão heteronormativo. Justamente por não corresponder a esse padrão, ela diz que as pessoas quase sempre a questionam se é mesmo uma mulher, por vezes chamando-a no masculino. A brasiliense, de 27 anos, é jornalista e mestra em Direitos Humanos e Cidadania.

A Velcro, como gosta de chamar, tem como objetivo dar visibilidade às mulheres lésbicas e bissexuais. Mostra nas intervenções urbanas o afeto e desejo lésbico nos espaços públicos através do lambe-lambe, sua principal produção. Sempre composto por frases bem-humoradas, que remete às vivências das mulheres que se relacionam com outras mulheres, como o termo sapatona e a tesoura.

Ela sai perambulando as ruas da cidade à procura de muros e fachadas de prédios desativados para colar suas produções, geralmente no período da noite. “A ideia de tornar visível é tipo você quebrar uma cortina. Então, o espaço público continua sendo espaço de disputa. A gente tem hoje dois grandes espaços de disputa, que é o espaço público propriamente dito e as redes sociais. Hoje, por exemplo, a Velcro tem esses dois eixos de atuação. Porque é um espaço de narrativa, de discurso”, conta Julianna, que iniciou o projeto em Brasília e atualmente ocupa também as ruas de Salvador. 

“A partir do momento que os lambes estão nesses espaços eles mostram que esses corpos existem e isso contribui no senso de coletividade e cria senso de pertencimento’’
Julianna Motter

A brasiliense reforça o desejo de realizar festas na cidade, já que a coletiva nunca realizou um evento desse tipo aqui na capital baiana. "O rolê da festa tem uma estética, onde só mulheres lésbicas e bissexuais participem. E é um lugar de encontro, a gente entende que tem poucos lugares de encontro propriamente lésbico, então a criação desses lugares é importante”, revela Julianna.

Além da Velcro Choque, a Coletiva Ocupa Sapatão BXD, idealizada por Ana Caroline Penna em conjunto com a prima Milena Penna e a namorada da prima Luiza Machado, traz debates políticos e culturais na Baixada Fluminense – região localizada ao redor do município do Rio de Janeiro. Por conta da ausência discussões para o público mais jovem, principalmente para mulheres e mais ainda para lésbicas e bissexuais.

A princípio, Carol, que é fotógrafa e estudante de história do 8° período da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), só queria alguma coisa para o mês da visibilidade lésbica, em agosto, não “passar em branco” na Baixada Fluminense. O evento teve rodas de conversa, oficina de lambe-lambe, stencil - técnica usada para aplicar desenho através do corte ou perfuração do papel - e bordado.

O que ela não esperava era a visibilidade e repercussão que teve, tanto no Instagram quanto presencialmente. “A gente achou que seria uma atividade focada para o mês de agosto e viu a necessidade de dar uma continuidade a isso e acabou se transformando em uma coletiva”, conta Carol.

Roda de conversa
Ana Caroline Penna e outras mulheres reunidas no primeiro evento da Ocupa Sapatão BXD. (FOTO: Arquivo pessoal)

O Ocupa, como prefere chamar, já promoveu piquenique na cidade e pretende no final de novembro criar mais outro evento. “Estamos programando uma reunião com representantes dos outros municípios da Baixada para a gente estar criando um calendário de atividades que rode os municípios para que outras meninas tenham acesso”, revela Carol.

Também tem parceria com outras coletivas, como o Circuito Visibilidade Lésbica, que atua na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, e a Velcro Choque. Os lambes utilizados em seus eventos, por exemplo, foram disponibilizados pela Velcro. Essa parceria começou quando o bairro que realizaria o evento foi vetado pela Prefeitura e foi necessário buscar algo que pudesse deixar sua marca ali.

Para ajudar com os custos de se manter uma coletiva, criou uma lojinha no Instagram para vender ecobags personalizadas - tipos de sacolas ecológicas feitas de algodão. “A ideia da lojinha surgiu porque a gente precisava gerar recursos para se locomover, ir para os eventos, poder estar presente nos espaços. E principalmente para a gente criar um próprio caixa para o coletivo, porque às vezes algumas meninas não têm acesso a passagem”, conta Carol.

Pretende através da página, criar um destaque para incentivar e divulgar o empreendedorismo de outras mulheres lésbicas. “Tem muitas meninas que produzem coisas legais e a gente não ver ter essa visibilidade, esse espaço. A baixada não deixa de ser uma área carente, então é muito complicada essa questão de emprego, muitas das vezes para as meninas que não performam feminilidade”, afirma Carol.

Visibilidade no calendário

Diante de tantas datas, foi criado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado em 29 de agosto, embora não apareça no calendário oficial do pais. A data foi criada por ativistas lésbicas brasileiras, em 1996, durante o 1° Seminário Nacional de Lésbicas do antigo Senale, que atualmente passou a se chamar Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (Senalesbi). Agosto, então, passou a ser o Mês da Visibilidade Lésbica. É uma data importante para essas mulheres, marcada pelas suas lutas por direitos e combate a lesbofobia.

Outra data que dá visibilidade a elas é o Dia da Celebração Bissexual, comemorado em 23 de setembro no Brasil e alguns outros países. Surgiu em 1999 por três ativistas dos direitos bissexuais dos Estados Unidos como resposta ao preconceito que as pessoas bissexuais sofrem, tanto na comunidade hétero como na comunidade LGBT.


..:: Saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais ::..
por Laila Cirne, Victória Valentina, Vinícius Marques e Yasmim Barreto