Irmandade Rosário dos Pretos reunidos dentro da igreja Noviça da irmandade recebendo os votos
FOTO: Mariana Sebastião

IRMANDADE
Irmãos de cor e de fé

por Antonio Muniz, Camila Freitas, Dandara Amorim, Karoline Moreira e Mariana Sebastião

Um chamado, seja identificação ancestral ou intercessão divina, irmãs e irmãos da Irmandade dos Pretos destacam a espiritualidade do Rosário. Independente da religião, a fé e a crença nas suas origens falam mais alto. Almir Santos, membro há 15 anos e coordenador da pastoral afro, compartilhou que existe até um mistério "divino" no quintal da igreja: "pode estar com o problema que for, pegue a vassoura e aos poucos converse com eles", apontando para o céu, "varrendo aqui, achará a solução. Pode ser daqui a uma semana ou um mês, mas a glória vai chegar".

Vassouras encostadas em árvore no quintal
No quintal da Igreja, o místico se faz presente
FOTO: Karoline Moreira

“É importante dizer que essas Irmandades integradas por pessoas negras era uma iniciativa da inserção dos negros na sociedade, e o caminho mais adequado e conveniente era através da religião católica”, explica o historiador Jaime Sodré. Nascida em 1685, a Irmandade dos Homens Pretos surge com objetivo de garantir aos negros escravizados do Brasil colônia um espaço na sociedade. O grupo composto por negros livres e escravizados lutava para que os outros tivessem acesso a atendimento a necessidades básicas, como saúde e educação e, principalmente, que conseguissem a carta de alforria, além de garantir um local para que eles pudessem cultuar a sua fé.

Chegaram a existir 400 Irmandades em todo o Brasil, atualmente são cerca de 24 distribuídas em 12 estados, todas ainda continuam sendo referências para o movimento negro. "O maior cunho da Irmandade é o social. Nesses 334 anos ela briga por esse legado. A gente sabe a dificuldade que tem, os problemas que nós enfrentamos, as questões do preconceito racial, do preconceito social, mas nós não nos acovardamos", descreve o tesoureiro e membro da irmandade Antonio Nicanor.

Close de Antônio Nicanor sorrindo
Antônio Nicanor entrou para a Irmandade dos Homens Pretos pois viu nela uma oportunidade de colocar em prática um trabalho social de resistência
FOTO: Camila Freitas

"Eu sou a própria irmandade. Eu sou a própria irmandade porque assim eu incorporo os ideais dela"

(Antônio Nicanor, tesoureiro e membro da Irmandade dos Homens Pretos)

Toda terça-feira, antes da missa das 18h, a Igreja do Rosário vira palco para palestras com cunho social, político, educacional e religioso. Organizado pela pastoral afro, a Irmandade vê nesse momento uma oportunidade de contribuir para o conhecimento dos fiéis e dos turistas que estão ali presentes. Os temas são variados passando por fé, política, racismo, preconceito, meio ambiente, Nossa Senhora, Bíblia, negritude, dentre outros.

Segundo o coordenador da Pastoral Afro, Almir Santos, proporcionar esse momento às pessoas presentes na Igreja do Rosário é ajudar na educação da sociedade. “Se a gente não formar a nossa comunidade, realmente vamos ficar sem base, porque eu sozinho não sou nada, eu tenho que falar do meu contexto, da minha comunidade, das pessoas que estão perto de mim. Esse é um papel da Igreja do Rosário dos Pretos e da pastoral afro”.

Fiéis participando de mesa redonda organizada pela Irmandade
Além de palestras, a Irmandade também organiza o encontro nacional de Irmandades Negras, no qual são discutidos assuntos ligados a temática racial através de mesas redondas e palestras
FOTO: Karoline Moreira

Esse movimento traz a consciência crítica e leva consigo ensinamentos religiosos, já que em algumas falas existem a veneração por Nossa Senhora do Rosário. Saber aplicar essa dinâmica entre conhecimento e fé é um ponto a se destacar no Compromisso, documento que estabelece regras, tarefas, categorias dos membros que representam e administram a Irmandade.

A mesa administrativa formada somente por homens tem algumas dessas funções: Capelão (o padre); Prior; Vice Prior; Secretário; Tesoureiro.

E a mesa de honra formada por mulheres basicamente com as mesmas modalidades. Em 1685, foi o ano do primeiro regimento, mas a aceitação da metrópole portuguesa veio em 1826 com a confirmação de D. Pedro I. Desde então já tiveram algumas reformas, quatro reorganizações que acompanham o desenvolvimento da sociedade. Sandra Bispo conta que quando foi priora e vice da Mesa de Honra enfrentou situações de machismo, que talvez na década de 1980 eram naturalizadas, mas hoje em 2019, mulheres e homens andam lado a lado nas escolhas da associação. "Eles gerenciavam o dinheiro, as decisões, tudo. Tanto que tem um cofre lá em cima, onde quem tinha que abrir eram os homens. Agora já tem umas mulheres abrindo também", afirma a ex-vice priora.

"Essa irmandade tem um papel fundamental na liberdade do outro, porque aqui foi criada uma forma de se comprar a liberdade daqueles que eram escravizados."

Júlio Cesar, ex-prior e membro da Irmandade dos Homens Pretos

Conheça mais um pouco sobre a Irmandade dos Homens Pretos em mais um episódio do nosso documentário:

Festividade e devoção

Quatorze missas estão listadas no regimento, tem início no Natal e termina entre o dia de Finados e Conceição da Praia. Claro que neste calendário está presente o dia da celebração do Santíssimo Rosário de Nossa Senhora, a padroeira da igreja. No último domingo de outubro acontece a missa, seguida da procissão com o andor da santa, de Santo Antônio de Categeró e São Benedito.

E, na segunda-feira seguinte, a Irmandade dos Homens Pretos realiza a Missa dos Antepassados, uma homenagem, principalmente, aos negros escravizados que construíram a igreja ou que por ali passaram, além dos membros das irmandades que já morreram. Mas a celebração se estende também a reverenciar os antepassados de todos os demais fiéis.

No início desta missa, alguns papéis são distribuídos para que as pessoas escrevam os nomes dos seus parentes mortos. Em um momento especial na celebração, os membros da irmandade penduram os escritos em uma árvore seca falando os nomes que colocaram. Logo depois os demais fiéis são convidados a fazerem o mesmo, só que colocando os manuscritos em um pano roxo, que fica próximo ao vegetal.

Ao final da cerimônia eucarística, os membros da irmandade, portando velas e flores, levam o pano contendo os nomes, seguidos dos fiéis. À frente, abrindo os caminhos, um dos irmãos vai tocando um sino de mão. Todos os presentes seguem o cortejo que termina no cemitério no quintal da igreja. Lá acontecem mais orações pelos falecidos e são colocadas as flores e velas.

Irmandade reunida em procissão
Irmandade reunida na procissão em homenagem aos antepassados
FOTO: Antônio Muniz

Depois desse momento que demonstra a importância das origens de um povo que construiu aquele templo, além de fortalecer o elo com os mais velhos que deixaram sua história para os irmãos e irmãs, tem o bacalhau com toucinho, distribuído nos fundos da Igreja. Essa comida traz a memória do acolhimento.

Abraçar os irmãos é uma causa, como conta o Prior Adonai Passos, "não importa se é espírita, candomblecista, evangélico, todos são bem vindos nessa igreja". Posicionamento que revela uma herança, já que a intenção do bacalhau com toucinho era uma maneira de provar para os portugueses que não tinham muçulmanos (malês) na Casa do Rosário. O apoio da Irmandade foi importante, principalmente, para os negros que fizeram parte da Revolta dos Malês (1835). O consumo da carne de porco é proibido nos ensinamentos muçulmanos, assim a estratégia disfarçava a presença deles, quando os colonizadores não estavam, eles só comiam o peixe.

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Imagem de Nossa Senhora do Rosário
Imagem de Nossa Senhora do Rosário no andor durante procissão festiva
FOTO: Dandara Amorim

Os santos e a padroeira

A religião católica tem como costume a devoção a santos e santas, que são modelos de vida a serem imitados, uma vez que amaram e serviram a Deus perfeitamente. A prática não fugiu para a Irmandades do Rosário dos Pretos.

Segundo o historiador Jaime Sodré, a devoção a Nossa Senhora do Rosário vem da Angola, onde a santa já era cultuada. Quando os negros escravizados angolanos chegam ao Brasil, trazem consigo essa veneração. Além disso, é explicado no livro "Quatro Séculos de Devoção", escrito pela própria Irmandade dos Homens Pretos, que existe uma predileção especial da Virgem Maria pelos negros, pois eles acreditam que a santa intercedeu pela abolição dos escravizados.

Além do culto à Nossa Senhora do Rosário, padroeira da Irmandade e da Igreja, foi incorporado à Irmandade a devoção aos santos negros, como Santo Antônio de Categeró, Santo Elesbão Santa Ifigênia, São Benedito e até Escrava Anastácia. Esta última não é considerada santa pela Igreja Católica, mas de grande importância para os fiéis da Igreja do Rosário e membros da irmandade, que mantém a tradição e respeito aos ancestrais.

O tesoureiro e membro da Irmandade, Antônio Nicanor, destaca que muitas vezes os santos negros são esquecidos e desvalorizados pelas próprias dioceses da Igreja Católica, logo uma Irmandade formada majoritariamente por negros escolhe a devoção por santos negros por motivo de autoidentificação.

Tradicionalmente, os santos são louvados pelas irmandades desde os tempos da escravidão, principalmente por representarem mártires, ou seja, pessoas que morreram defendendo uma causa ou ideia, que em muito dos casos é o cristianismo. O costume é de organizar missas oferecidas pelo repouso das suas almas, apresentar flores, velas ou pães no ofertório por causa de alguma graça alcançada pela intercessão do santo, como é muito comum na Igreja do Rosário às terças nas celebrações dedicadas a Santo Antônio de Categeró.

Altar com imagens da Escrava Anastácia
Altar que fica no quintal da Igreja em homenagem a Escrava Anastácia
FOTO: Karoline Moreira

Dentro da igreja é possível perceber imagens de todos os santos que são venerados pela Irmandade. Já no quintal está um altar para a Escrava Anástacia, local onde os membros da Irmandade se dirigem toda vez que chegam ao templo, "quando chegamos aqui na casa nós precisamos pedir licença, porque esse lugar é sagrado, temos que saudar nossos antepassados", destaca Almir Santos. Anastácia foi uma escrava que, por ser curandeira, ajudou muitos doentes durante o século XVIII. Sua canonização não é verificada pela Igreja Católica por falta de provas concreta da época, contudo, ela é venerada tanto no Brasil como na Angola.

“Nas nossas costas está o cemitério, está ali um monumento da escrava Anastácia, que não é uma santa, mas é uma questão espiritual que existe muito forte dentro do legado da ancestralidade do negro no Brasil”

(Antônio Nicanor, tesoureiro e membro da Irmandade dos Homens Pretos)

Há, também, a presença de outros santos brancos, além de Nossa Senhora do Rosário. A imagem de Santa Bárbara ganhou espaço no templo, em 1987, e tem o papel de traduzir um elemento cultural importante da Bahia, que é a vinculação às religiões de matriz africana, já que é associada a Iansã, entidade cultuada no Candomblé. As missas em homenagem a Santa Bárbara acontecem na última quarta-feira de todo mês, às 18h. Anteriormente, os fiéis e a Irmandade tinham a tradição de entrar com abará durante o ofertório nas celebrações em especial, entretanto esse costume mudou e atualmente o elemento oferecido é o pão.

A imagem de Santo Antônio de Pádua, que segura uma criança com uma mão e na outra, um crucifixo, também está presente na igreja.

Conheça mais detalhadamente sobre as história de cada um dos santos negros, cultuados pela Irmandade dos Homens Pretos, no nosso perfil do Instagram: @historiasdefe_.

A Igreja do Rosário dos Pretos, para além de um templo sagrado, também é um lugar onde a irmandade se identifica e sente a força dos seus ancestrais, aqueles que construíram a igreja com suas próprias mãos. #irmandadedorosariodoshomenspretos

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por Antonio Muniz, Camila Freitas, Dandara Amorim, Karoline Moreira e Mariana Sebastião

Coordenadora
Patrícia Moraes

Professores Orientadores
Alberto Oliveira, Ana Luisa Coimbra, Celso Duran, Marcos Uzel e Valéria Vilas Boas