Drags da prevenção
    Ângela Caballal no processo para se transformar em Eva Sattiva.

   FOTO: Vinícius Marques

A arte drag como forma de prevenção

Vinícius Marques

Cerca de quatro horas de maquiagem, dezenas de camadas de roupas, perucas, purpurina e muito glamour. Isso foi o que presenciamos em um dia inteiro com Eva Sattiva, drag queen performada por Ângela Carballal Reis, uma mulher cisgênero e lésbica. As performances de Eva vão sempre além da estética, onde a drag queen sobe aos palcos para apresentar pautas relacionadas a saúde da comunidade LGTB, visibilidade lésbica e discriminação do uso da maconha.

Ângela, hoje aos 31 anos, é arquiteta e urbanista de formação, mas conta que não atua na área pela falta de mercado, e por isso acaba fazendo bicos com coisas diversas para conseguir a renda no final do mês. Entre esses bicos está a arte drag, hoje a principal paixão e forma de trabalho da artista. No espaço da arte de transformação, Ângela surpreende por ser uma drag queen e não uma drag king - quando mulheres se transvestem de homens, o que é visto como mais comum. Eva chega em todos os lugares da noite de Salvador completamente pronta com perucas, saltos e enchimentos.

Eva Sattiva, que está quase sempre loira, com os olhos e boca curiosamente maiores do que o normal, e um enchimento de colocar inveja em qualquer pessoa, nasceu há apenas dois anos. O que começou como uma brincadeira numa festa, hoje é trabalho sério e de muita dedicação. A aproximação com a arte drag surgiu após assistir ao reality show norte-americano RuPaul’s Drag Race, entretanto, apesar de ser um cenário de inclusão e diversidade, Ângela, na figura de Eva, não encontrou apenas sorrisos durante sua chegada na cena drag soteropolitana.

“Primeiro, pelo fato de ser uma cena de homens. A gente acaba escutando vários comentários. Do público a gente escuta 'é muito fácil pra você, porque você já é uma mulher'. Eu acho engraçado você pensar o que é um corpo de mulher. Tão diversos que podem ser os corpos, o que é um corpo de mulher? Meu corpo de Eva não é um corpo de mulher, necessariamente. Até porque aquilo ali é bastante exagerado”, explica Ângela.

Na luta para conseguir espaços para se apresentar, Ângela atualmente possui três principais pautas de trabalho como Eva: o Bateu uma Onda Forte, onde busca trazer uma reflexão sobre o uso da maconha; o Lésbicas Futuristas, onde se apresenta ao lado das drag queens Nágila GoldStar e Towanda Verde Frita, ambas mulheres lésbicas; e o Drags da Prevenção, junto com as drags queens Petra Peron e Malayka SN. Neste último, Eva é a única “amapô” (termo utilizado na comunidade LGBT para se referir a mulheres cis) do grupo.

Com pouco menos de um ano, o projeto Drags da Prevenção surgiu como uma nova perspectiva de abordagem e convencimento das tecnologias de prevenção às ISTs/Aids, num momento em que duplicaram as novas infecções entre jovens de 15-19 anos e triplicaram entre jovens de 20-24 anos. Produzido inteiramente por membros da comunidade LGBT, o grupo acredita que a linguagem da arte drag queen é oportuna para dialogar com as populações alvo através de apresentações leves e lúdicas, necessárias ao enfrentamento da discriminação e preconceito, trazendo informação e conhecimento sobre as ISTs.

A primeira apresentação do grupo aconteceu em dezembro de 2018, num evento do Casarão da Diversidade, no Pelourinho. A apresentação consiste em um esquete de 10 a 15 minutos que envolve, basicamente, contação de histórias e apresentações musicais que remetem à temas de prevenção. As primeiras apresentações do grupo foram patrocinadas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) junto com a Fiocruz e outros pesquisadores internacionais, permitindo a produção de figurinos e o cachê dos artistas.

Antes da primeira apresentação, o trio passou por uma capacitação no próprio Casarão da Diversidade. “Lá descobri muitas coisas que eu não sabia. E veja, uma pessoa de 31 anos, com acesso a informação, formada, mas eu não fazia ideia, por exemplo, que existia Prep [Profilaxia Pré-Exposição, um medicamento antirretroviral utilizado antes da exposição sexual para reduzir a probabilidade de infecção pelo HIV]. Eu fiquei chocada com essa tecnologia e por perceber que muita gente não sabe disso. Foi mais legal ainda porque quando começamos a discutir o projeto, a apresentar e discutir com outras pessoas, percebemos que existem mais demandas do que deve ser dito. Tem muita coisa que temos que falar”, conta Ângela.

Após a primeira apresentação, o grupo também levou o esquete para os Petra Perón, Eva Sattiva e Malayka Snpesquisadores que patrocinaram a performance e receberam deles um feedback positivo, confirmando que as informações estavam sendo passadas de forma correta para o público. “Falamos de forma engraçada e popular, mas ao mesmo tempo sem distorcer a ideia correta. Então tivemos a ideia de que estamos bem capacitados, embasados para fazer isso”, diz Ângela. (Ao lado direito, as drags registram uma foto da primeira apresentação)

Desde então o grupo vem se apresentando em oportunidades pontuais, como por exemplo quando fizeram um workshop com profissionais de várias regiões do Nordeste e que trabalham com prevenção, como fisioterapeutas, enfermeiros, médicos, bombeiros e policiais militares. “Nos apresentamos e passamos o dia com eles fazendo workshop sobre como falar sobre o tema. Achei que foi bacana porque eles chegaram para falar que estavam há quatro dias no workshop e aquele tinha sido o dia mais divertido, lúdico e proveitoso. Mas é exatamente por isso, passar a informação de forma agradável. A ideia é passar isso de forma prática e rápida, se passar um textão, ninguém vai aprender”, brinca a artista.

O ex-Coordenador de Políticas LGBT no Governo da Bahia (2015-2019), o bacharel em Gênero e Diversidade Vinícius Alves, afirma que “as Drags da Prevenção são uma tecnologia leve e leve-dura no campo da saúde coletiva”. De acordo com Vinícius, a importância do coletivo está em conseguir responder a uma necessidade social a partir do uso de uma linguagem artística que consegue reunir em si representação política e formação de opinião.

Desenvolvedor de projetos como o Casarão da Diversidade, o Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT da Bahia e a Rede de Enfrentamento à Violência contra LGBT da Bahia, Vinícius tem acompanhado as Drags da Prevenção de perto desde o começo, ele foi uma das pessoas que ajudaram a construir e ensaiar a primeira dramaturgia do grupo. Fora do Governo desde abril deste ano, atualmente ele tem participado como Produtor Executivo do coletivo. “Tenho ajudado a aproximar o meu conhecimento e vivência no campo da prevenção, da redução de danos, das intervenções em contextos festivos, dessa linguagem que hoje tem ganhado um alcance extraordinário em todo país que é a arte transformista”, conta.

Ao se lembrar da primeira apresentação do grupo, ele afirma que mais do que um feedback positivo dele, o mais importante foi o feedback que o grupo recebeu do público presente. “Normalmente em qualquer espaço quando as pessoas ouvem a palavra prevenção, já viram a cara e vão fazer outra coisa”, afirma o bacharel em Gênero e Diversidade. “A reação das pessoas ao verem três drags falando sobre prevenção de uma maneira descontraída, mas profunda e fundamentada, foi de total atenção. Todas ficaram encantadas com a intervenção e eu mais ainda”, lembra.

No entanto, Vinícius acredita que ninguém nunca está completamente apto a nada no campo do cuidado, “pois nós entendemos o processo de cuidado como algo relacional, nos termos e conceitos da saúde coletiva”. Ele acrescenta que as Drags da Prevenção estão aptas ao encontro cuidadoso e ao acolhimento e troca entre diferentes públicos. “Longe de estar completamente aptas, eu diria que elas estão sim preparadas para o que se propõem: produzir um cuidado leve (a partir da sua capacidade de produzir encontros) e leve-duro (a partir da capacidade de cuidar utilizando saberes estruturados, conhecimento previamente apreendidos) no campo da prevenção ao HIV/AIDS, ISTs e da redução de riscos e danos para o uso de substâncias psicoativos em contextos festivos”, afirma o pesquisador.

Entre os trabalhos do grupo, Ângela lembra que recentemente foram convidados para levar o Drags da Prevenção para a Parada LGBT de Boipeba, ilha localizada a cerca de 45 minutos de barco da cidade de Valença, que fica a 300 km de Salvador. Após a apresentação, um grupo de mulheres trans que reside na ilha procurou as Drags da Prevenção para conversar.

Segundo Ângela, o grupo agradeceu a presença delas na ilha pois o acesso a esse tipo de informação no local é mais difícil. “Eles comentaram que são de uma cidade pequena, de maioria evangélica onde não se fala em saúde sexual. Isso com todas as mulheres da ilha. Existe essa demanda, elas ficaram interessadas pelo papo, porque não foi apresentado de uma forma imposta, chata ou com imagens de doenças”, lembra Ângela.

Entre uma alteração e outra, a artista conta que o grupo está sempre atento aos termos que utilizam durante as apresentações. Uma das alterações foi a do uso equivocado do termo “população de riso”, já que, segundo Ângela, todo mundo possui práticas de risco. “Uma mulher que vai ao salão e não usa um alicate esterilizado, a utilização de qualquer objeto perfuro-cortante, compartilhamento de seringa na questão de drogas e o não uso de preservativo”, exemplifica.

Ação das Drags da Prevenção
Eva Sattiva e Malayka SN em ação de distribuição de insumos da Drags da Prevenção. (FOTO: Arquivo pessoal)

Mas Ângela revela que, mesmo após todas as apresentações do Drags da Prevenção, o grupo ainda não se sente capacitado para poder, por exemplo, falar individualmente para as pessoas se testarem ou lidar com pessoas que estão sendo testadas. “Vai que dá positivo, sabe? E como estaremos preparadas para segurar a emoção para a pessoa não se desesperar. Nossa proposta não é de testar, por exemplo. É de falar da importância de testar e distribuir os outros insumos”, diz.

Ângela acredita que a presença de Eva no grupo é de grande importância justamente por ser a única mulher do coletivo, que é integrado por outras duas drags queens que são montadas por homens cis. “É pra que eu possa dialogar exatamente com essas mulheres. Percebemos também que quando apresentamos em praça pública, às vezes nem todo mundo é LGBT. É muito difícil dialogar com homem hétero, mas com mulheres héteros conseguimos dialogar. Então temos que falar da saúde da mulher no geral”, pontua Ângela. Atualmente, o grupo está desenvolvendo um novo esquete sobre a importância da mulher na ginecologia.

Ao mesmo tempo, eles convidaram para integrar o grupo uma nova integrante. Abigal Lopez, uma mulher transsexual, em breve estará participando das ações junto com o trio. Ela chega como um reforço para dialogar com o público trans e contar a vivência de um sexo heterossexual, da qual os outros integrantes não possuem vivência.

“As Drags da Prevenção são o início de uma importante revolução no campo das novas tecnologias de prevenção no Brasil”, afirma Vinícius Alves.

Artivismo

Romário Silva de Oliveira Costa, artista visual e arte educador, é Malayka SN, com quem Eva trabalha no Drags da Prevenção. Figura conhecida na noite drag de Salvador, Malayka chama atenção por onde passa. É impossível não prestar atenção na estética criada para a persona, conhecida como “drag monstro”. Com maquiagens que sempre fogem do convencional e da feminilidade e uma barba de flores, Malayka já trabalha com artivismo há cinco anos.

Vencedora do Musa Caras e Bocas, Garota Marujo e das duas últimas edições do Shantay Drag SuperStar, Malayka é um grande ponto fora da curva no fazer drag em Salvador. Inspirada na resistência do povo negro, a artista conta que fez uma pesquisa para que a drag pudesse nascer. “Uma pesquisa que girou em torno dessas monstruosidades como lugar de negação. “Quis começar um diálogo com essa narrativa negra, LGBT, gorda, debatendo classe. São monstros que a sociedade não sabe lidar, e na maioria das vezes não se relaciona com eles, ou subalterniza esses marcadores. A partir dessa realidade eu me aproprio desse lugar da monstruosidade para reverter esse quadro”, explica o artista.

No Drags da Prevenção, Malayka assume justamente o lugar de se conectar com o público afrodescendente para trazer o debate sobre a importância da saúde e trazer essa linguagem de mudança do imaginário estereotipado e monstruoso que as ISTs tomam forma. “Percebemos que as pessoas que são alvo e que ocupam um índice maior de contaminação a partir dessa perspectiva de HIV e outras ISTs são pessoas negras e trans racializadas. Meu papel dentro do coletivo é que a conscientização se faça de maneira efetiva trazendo a ideia de representatividade para além da ideia de eu estar, mas sim que existem pessoas negras pensando essa saúde e inspirando e sendo inspirada a todo instante”, explica o artista.

Como Malayka, ele ainda faz parte de outros dois coletivos: O Afrobapho e o Casa Monstra, que abordam questões de ordens da raça, gênero, sexualidade e classe e entender a arte como uma plataforma de modificação de estatísticas sociais. “No Drags da Prevenção trazemos questões que atravessam o âmbito LGBT, mas que não tem um cuidado muito específico em nenhum outro coletivo que estamos. Ele se ressalva sobre esse lugar político, institucional e social”, diz Romário.

O projeto vai fazer um ano em dezembro e o grupo conta que já construiu mais coisas para o futuro. O objetivo deles agora é conseguir patrocínio e possibilidade de levar as apresentações para festas como a Batekoo, o Carnaval, festas pré-Carnaval e as festas de verão. “Queremos ir até a porta dessas festas com insumos e trocar uma ideia”, conta Ângela.

Futuristas

Outro coletivo que Eva compõe o elenco é o Lésbicas Futuristas, que busca, por meio de performances humoradas com dublagens de artistas lésbicas ou bissexuais, como Ana Carolina e Preta Gil, trazer visibilidade para esse grupo que pouco se vê no cenário drag em Salvador. Ao apresentar essas canções, o grupo acredita melhorar a autoestima das mulheres lésbicas e bissexuais, que constantemente estão sendo invisibilizadas pela lesbofobia e bifobia, e mostram que existe espaço para todas.

Além de Eva, fazem parte do grupo as drag queens Nágila GoldStar e Towanda Verde Frita, ambas mulheres lésbicas. A última, inclusive, é vizinha de porta de Eva. Performada pela historiadora Andressa da Silva, Towanda nasceu numa pauta do coletivo Bateu Uma Onda Forte. "É a minha cara, né? Towanda Verde Frita", brinca Andressa, em referência ao nome da drag e do coletivo que milita sobre discriminação do uso da maconha.

Após ser professora de história por 10 anos, hoje Andressa se encontra na mesma posição que sua amiga Ângela: “Sem um trabalho fixo e fazendo várias coisas. Sou drag queen, sou costureira, sou cozinheira, hoster... Tira uma fichinha que eu faço”, conta Andressa. Recém-chegada na cena drag, Towanda nasceu no dia 31 de janeiro deste ano e em apenas seis meses já foi vencedora de concurso. Na ocasião, ela era a única “amapô” concorrendo ao prêmio. “Veja se as bichas estão preparadas emocionalmente para uma mulher furacão que em seis meses de drag ganha concurso?!”, brincou Ângela. “Faz parte de uma pauta mensal e ganha concurso!”, acrescentou Andressa.

Mesmo nova na cena, Towanda e Andressa já conhecem por completo como é ser uma mulher drag queen na noite de Salvador. Apesar de mensalmente se apresentar com o Lésbicas Futuristas e ter vencido um concurso, as coisas não se tornaram fáceis. Ela lembra que durante o concurso chegou a ser boicotada por algumas drags. Uma das lembranças de boicote que ela nos contou foi de quando uma das concorrentes deveria entregar a ela uma peruca para a performance que faria. “Eu ia fazer a Olivia Newton-John e precisava de uma peruca curta, ele só me entregou momentos antes de subir no palco”, recorda Andressa, que usou uma peruca cedida por outra drag. “Me apresentei e mais uma vez fui a melhor da noite”, conta.

Essas dificuldades e boicotes, no entanto, nunca foram um empecilho para Andressa. Para ela, tudo isso sempre foi motivo para continuar e mostrar que as mulheres lésbicas também têm seu espaço na cena. "Às vezes é muito difícil. É um meio que se violenta muito, mas nós conseguimos contornar isso. Nós temos essa relação de amizade, cumplicidade. Não só trocamos coisas das nossas drags, mas trocamos vida, nos alimentamos", pontua Andressa.

Ângela, que apesar de também ser nova na cena, acredita que somente agora está vendo uma coletividade entre as mulheres drags. Ela conta que sempre que surge uma oportunidade de trabalho faz questão de avisar a todas, como foi o caso da Parada de Boipeba. “Quando surgiu o convite para a Parada de Boipeba foram quatro ‘amapôs’ e três viados. Pela primeira vez éramos maioria”, comemorou Andressa. “Em nenhum momento cogitaram que mulher não poderia fazer. Mas quando se tem 10 homens e uma mulher eles vão questionar”, pondera Ângela.


..:: Saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais ::..
por Laila Cirne, Victória Valentina, Vinícius Marques e Yasmim Barreto