Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Pelourinho
FOTO: Karoline Moreira

RITO:
Séculos de devoção e resistência

por Antonio Muniz, Camila Freitas, Dandara Amorim, Karoline Moreira e Mariana Sebastião

Vestida com um conjunto de calça e blusa coloridos, os colares favoritos no pescoço e o olhar ainda de encantamento pela missa que acabara de assistir, dona Valmira Passos, sentada em uma cadeira branca de plástico, ansiosa à espera do início da distribuição do caruru no quintal da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, diz que aquele lugar é especial: "Toda terça e todo domingo eu tô aqui, faça chuva ou faça sol. Não tem tempo ruim pra mim e aqui eu me sinto em casa".

A aposentada, com seus mais de 80 anos, frequenta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada no Largo do Pelourinho, há mais de duas décadas. Tudo começou quando sua filha mais nova estava no colégio e passou mal. “Ela fez um negócio lá, não pegou em mim, pra ficar maluca, pegou nessa criança, na minha filha. Labutei. ”, relembra ao falar sobre o que chama de “feitiçaria” que uma vizinha invejosa teria feito para lhe causar algum mal. Após passar por diversos hospitais em Salvador, o problema da jovem não era resolvido e sua saúde não melhorava.

Um dia, voltando para casa aos prantos, após visitar sua filha, dona Valmira Passos, desnorteada, entrou em uma padaria no final de linha de Pernambués e comprou um saco de pão. Sem saber ainda ao certo o que estava fazendo, pegou um ônibus, desceu no ponto próximo ao Pelourinho e foi até a Igreja do Rosário dos Pretos: “Entrei, fiquei aqui, sem saber o que ia fazer”. Uma senhora, que estava em frente ao templo religioso, disse para ela entrar, abrir o saco do pão, mostrar a Santo Antônio de Cartegeró e pedir para conceder a graça que precisava. Sem pensar duas vezes, a mãe desesperada seguiu a sugestão. Diante da imagem do santo, fez uma oração e uma promessa de que, se sua herdeira fosse curada, ela iria à missa toda terça-feira.

Dona Valmira Passos sorrindo
Dona Valmira frequenta a Igreja a mais de duas décadas
FOTO: Camila Freitas

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é uma peça importante do quebra-cabeça da Bahia, sendo um local de manutenção do protagonismo negro na história do povo baiano. “Esta igreja é, verdadeiramente, um símbolo de resistência negra, a qual opera no sentido de promover a negritude, o estudo, a abertura para a reflexão, fomentar a consciência da fé cristã católica, promover o conhecimento melhor das expressões de religiões de matrizes africanas”, diz padre Lázaro Muniz, ex-pároco do santuário, onde permaneceu atuando durante seis anos.

Quase todas as cadeiras estão ocupadas por fiéis e turistas. São 18 horas em Salvador e do lado de fora os últimos raios de sol dão aquele tom amarelado nas paredes externas da casa do Rosário. Dona Valmira Passos senta-se sempre no quinto ou sexto banco de madeira, à direita do altar central, onde fica a Nossa Senhora. Na maioria das vezes acompanhada por, pelo menos, uma de suas três filhas. Estão entre as primeiras a chegar, mais ou menos uma hora e meia antes da missa. Elas gostam de participar dos debates que trazem discussões étnico-raciais, que acontecem antes da cerimônia religiosa.

Almir Santos, membro da irmandade e coordenador da pastoral afro, que organiza as palestras e rodas de conversa, anuncia o início da celebração em homenagem a Santo Antônio de Cartegeró. Todos ficam de pé para a procissão de entrada, ao som de um cântico com base em atabaques, agogôs, pandeiros e meia lua, que dão o toque de ijexá, ritmo trazido para a Bahia por iorubás que aportaram nesse estado entre os séculos XVII e XIX.

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Interior da Igreja do Rosário com fiéis participando da Santa Missa
Toda terça-feira a igreja recebe fiéis e turistas para a "terça da benção", missa em homenagem a Santo Antônio de Categeró
FOTO: Antônio Muniz

"Sorriso Negro"

Após a procissão de entrada, o padre Jonathan de Jesus acolhe os que estão na igreja e o ministério de música puxa o canto “Sorriso Negro”, conhecido popularmente pela interpretação da Banda Fundo de Quintal e do Cortejo Afro. “Um abraço negro, um sorriso negro, traz felicidade... Negro é a raiz da liberdade! ”. Neste momento, os fiéis, de turistas aos membros da Irmandade, se abraçam.

O tesoureiro da Associação Religiosa do Rosário, Antônio Nicanor, explica a presença da música durante o rito católico como um momento de identificação e de pertença. Independentemente das diferenças, a herança vem dos mesmos ancestrais. “Um abraço negro identifica o que somos. Nós nos abraçamos, nós sorrimos, nós nos congratulamos com toda a diversidade que existe. Nós somos a raiz da liberdade”.

Ouça a música sendo tocada na igreja:

fiéis se abraçando e sorrindo
No momento em que a música abraço negro"Sorriso Negro" é tocada, os fiéis se cumprimentam através do abraço
FOTO: Karoline Moreira

O momento do ofertório tem duração maior que o tradicional, realizado em outras igrejas. Nessa parte da missa, cerca de 30 pessoas, entre membros da Irmandade e fiéis mais assíduos, levam cestos cheios de pães de vários tipos até o altar. Alguns estão alí para pagar promessas feitas e graças alcançadas, como é o caso do aposentado José Luiz Rodrigues que, após conseguir se aposentar e se mudar do Rio Grande do Sul para morar na Bahia, passou a frequentar esta igreja e todas as terças oferece os pães no altar como forma de agradecimento pela graça alcançada.

A procissão do ofertório segue sob a música “Lá vem das senzalas”, que em uma das suas estrofes diz: “Recebe Olorum nossos dons! ”. É importante destacar que Olorum, nas religiões de matriz africana, corresponde a Deus, um poder absoluto e onipresente, assim como Iansã corresponde a Santa Bárbara. “Ofertório do Povo”, composição de Zé Vicente, também faz parte do rito. As duas canções são tocadas no ritmo ijexá.

As pessoas que caminham com os pães a serem ofertados seguem dançando em movimentos que se assemelham a danças afro-brasileiras. O entusiasmo e a energia gerados pela música e as danças movimentam os fiéis naquele templo, todos se balançam mesmo que em seus lugares.

Cesto com pães
Cesto com pães sendo preparados para entrada do ofertório
FOTO: Karoline Moreira

O momento da aclamação ao santo tem suas peculiaridades. A estrofe de uma das músicas cantadas traz uma referência ao ser divino cultuado em religiões de matriz africana: “Santo, Santo, Olorum é Santo”. Durante o cântico, dois ou três membros da irmandade dançam de forma ritmada com bastante expressão corporal, no corredor da igreja. Dona Valmira Passos, que sempre se acomoda mais próxima ao corredor, é uma das pessoas que, de tão à vontade, se mistura aos que se apresentam, cantando e clamando ao santo.

A comunhão também é outro momento que se diferencia dos tradicionais santuários católicos espalhados por Salvador, já que é regida por músicas mais “animadas”. Nos demais templos ou comunidades é possível perceber que neste momento as canções costumam ser mais lentas e calmas, opostas daquelas que são tocadas no Rosário.

Ao final da missa, os pães que foram levados ao altar são distribuídos para todos os presentes, após a bênção dada pelo pároco, que encerra a celebração aspergindo água benta nos fiéis.

Guardando em sua bolsa alguns produtos que foram distribuídos na missa, Maria, a filha mais velha de dona Valmira Passos, nos conta que, das três progênitas, é a que mais a acompanha nas celebrações, mesmo morando no bairro de Cajazeiras e a sua mãe em Pernambués: “Faço questão de acompanhar, porque minha mãe se sente bem aqui e pra ter certeza que ela vai pegar o transporte certo para casa”, conta.

Mapa mostra a distância da casa de dona Valmira até a igreja
Distância percorrida por dona Valmira toda terça-feira da sua casa para a Igreja do Rosário
Google Maps

Apesar da devota de Santo Antônio do Categeró ter feito a promessa para ir toda terça-feira, a mesma participa de outras solenidades, a exemplo das missas aos domingos e da homenagem à Nossa Senhora da Conceição de Muxima. Mama Muxima, como é carinhosamente chamada pelos fiéis, também é reverenciada por irmandades das igrejas do Centro Histórico de Salvador. A Irmandade dos Homens Pretos todo ano organiza uma programação especial para homenagear a santa, que é padroeira de Angola.

Dona Valmira Passos é uma das fiéis assíduas que dizem ter vários motivos para frequentar aquele local de fé. Razões que podem ser de outros frequentadores, seja por causa da beleza do templo ou pela energia da missa com os encantos das músicas e danças ou até mesmo por se sentirem mais à vontade no lugar sagrado construído pelos antepassados negros. A nossa personagem conta abertamente o que a levou ao Rosário, um pedido que foi atendido após a promessa a Santo Antônio de Cartegeró. Mas, nem todos falam sobre as graças alcançadas. É como ensina a guia de turismo Glória Moura: “graça não se conta, a gente consegue e fica em segredo”.

Conheça um pouco mais sobre a missa na Igreja do Rosário no primeiro episódio do nosso documentário:

Visite a Igreja do Rosário dos Pretos

O templo católico fica localizado no Largo do Pelourinho, ao lado do Museu de Gastronomia e em frente ao hostel Ateliê Larouyê. Confira no mapa:

Confira os dias e horários de missa:

• Domingo: 10h
• Segunda-feira (Missa das almas): 09h
• Terça-feira (Missa de Santo Antônio de Categeró): 18h
• Última quarta-feira do mês (Missa de Santa Bárbara): 18h
• Primeira quinta-feira do mês (Missa de Santo Benedito): 18h


..:: TCC Jornalismo 2019::..
por Antonio Muniz, Camila Freitas, Dandara Amorim, Karoline Moreira e Mariana Sebastião

Coordenadora
Patrícia Moraes

Professores Orientadores
Alberto Oliveira, Ana Luisa Coimbra, Celso Duran, Marcos Uzel e Valéria Vilas Boas