Max Bittencourt

O dia em que vi astronautas em SP e as trilhas que percorri deste então

Uma breve dimensão dos meus parâmetros e das minhas trilhas

Viaduto do Chá
Viaduto do Chá - Foto: Luiz Carlos Fernandes Melo Jr/Wikimedia

Desembarco no Anhangabaú, São Paulo. São onze horas da manhã e faz sol. O local está agitado. Pessoas correm de um lado para outro, assustadas. Alguns homens usando trajes parecidos com os de astronautas descem em cordas pelas colunas do Viaduto do Chá e marcham em direção a uma gigantesca caixa envolta em um tecido vermelho no centro da praça.

Tamanha confusão, volto-me para o alto. Vejo aproximando-se de mim um helicóptero, com outros “astronautas” mirando para baixo, à procura de algo ou de alguém. Ainda confuso e atordoado com o barulho das hélices, consigo escutar a música que toca em um pequeno microsystem próximo a uma dezena de moças que dançam como se fossem chacretes.

Balões de hélio surgem colorindo a praça e descortinando um jovem casal que se beija apaixonadamente em cima daquela caixa, que agora, descoberta pela cauda do dinossauro voador, revela-se uma embalagem gigante do creme dental Close-Up. Depois do beijo, sorrisos enormes, em bocas maiores ainda, olham para a câmera. Percebo as câmeras. Uma voz ao megafone grita “Corta!”. E ali mesmo, arriei as malas.

Essas poucas linhas acima descrevem o meu primeiro contato com uma produção audiovisual. Uma produção de filme publicitário. Por meio da ficção e do surrealismo tomei conhecimento do ofício de produzir e dirigir audiovisuais quase sem querer. Esse texto é importante aqui, pois dá conta do nível de envolvimento que possuo com o fazer audiovisual, ao tempo em que apresenta, de forma resumida, a quantidade de estímulos e sensações que compõem, efetivamente, a minha motivação e o meu próprio processo criativo no meu trabalho.

Logo após esse primeiro contato com uma produção de filme publicitário, comecei a frequentar a O2 Filmes, produtora de cinema e vídeo do cineasta Fernando Meirelles, como estagiário do departamento de Casting. Lá, o elenco dos filmes publicitários era pesquisado, testado e produzido por uma equipe de profissionais sob o comando da produtora de elenco e atriz Cecília Homem de Melo. Com ela foi possível aprender sobre pesquisa de elenco, a busca por novos perfis, novos tipos humanos. O convívio com os assistentes de direção no estúdio da casa de casting da O2 foi um importante aprendizado sobre direção de atores para comerciais.

Foi lá também que pude observar o trabalho de um diretor, de como extrair do ator o necessário para a realização da cena; até sobre a utilização de pessoas comuns (os chamados não atores) nas produções, eu pude aprender na produtora de cinema publicitário de Fernando Meirelles, e não com a escola neorrealista, expressão cinematográfica que só fui descobrir, de fato, mais tarde. Esse conhecimento, e tantos outros que trago comigo, foi o cinema publicitário que me deu. Dessa forma, o set de filmagem e a produção de filmes publicitários se tornaram para mim uma conexão com o mundo exterior, com outras culturas e realidades.

De imediato pude constatar que uma equipe de filmagem é um organismo único, e que cada departamento é uma parte desse sistema que trabalha com o mesmo objetivo. Apesar de realizarem seu trabalho em diferentes áreas, tanto o maquiador quanto o maquinista estão empenhados em um propósito único: o filme. A infinidade de planilhas e cronogramas elaborados pelo coordenador de produção interessam e servem à toda equipe; a pesquisa de época feita pelo Diretor e Arte, além de contribuir com a mise en scène, também não pode negligenciar a verossimilhança da narrativa, nem prejudicar o diretor do projeto, nem as estratégias de abordagem e convencimento da publicidade, nesse caso.

Oito meses depois do meu ingresso na O2 Filmes, e depois de produzir o elenco para dezenas de filmes publicitários, eu fazia assistência para o elenco em uma filmagem de Coca-Cola. O estúdio, em silêncio, ouvia o ator dizer seu texto. Em seguida, ele abriu a latinha e virou. Demonstrava sede. Alguns segundos bebendo “o produto” para a câmera, em close, até que a cena termina. Todos aplaudiram, afinal este é o costume. A diretora mandou “copiar”. Nos dirigimos, eu e o elenco, para o camarim. A instrução era para trocar o figurino e voltar para filmar a próxima cena. No caminho, sou interceptado pela assistente de direção do filme, Cláudia Alves. Ela me fez um convite para trabalhar como assistente de direção em teledramaturgia, na TV Globo. Eu fui.

Na TV passei por um novo processo de adaptação, novas aprendizagens. Outras pessoas, outro formato audiovisual, outra lógica de trabalho. Televisão. Indústria. Muitas horas diárias de gravação ou edição, muita produção, um exercício contínuo do ofício. A produção artística em um contexto televisivo. As ambiguidades. As celebridades e as pseudo-celebridades. O figurante estrela e a estrela singela.   

Ali eu estava mais próximo do diretor - Luiz Villaça - e pude observar sua técnica de trabalho no set de filmagem e também ao lidar com os atores em cena, seu modo de dirigir. Aprendi a decupar uma cena e a montar um programa na ilha de edição, que nesta época já era não-linear. Participei de reuniões de produção bastante ricas e reveladoras sobre o processo de uma produção em teledramaturgia. Pude ver Edgar Moura pôr em prática muito do que explicara em seu livro sobre fotografia cinematográfica menos de um mês depois de eu tê-lo lido. Aprendi a fazer fazendo.

Três anos depois, e mais de 90 episódios do Retrato Falado realizados, volto para o mercado publicitário, dessa vez como assistente de direção e não mais como produtor de elenco. Nesse retorno para a publicidade, percorri um bom número de produtoras de cinema publicitário de São Paulo. Na ocasião, Made To Criate, Dínamo Filmes, TVC, Academia de Filmes, para citar algumas, além da própria O2 Filmes, que me introduziu no mercado.

Entre uma publicidade e outra, Luiz Villaça, o diretor com quem trabalhei na TV Globo, me convidou para trabalhar em seu novo projeto cinematográfico, o longa metragem Cristina Quer Casar, que ainda se chamava Amor à Vista quando eu entrei para a equipe. Seria o meu primeiro trabalho em longas metragens. E foi. Reorganizei a agenda de trabalho, e de prioridades, e passei a integrar a equipe do filme.

Neste projeto, participei de algumas reuniões de roteiro e tinha abertura para colocar ideias. Passei a observar o trabalho de Mariana Veríssimo, uma das roteiristas, que me ensinou sobre a credibilidade do discurso da personagem e a criação de diálogos verossímeis, ao vê-la escrever as falas de Cristina, a protagonista do filme, vivida pela atriz Denise Fraga. Durante as filmagens desse longa, mais precisamente nos intervalos, entre uma conversa e outra com Francisco Ramalho Jr pude compreender o que faz um produtor executivo, qual é o seu olhar sobre uma obra artística, muito diferente do olhar criativo e sensível do diretor, mas não menos importante.

Vieram outros projetos e planos. Tive a oportunidade de dirigir o Decola, programa de viagem e cultura regional exibido pela TV Cultura, de São Paulo, e com apresentação de Liliane Reis. Com uma estrutura de trabalho mais enxuta e com uma verba de produção quase inviável, pois não havia patrocinadores, além de algumas prefeituras que tinham interesse em divulgar a sua cidade e a própria Liliane, o formato documental do programa me impôs uma maneira de trabalhar diferente de tudo que eu havia feito, até então.

Os prazos de realização eram mais apertados e a estrutura de trabalho e de produção tinha certas deficiências por conta das limitações orçamentárias, naturalmente. Não havia decupagens de planos nem roteiro muito elaborado, não havia visitas prévias do diretor à locação, nem produção de arte. Era chegar e fazer de primeira. Outro formato de produção e de realização onde as cenas eram pensadas na hora de gravar, pois esse era o primeiro contato do diretor (no caso, eu) com a locação e com os personagens reais e suas histórias para contar.

Era preciso criar rapidamente, pensar na visualidade e no conteúdo do material e elaborar, em poucos minutos, composições espaciais; achar soluções para os imprevistos de produção - que são muito frequentes, ainda mais em produções de baixo orçamento -  e trazer comigo o material captado, conforme o plano de gravação. Esta é uma atribuição do diretor. Na TV, no cinema ou na publicidade.

Havia, da minha parte, muita vontade de aprender e, sobretudo, de me lançar em uma nova experiência de trabalho criativo, em uma maneira diferente de “enquadrar” a realidade e olhar as coisas do mundo. Foram apenas oito programas realizados com a equipe do Decola, pois nesse período eu já havia ingressado no mundo acadêmico e tinha que dividir meu tempo entre as gravações e as aulas. O que não podia funcionar, já que ambas as atividades requerem do profissional dedicação quase exclusiva.

A minha breve participação na direção do programa já havia sido negociada desde a ocasião do convite que a apresentadora me fez para dirigi-la nesse projeto. Foi inclusive uma condição para que eu pudesse participar. Nós dois queríamos muito.

Algum tempo depois, e como consequência do meu trabalho com educação audiovisual, surge a necessidade de ampliar o alcance das obras acadêmicas realizadas não somente pelos meus estudantes, mas por alunos de todas as áreas que contemplassem  o formato audiovisual como plataforma.

O Festival de Cinema Universitário da Bahia foi lançado então em 2010 como um projeto cuja intenção era valorizar a realização, e criar mais uma janela de exibição para as produções audiovisuais acadêmicas. Com produção minha e da Multi, e com o apoio financeiro da Vivo (programa Art.MOV) através de recursos oriundos do Fazcultura, este projeto realizou duas edições de grande repercussão entre os universitários de todo o país, que enviavam, em média, 100 curtas metragens (documentários e ficções) por edição do festival.

Desde 2016 sou professor com dedicação exclusiva na Universidade Federal do Oeste da Bahia, na área de Audiovisual, onde também coordeno o Núcleo de Audiovisual do campus, responsável por criar conteúdos com relevância social e acadêmica, e também  coordenei a pós-graduação em Produção Audiovisual, lançada em 2017.

A descrição acima oferece uma breve dimensão dos meus parâmetros e das minhas trilhas - não apenas de fazer, mas de perceber, de intervir - buscando que minha experiência pessoal e profissional no campo da imagem em movimento seja útil para desenvolver e apresentar processos de aprendizagem na área do audiovisual.