Eu que vi você nascer, crescer, ser Ilê

por Adriele Lisboa, Luiza Nascimento e Paula Mayara Câmara

Hildelice Benta dos Santos teve uma infância feliz na Liberdade, um dos bairros mais negros de Salvador. Nascida na capital baiana em 1960, ela brincava de boneca, amarelinha, bambolê, pula-pula, gude, mas o que ela mais gostava era de brincar de roda com suas irmãs Hildete e Hildemária.

A educação de Hildelice foi baseada no respeito. Ela nunca presenciou uma briga dos pais, e nem ouviu nenhum palavrão dentro de casa. Porém, pela criação rígida que recebeu do pai, cresceu tímida. Por outro lado, sua mãe, Dona Hilda, era uma pessoa amável.

Aos 14 anos Hildelice ouviu o seu irmão mais velho, Antônio Carlos, falar com a sua mãe sobre a vontade de criar um bloco afro. A preocupação da mãe era notória, devido as circunstâncias em que o país se encontrava. Era 1974, período de ditadura militar. Antônio queria colocar o nome Poder Negro no bloco, mas sua mãe não permitiu, e ele teve que acatar a ideia de pôr um outro nome.

A partir daí a vida de Hildelice passou a ter uma rotina diferente da maioria dos adolescentes. Ela via sua casa se transformar em um depósito de instrumentos e fantasias carnavalescas, e sediar várias reuniões que deram o início da história do primeiro bloco afro do Brasil: o Ilê Aiyê.

“Como é que eu não digo que o Ilê é irmão? Ele nasceu aqui dentro. Eu estou acompanhando desde o seu nascimento. É uma história muito grande dentro de mim que fui criada vivendo junto com o Ilê”.

A rotina na casa era agitada, principalmente no mês de fevereiro. Hildete ficou responsável pela confecção das fantasias, e assim virou estilista do Ilê. Uma mesinha foi colocada em frente ao barracão, onde Mãe Hilda produzia as carteirinhas dos associados do bloco, que foi para as ruas em 1975. A entrega dos materiais para o público também era feita na casa. “As pessoas vinham pela frente, entravam, ficavam na fila para pegar a carteirinha e depois iam para a janela pegar a fantasia”.

A presença feminina era muito forte na casa de Hildelice, pois sua mãe era Iyalorixá, e fundou o terreiro Ilê Axé Jitolu, antes mesmo do seu nascimento. A casa de Hildelice ficava dentro desse terreiro. Mãe Hilda Jitolu ficou conhecida pela força com que preservava a cultura africana, e era guia espiritual da comunidade e do Ilê Aiyê. Seu terreiro é reconhecido por festas de muita comida e excelente receptividade.

Hildelice e seus quatro irmãos foram criados lá dentro, mas nunca obrigados a seguir a religião. Mãe Hilda deixava claro que essa era uma escolha dos filhos, e todos só aderiram ao Axé depois de adultos. Só aos 20 anos Hildelice entrou para o candomblé. Dez anos depois, ela viu sua mãe criar uma banca dentro do terreiro. Mãe Hilda tinha como objetivo ajudar as crianças da comunidade e os filhos dos seus filhos de santo. O barracão e a parte inferior do terreiro passaram a abrigar as salas de aula.

Por falta de recursos, o início da banca se deu através de doações. Foram doadas cadeiras, mesas e fogão para a produção da merenda para as crianças. Quando havia festa no terreiro, o espaço era desarrumado, e depois tudo era recolocado no lugar. O dinheiro só chegava até a banca, quando o Ilê conseguia fazer show. Por falta de recursos para contratar professores, Hildelice, que na época já era formada em magistério, se juntou a sua irmã Hildemária e começou a lecionar para as crianças.

A banca assumiu o formato de uma escola com o ensino voltado para alunos da alfabetização até a 3ª série (atual 4º ano). Por ter nascido em um terreiro, havia a burocracia para conseguir uma escritura, e por isso não era possível colocar uma placa com um nome de identificação. Ela começou a ser conhecida através dos pais dos alunos que gostaram do desenvolvimento dos filhos, e contaram para outros pais da região.

Enquanto isso, o bloco afro também foi se expandindo, e em 2001, devido a proporção que tomou, o Ilê saiu do terreiro Axé Jitolu, e alugou em espaço maior na mesma rua, para conseguir suprir as necessidades daquele momento.

Infelizmente, Hildemária morreu em setembro de 2003, e não estava mais presente para desfrutar dos momentos seguintes. Ela e Hildelice eram muito amigas, e parceiras nos desfiles do Ilê. A partir desse momento Hildelice parou de seguir o bloco durante o Carnaval. Dois meses depois da morte de Hildemária, o Ilê inaugurava uma sede própria, que levou o nome de Senzala do Barro Preto.

A escola nasceu como um sonho de Mãe Hilda, que disse que antes de morrer, queria uma escola com o seu nome. Cada vez mais alunos estavam entrando na escola, e em 2004 ela saiu do terreiro Axé Jitolú e foi para a Senzala, que já havia sido pensada para abrigar a sua estrutura. Foi assim que surgiu a Escola Mãe Hilda, tornando o sonho da mãe de santo real. A escola passou a ensinar também alunos da 4ª série (atual 5º ano).

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Fachada da Escola Mãe Hilda
  Senzala do Barro Preto, no bairro do Curuzu -  Foto: Luiza Nascimento

Para não perder o vínculo com o local que foi criado, e para a alegria de Mãe Hilda, quando a escola foi para a sede, as crianças eram levadas ao terreiro para conhecer a história do surgimento. Essas atividades foram interrompidas quando Mãe Hilda ficou debilitada decorrente a problemas de saúde.

A essa altura os irmãos de Hildelice já haviam saído de casa, e ela já tinha uma filha. Em 2005 resolveu entrar na faculdade de Pedagogia, por orientação da mãe, que queria que a filha conseguisse se expressar melhor.

Pela distância em que estudava, Hildelice precisava sair de casa horas antes do início das aulas, e era Hildete quem ficava com sua mãe. Em setembro de 2009, no último semestre da faculdade, Hildelice recebeu a notícia mais triste da sua vida: sua mãe havia morrido. “Eu sinto muita falta de mãe, da convivência. Eu aproveitei muito ela, moramos juntas, mas eu sinto muito a falta dela”.
Mãe Hilda se tornou uma figura importante para Salvador, pelo trabalho que desenvolveu no Curuzu ao longo da vida. Toda essa dedicação rende bons frutos até hoje. Há uma Unidade de Emergência com seu nome na comunidade. Este ano, a prefeitura começou uma obra de requalificação do Curuzu, e com o fim das obras, o circuito de carnaval do bairro da Liberdade passa a se chamar Circuito Mãe Hilda.

Com a morte de Mãe Hilda, as crianças passaram a visitar o terreiro apenas na Semana da Mãe Preta (semana criada pelo Ilê em homenagem à Mãe Hilda), e durante a primavera. “A gente passa pelo barracão, e vai para o quintal para os meninos verem onde nasceu a escola”.

Quando o líder espiritual de um terreiro morre, os trabalhos não podem parar. Por isso, há um ritual para a escolha da sua sucessão. São feitas obrigações na casa, e no dia da escolha toda a família do Axé é convocada, desde as crianças iniciantes até os filhos de santo mais velhos.

No dia da escolha para a sucessão de Mãe Hilda, o barracão estava lotado, e assim todo mundo viu o momento em que o pai de santo jogou os búzios, que anunciaram a escolha dos orixás: Hildelice Benta passou a ser a Iyalorixá do terreiro Ilê Axé Jitolú, substituindo assim, a sua mãe. “Me sinto feliz e agradecida de dar continuidade ao terreiro que ela começou sendo mãe espiritual do Ilê e de todos que o acompanha”.

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Mãe Hildelice
  Mãe Hildelice Benta dos Santos, líder espiritual do terreiro Ilê Axé Jitolu -   Foto: Mayara
Câmara

Mãe Hilda saía sentada em uma cadeira em cima do trio, vestida de baiana, na segunda-feira de Carnaval. Quando se tornou líder espiritual do bloco, Mãe Hildelice passou a seguir essa tradição e acompanhar a saída do Ilê na segunda-feira, porém segue na avenida com duas baianas a acompanhando.

Após assumir o terreiro houve uma situação que marcou a mãe de santo. As festas costumam ser iniciadas com a cantoria de um Ogan, porém ele se atrasou e as mulheres presentes decidiram abrir a cerimônia cantando. “Ele não veio, e aí só mulheres cantaram. No final ele chegou, e saímos gritando, agradecendo e louvando, dizendo que a gente pode, porque a mulher pode tudo. A mulher sempre foi quem dominou aqui, sempre estava à frente de tudo, e continua sendo”.

Se o poder é bom, eu quero poder também

Se no terreiro Ilê Axé Jitolú a quantidade de mulheres é grande, na Escola Mãe Hilda ela é total. A direção, coordenação e o corpo de professores é inteiramente formada por mulheres. Essa determinação feminina que começou por Mãe Hilda, se reflete até em quem não a conheceu pessoalmente.

Jéssica Letícia Silva é professora do 3º ano e enxerga Mãe Hilda como um referencial de vida: “Em um momento em que não se via falar sobre feminismo, ainda mais dentro da periferia, foi surpreendente ela conseguir ser líder espiritual de uma comunidade e levantar uma escola. A mulher negra é a mãe África. Nada nasce sem um útero. A potência da mulher está aí, em fazer nascer, dar vida, acolher e cuidar. Ela fez a escola nascer e acolheu e cuidou das crianças”.

Hoje, a maioria dos adultos das adjacências foram alunos da escola na época do terreiro. Boa parte deles já são pais, e agora são seus filhos que estudam lá.

O objetivo principal da Escola Mãe Hilda é educar as crianças de modo a incentivar a sua autoestima, e disseminar a cultura negra. O ensino é moldado de acordo com a turma, pois por se tratar de crianças, elas entendem mais facilmente a partir de músicas e brincadeiras. Em 2017, as professoras conversaram com Mãe Hildelice para o ensino ser ampliado para o grupo 4 e 5, pois as crianças que chegavam para ser alfabetizadas não tinham nenhuma noção de leitura e escrita. Como diretora da escola, Mãe Hildelice acatou o pedido.

Por ser responsável por carnavais temáticos, o Ilê produzia cadernos de educação que no início circulava apenas na Escola Mãe Hilda, mas depois adentrou em outras escolas públicas e até em algumas privadas. Os cadernos falavam sobre o negro, e temas já apresentados pelo Ilê no Carnaval, como Candaces, Maranhão, Bahia e Angola. A produção do material foi interrompida devido às dificuldades financeiras.

Quando Antônio Carlos dos Santos (Vovô) fundou o Ilê Aiyê, já pensava em ganhar prêmios carnavalescos, mas ele não imaginava que sua mãe ganharia prêmios de educação: “Eu não queria isso, eu queria ser carnavalesco. Minha mãe que era muito antenada e começou com a escola”.

Vovô do Ilê é um dos homenageados na escola. Em datas importantes para o orgulho negro, as crianças têm aulas voltadas para as Pérolas Negras (forma como são chamadas as personalidades homenageadas), contando o papel importante que essa pessoa desempenha/desempenhou na sociedade, para que as crianças cresçam tendo como referência uma personalidade negra. Entre os homenageados também estão Mãe Hilda, Mário Gusmão e Pelé.

O Natal das crianças também é diferente. Buscando fugir do clichê do Papai Noel, em 2018 foi feita uma atividade envolvendo Nelson Mandela. Para o ano presente, o tema de encerramento escolhido é “Que bloco é esse? ”. Já no Dia do Índio, os alunos são apresentados aos alimentos que os índios comem, as formas como eles vivem em grupo, tentando desfazer a imagem do índio apenas ligada à figura do nudismo.

As aulas agradam aos alunos, que tem a sua imaginação estimulada. Dara Hellen, 7, é aluna do 1º ano, e adora pintar. As cores que ela mais gosta são amarelo, preto, vermelho (porque são as cores do Ilê) e rosa. Seu encanto pelas cores na aula de Arte sede espaço a uma outra matéria que ela gosta mais ainda: Educação Física, onde pode brincar com seus amigos.

Dara guarda em sua memória o dia que mais gostou na escola: quando uma Deusa do Ébano (mulher escolhida pelo Ilê anualmente para elevar a autoestima negra feminina) apareceu para visitar as crianças. Outro dia lembrado com carinho por ela é um projeto em que ela mesma foi a rainha da escola: “Eu fiquei muito feliz. Tinha todo aquele brilho, todas aquelas cores. Foi muito divertido esse dia".

Dara tem outro motivo especial para gostar da escola. A sua prima Tairine é também a sua professora, e ela se sente em casa todas as tardes. Tairine Maria Santana tem 28 anos, e sua relação com o Ilê começou muito antes de ser professora da Escola Mãe Hilda. Sua mãe Tânia, a levava para os desfiles do bloco desde que ela ainda estava em sua barriga, e ela é ligada ao terreiro desde cedo. Tairine foi aluna da Banda Erê (outro projeto que o Ilê desenvolve), onde permaneceu até seus 12 anos. Nessa época ela adorava brincar de escolinha com suas bonecas, e ensiná-las.

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Dara Hellen e Tairine Maria
  Dara Hellen e Tairine Maria -   Foto: Mayara Câmara

Tairine cresceu e começou a cursar Pedagogia, e no seu 4º semestre da faculdade teve oportunidade de fazer parte da equipe de professoras da escola. De lá para cá já se passaram oito anos, e desde então ela vive experiências diferentes a cada ano. Tairine busca compreender a individualidade de cada aluno para estar presente na sala de aula como mediadora do processo de aprendizagem.

“O que eu sei hoje, agradeço ao Ilê. Tairine sem o Ilê seria uma Tairine rasa, sem nada. O ilê é uma escola de vida, muitas coisas eu aprendi e continuo aprendendo aqui e no terreiro, é um conhecimento total de mundo. Sinto muito amor, felicidade e gratidão”.

Apesar de ser próxima ao Ilê desde cedo, ela não estudou na Escola Mãe Hilda. Em sua infância sofreu bullying no ambiente escolar e não conseguia se reconhecer como negra: “Se eu tivesse oportunidade de um ensino assim, seria diferente, pois eu teria me conscientizada da cultura negra e me aceitado como negra desde pequena”. Por isso, ela faz questão de levar esses ensinamentos para outra escola em que leciona.

Assim como Tairine, a professora Jéssica também sofreu bullying na infância. Filha de mãe branca com pai negro, estudou todo o ensino infantil em escola privada com o formato classista e embranquecido. Foi apenas na vida adulta que Letícia teve o contato com a identidade e a autoafirmação, e passou a se entender. Hoje, comemora por poder ensinar aos alunos tudo o que não teve oportunidade de aprender, e em um ambiente que ela faz o que acredita.


Alunos da Escola Mãe Hilda - Foto: Mayara Câmara

O preconceito não é um mal do passado. Ele ainda está presente na sociedade, e disseminado desde cedo nas escolas. A função da Escola Mãe Hilda é combater qualquer ato discriminatório dentro do ambiente escolar. Para isso, os ensinamentos sobre raça e religião são debatidos diariamente com as crianças para que eles se respeitem e possam conviver em harmonia.

A escola ensina o currículo formal com aulas de Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes e Educação Física, mas tudo é passado de forma diferente para as crianças. Às quintas-feiras ainda, há o componente de cultura africana.  “Se o Ilê trabalha com essa temática, e surgimos a partir dele, a cultura negra deve ser falada e valorizada aqui dentro também. Como é que uma escola sem vínculo com a prefeitura e com o estado vai deixar de falar sobre a cultura negra, se a gente está dentro de um espaço que é negro? ”, reforça Mãe Hildelice.

Apesar de ter origem no terreiro e muitos alunos serem do candomblé, há crianças evangélicas também, e a religião não interfere na relação delas. “A gente não passa isso para os alunos. É um respeito que eles já trazem de casa. A gente ensina cultura, mas religiosidade a gente não ensina”, diz Jéssica.

Embora o trabalho de inclusão seja desenvolvido pela instituição, as crianças não estão isentas de racismo em outros ambientes. Para a eficiência do trabalho para além do âmbito escolar há o Serviço Social, que é aliado às atividades desenvolvidas no Ilê Aiyê, e está presente todos os dias na instituição. Através dele são tratadas questões familiares e qualquer outro fator que possa interferir no desenvolvimento da criança. O serviço social age para preparar eles, e fortalecer o psicológico no processo de reconhecimento como negro.

O papel das professoras vai além da sala de aula, elas têm a missão de conhecer os alunos e perceber o comportamento de cada um deles, e ainda conseguir ganhar a confiança individual para que se sintam seguros em compartilhar as suas vidas com elas, e isso ser discutido junto com a direção e o serviço social. “Eles se sentem acolhidos. Não só eles, como a família. Se percebemos alguma situação a gente aciona o serviço social, que as encaminha para um suporte psicológico”, observa Jéssica.

Maria Luiza Freitas, 10, entrou na escola por causa de suas primas, mas acabou descobrindo a profissão que quer seguir. Ela é aluna de Jéssica, e vê na professora a referência para o seu futuro. “Ela passa isso para mim, a vontade de querer trilhar o caminho da educação, de querer estar onde eu estou, como diz aquela música ‘Se o poder é bom, eu quero poder também’. É como se fosse um feedback para eu saber que a caminhada está dando certo”, aponta Jéssica.

E essa caminhada começou há 25 anos. Nascida e criada no Curuzu, ela sempre enxergou os traços da comunidade nas músicas do Ilê.  “Estamos dentro da periferia, mas na verdade o Ilê é um quilombo, onde junta os seus iguais e trabalha a autoestima, identidade, afirmação e o ideal”.

Jéssica é professora na Escola Mãe Hilda há apenas um ano, mas uma situação provou para ela que a relação de professor e aluno não é distante, como ela achava que seria.

Alexander é muito agitado, e por isso sempre senta na primeira cadeira, para ficar mais próximo da visão de Jéssica, e ela acabou desenvolvendo uma ralação muito próxima com ele. Em uma sexta-feira ele escreveu uma carta para ela.

No sábado, Jéssica recebe uma ligação. Era a mãe de Alexander dizendo que havia acontecido um acidente domiciliar. Ao lavar o cabelo, o shampoo caiu no olho da criança, danificando sua córnea, e o fazendo ficar cego. Letícia ficou sem chão, e continuou mantendo contato com a família, para saber a procedência da situação.

Só depois de 15 dias, Alexander voltou às atividades normalmente, e enxergando. “Eu beijei ele, abracei tanto, e disse ‘não faça mais isso’, mas ele não tinha culpa. Hoje ele usa óculos por causa desse acontecimento, e eu pego no pé dele ‘vai para o intervalo tira o óculos, mas quando voltar coloca o óculos de novo’”.

Esse cuidado é recíproco. Jéssica tem 16 alunos, e em seu aniversário recebeu 50 cartas deles. “Eu não sei como isso aconteceu. Fizeram com o material daqui, então estavam fazendo escondido de mim. Toda carta que eu leio é uma água no coração, um respirar. São tantos contras, mas esses pós fazem tudo valer a pena. Eu tô aqui por eles”.

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Letícia com alunos  
Jéssica Léticia e seus alunos. Da esquerda para direita: Alexander, Jéssica Leticia, Malu, Camile, Maria Eduarda e Elaine -
Foto: Luiza Nascimento

Esses contras a que ela se refere são devido ao período delicado em que começou a ensinar na escola. Em 2018 houve uma crise que quase ocasionou o seu fechamento. O Ilê Aiyê é uma ONG, que depende da aprovação de projetos para se manter. É a partir da verba desses projetos que são feitos os pagamentos das professoras, merenda dos alunos e atividades recreativas. Com a falta de aprovação dos projetos, e sem patrocínio, a batalha para a continuação dos trabalhos passou a ser árdua. “Antes de contratar, eu preciso explicar para as professoras que não tenho condições de pagar bem. Elas entram porque se apaixonam pelo trabalho que é feito aqui”, conta Mãe Hildelice.

Algumas escolas provenientes de blocos afro já fecharam as portas pelo mesmo motivo, mas Mãe Hildelice tem uma razão especial para vencer esse obstáculo: “Eu não posso desistir de uma escola que leva o nome de minha mãe. Eu continuo lutando junto com as professoras. A gente pede a Deus, aos Orixás e ao espírito de luz de mãe para continuar nos guiando”.

A escola é independente, e sobrevive com a ajuda de pais e pessoas da comunidade. Em 2019, as aulas seguiram normalmente, porém as atividades recreativas foram reduzidas. A Semana da Criança era um evento muito esperado pela comunidade, pois era o momento em que a escola abria as portas para receber todas as crianças do bairro em uma grande festa. Nos últimos anos, por falta de recursos, a festa passou a ocorrer apenas para os alunos.

No vídeo, Jéssica Letícia e seus alunos falando sobre a vivência na escola.

 

Alexander Ribeiro, 8, acompanha o Ilê todos os anos no Carnaval, junto com a mãe, a madrinha e a prima, mas esse é o primeiro seu primeiro ano na Escola Mãe Hilda. Ele se diverte nas aulas de Educação Física, pois o possibilita a fazer uma das coisas que ele mais ama: jogar futebol.

Essa paixão de Alexander divide espaço com outra. Além de jogar bola, ele é apaixonado por tocar, e foi esse um dos motivos da sua insistência para entrar na Escola Mãe Hilda. É que a escola é apenas uma das ações sociais que acontecem dentro da Senzala do Barro Preto. Outra delas permite que as crianças aprendam a tocar percussão: a Escola de Percussão, Canto e Dança, Banda Erê.

Se não fosse o Ilê Aiyê...

Francine Vitória Noel, 10, é colega de classe de Alexander. Das 14 às 17 horas eles estão na Escola Mãe Hilda. Há um ano atrás Alexander passava a manhã toda brincando de skate, já Francine assistia desenho animado na casa da avó. Hoje, eles e mais 38 crianças passam o dia na Senzala do Barro Preto, desenvolvendo atividades que não só influenciam nas suas infâncias, mas podem somar no futuro. 

No turno oposto ao horário letivo, as crianças participam da Banda Erê. Assim como a escola, o projeto também foi pensando por Mãe Hilda. Ela não estava feliz em ver as crianças na rua enquanto seus pais estavam trabalhando, e queria uma ocupação para elas. Na mesma época, o mestre de percussão, Senac, que treinava a banda adulta pediu para Mãe Hilda para ensinar algumas crianças no quintal do terreiro. 

Foi então que em 1992, a Iyalorixá decidiu unir as duas ideias: “Se em um turno as crianças ficam por aí, sem fazer nada, porque eles não aprendem a tocar?”. E assim se deu início a uma oficina de percussão, em um barracão de madeirite no quintal do terreiro Ilê Axé Jitolu, e desde 2004 é sediada pela Senzala do Barro Preto. Assim, a associação se tornou o maior centro de atividades culturais desenvolvida no bairro do Curuzu. 

Através das aulas, crianças de periferia desenvolvem a autoestima na medida em que dançam, cantam, tocam e vestem- se de acordo a tradição africana. 

Acompanhe a rotina de Francine Vitória:

Francine é apaixonada pelo Ilê, e tem a tradição de segui-lo todos os anos no Carnaval. “No sábado desse ano tinha muita gente, e minha mãe não quis me levar até o Plano (Inclinado). Eu fiquei muito triste, mas minha mãe disse ‘Não fique assim, filha, é o primeiro ano que a gente não vai até lá’. Quando eu estava indo embora encontrei com minha madrinha, e ela disse ‘Francine, você quer ir embora? ’, eu não fui, e a gente foi até a avenida curtindo o Ilê”.

Se no sábado Francine fica ansiosa, no domingo é ainda pior, pois é o dia em que toca junto com a banda. Os alunos da Banda Erê ensaiam durante um ano para fazer bonito para a multidão. “No primeiro dia que eu toquei, deu um nervoso e eu errei. No segundo dia eu comecei a aprender. Então eu entendi que se você erra hoje, amanhã você aprende”.

Para praticar, Francine usa as panelas de sua casa. Quem não gosta muito da ideia é Geruza, sua mãe, por ter uma filha pequena, que acorda com toda a barulheira. Apesar de se irritar, ela reconhece a felicidade da filha por fazer o que gosta. Geruza nasceu e foi criada na rua do Progresso, localizada atrás da senzala, lugar onde cria os quatro filhos. Seus dois filhos mais velhos fizeram parte da banda, motivo que inspirou Francine.

Hoje, ela se sente realizada em poder fazer parte do projeto: “ Eu me sinto tão bem na banda. E isso aqui não é para passar tempo. Eu aprendo muito aqui. No meu primeiro dia falaram para mim ‘Francine, você vai ser uma ótima percussionista e dançarina’, e eu comecei a chorar”.

Sobre as aulas 

No candomblé, cada orixá tem toques, cantigas e modos de dança específicos, responsáveis por iniciar e finalizar as cerimônias. Na segunda-feira, durante a aula de Toque Sagrado, as crianças aprendem sobre essa cultura, através dos ensinamentos com o atabaque e o agogô. Há também uma roda de conversa no início das aulas para desmistificar alguns assuntos acerca da religião. As aulas são ministradas pelo educador Jacinto Souza.



Alunos na aula de Toque Sagrado - Foto: Luiza Nascimento

Devido a confecção das fantasias que ocorrem durante o Carnaval, há uma grande quantidade de tecido que não é utilizado, e é esse o material usado às terças-feiras, nas aulas de Arte em Tecido. Os alunos confeccionam blusas, saias, bolsas, e até sacolas de pão, através do bordado e aplicações em tecido com ponto caseado.

A figurinista do Ilê, Dete Lima, e Railda Costa são responsáveis por essas aulas desde o início, o que gerou uma relação de parceria entre elas. “Nós estamos trabalhando juntas desde que nossos filhos estavam pequenos. Hoje já está todo mundo dono de sua vida, formado, com família, e a gente continua trabalhando com tanta amizade, uma respeitando a outra, então o Ilê é família”, conta Dete.

Quando as aulas de arte em tecido começaram a ser ministradas, tinha-se a intenção de produzir um bazar a cada final de ano, com os trabalhos produzidos, para ajudar na compra de materiais para dar continuidade às aulas, mas isso não foi possível: “Eles ficam tão realizados com o trabalho que fazem, que ficam querendo levar para casa para mostrar para os pais, e a gente abraça o pensamento deles”.

Na quarta-feira acontece a aula de dança voltada para o estilo afro, maculelê e o macatu, todas praticadas de forma livre, onde as crianças são incentivadas a escutar e sentir a música, e a partir de aí fazer os movimentos que o corpo delas pedir. Essas aulas como tem como educadora Daiana Ribeiro, Deusa do Ébano de 2013.

Quatro anos após vencer o concurso, Daiana voltou para o Ilê para compartilhar com as crianças o amor pelo bloco afro através dos movimentos e contribuir para o futuro das crianças: “As mães chegam aqui contando ‘eles estavam se envolvendo com pessoas erradas, e hoje estão aqui. Saber que meu filho está aqui no projeto, para mim é um alívio, porque sei que ele vai estar aqui, e não correndo perigo’. A sensação de estar plantando uma sementinha na vida deles, e que mais tarde, mesmo eles não se tornando dançarinos, vão levar o que aprenderam aqui para a vida, é gratificante. Eles estão aqui, aprendem várias coisas e podem passar para a comunidade deles”.

As aulas de percussão e canto trazem músicas do repertório do Ilê Aiyê, e tem respectivamente, Jacinto e Vinicius Silva como educadores. Jacinto enxerga a música como ferramenta fundamental para a educação das crianças, e busca levá-las à reflexão a cada letra cantada e tocada: “É preciso que elas se reconheçam no que estão cantando. A música transforma vidas, e é capaz de fazer com que essas crianças se sintam bem”.

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Alunos na aula 
  Alunos nas atividades desenvolvidas pela Banda Erê -  Fotos: Luiza Nascimento

Escute o trecho de uma das músicas ensaiadas durante a aula, “Rosa negra meu amor”, interpretada por Francine Vitória.

“É uma coisa que ainda me emociona, ver as crianças cantando as músicas, tocando. Mas a ideia aqui não é formar artistas, é formar cidadãos. Aqui damos oportunidades para eles, como aquela música que fala ‘se não fosse o Ilê Aiyê’”, lembra Antônio Carlos Vovô.

A Banda Erê conta também com reforço escolar de português e matemática, e aula de cidadania. Durante o período de Carnaval, acontecem aulas de perna de pau, onde os alunos têm a oportunidade de apresentar essa modalidade na avenida. Inicialmente eram ministradas na instituição aulas de capoeira, informática e relações interpessoais, que foram extintas após a crise que o Ilê sofreu em 2017, o que ocasionou na perda de alguns professores.

Quando a Banda Erê foi criada, as mães iam levar as crianças para assistir as aulas, mas devido ao tamanho da ladeira do Curuzu, elas optavam por ficar esperando na sede até os seus filhos terminarem as atividades, e só depois retornavam para suas casas. Mãe Hilda resolveu criar cursos profissionalizantes para essas mães. O projeto durou alguns anos, mas foi suspenso também por falta de recursos, e até hoje não retornou às atividades.

A solução encontrada para a reestruturação da Banda Erê veio através da participação das crianças em eventos ao decorrer do ano. O cachê cobrado pelas apresentações da Banda Erê, geralmente são pedidas em materiais como lápis, borracha, caneta, farda ou merenda.

Fazendo parte da Banda Erê, o aluno não é matriculado em apenas uma aula, é necessário que ele participe de todas as atividades, e se esforce para ter um bom desempenho. Há grande índice de evasão durante o ano, mas como coordenador, Paulo Cesar, mais conhecido como Seu Black, arranjou uma solução: “O limite de alunos matriculados era de 40, divididos entre manhã e tarde. Mas eu sempre abro 60 vagas, pois como tem evasão, não ficamos com turmas incompletas”.

Seu Black acredita que além do benefício às crianças, a Banda Erê contribui indiretamente na renda das famílias, que são em grande parte de classe baixa: “Os alunos passam o dia aqui, fazem duas refeições, é um custo que os pais passam a não tem mais”.

Para ser aluno da Banda Erê, não é preciso estudar na Escola Mãe Hilda, porém é obrigatório que esteja matriculado em alguma rede pública ou privada de ensino. A idade de participação é entre 8 e 16 anos, porém novos alunos só são aceitos até os 12 anos.

A Banda Erê serve como porta de entrada para a banda oficial do Ilê. Quando concluído o ciclo de aprendizagem, o aluno tem a chance de participar da Banda Aiyê, se houver disponibilidade. Há ex-alunos que tiveram seus trabalhos reconhecidos internacionalmente, e formaram bandas na Europa.

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  Grupo Dandarerê - Foto: Luiza Nascimento

Todos os valores de uma raça estão presentes

Dançar, conversar, rir e sambar, são as atividades realizadas todas as segundas-feiras nos encontros do grupo de idosos, Dandarerê, localizado na sede do Ilê Aiyê. O grupo tem 15 pessoas, sendo em sua maioria, moradores do bairro do Curuzu.

Nilza Maria Virgens tem 75 anos e participa desde o primeiro dia de reunião, há 18 anos e lembra de como tudo começou. “Eu frequentava um grupo de idosos na Lapinha, porque tive um problema de depressão. Um dia tava na varanda e vi duas vizinhas saindo, pedi para elas me levarem no grupo, mas só podia entrar quem tinha 60 anos, eu tinha 53, elas me levaram e a responsável falou que eu era muito nova e eu insistir falando: ‘Ó minha filha, por favor me deixe ficar, eu tô precisando de alguma coisa’. Consegui convencer e comecei a reformar a ficha dos idosos, me fiz útil”. Nilza percebeu que o grupo de pessoas que saíam do Curuzu para ir às reuniões em outros bairros era grande e começou a se articular para conseguir fazer um grupo de idosos em seu bairro.

Para Crispiniana Santana, 76, estar no grupo desde a fundação a ajudou para que não entrasse em depressão. “Minha vida foi muito agitada, eu saía de um trabalho e ia para outro. Já pensou se eu me aposentasse e ficasse em casa sem fazer nada? Você não sabe quanto eu agradeço toda vez que eu estou aqui, porque se não fosse isso eu já tinha entrado em depressão”.

Aos 95 anos, Laura de São Pedro é a integrante mais velha e não falta nenhuma reunião. Ela é apelidada carinhosamente como “bebê do grupo”. Para fazer parte do Dandarerê é necessário ter pelo menos 50 anos, mas a quantidade de idosos presentes nas reuniões é pouco, se comparado a quantidade de moradores do bairro acima da idade mínima.

Conheça os integrantes do grupo Dandarerê:

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Para Sônia Maria Ferreira ,70, parar um dia da semana para conversar faz muito bem a ela. “Somos uma família, uma conta o problema, a outra tenta resolver, a gente faz orações para quem está doente e quem não está também, aqui é um por todos e todos por um, temos que agradecer por estar com essa resistência”.

E engana- se quem pensa que as atividades desses idosos param por aí. Vera Lúcia tem 67 anos e além de fazer parte do Dandarerê também participa de aulas de capoeira, maculelê, e expressões corporais, que acontecem aos fins de semana em outro local.

Além dos momentos de brincadeira, existem também conversas sobre assuntos sérios. Nilza reclama de situações desagradáveis que têm ocorrido com frequência com motoristas de aplicativos: “Quando vê que a corrida é para o Curuzu, eles desistem. Precisa a gente ir andando, descer a ladeira, e pegar lá embaixo, porque para vir para o Curuzu eles não vem. Tem que botar na internet, porque isso de bairro de risco é preconceito. Nunca vi nenhum motorista ser roubado aqui, mas em bairro nobre vejo direto”.

Após os assuntos mais sérios, a descontração acontece com a atividade mais esperada do encontro. O samba de roda acontece em todas as reuniões, e eles não se incomodam com as limitações do corpo. “Quase todo mundo aqui tem problema de artrose, eu fui no médico na minha última crise e ele disse que podia operar, mas eu não poderia ter a mesma vida que tenho. Eu disse: ‘Eu posso sambar, doutor? Se eu não posso sambar, eu não vou operar’, e não operei, porque eu adoro sambar”, conta Nilza.

Assista um trecho do Samba de roda que acontece nos encontros.

 

Eu quero direito sem o preconceito

Negligência familiar, abandono e automutilação, são algumas das demandas trabalhadas por Jamile Teles e Delma Miranda, assistentes sociais na Associação Cultural Ilê Aiyê. Dos cinco anos de existência do projeto, Jamile atua há quatro e fica feliz em saber que já contribuiu positivamente na vida de várias pessoas. “O retorno que eles nos passam é essencial para saber se nosso trabalho está tendo resultado”.

Com o surgimento em 9 de setembro de 2014, a ideia de implantação desse serviço começou no Centro Universitário Jorge Amado, quando duas técnicas precisavam achar um local para a implantação de um projeto, e voltaram os olhares para a comunidade do Curuzu. A Senzala do Barro Preto foi escolhida pelo contexto social em que atua, visando a sua luta e enfrentamento contra o racismo, e ter o cunho voltado para os projetos sociais. O trabalho é feito em conjunto com a rede sócio assistencial da Liberdade e atende alunos e funcionários do Ilê Aiyê, e toda a população da Liberdade e Curuzu.

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  Bancada localizada no interior da sede do Ilê Aiyê -   Foto: Mayara Câmara

Além de atender as crianças e idosos do projeto Dandarerê, o serviço é ofertado para a família dos alunos e todo o bairro da Liberdade e adjacências, funcionando de Segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, atendendo a todas as demandas que possam chegar da comunidade.

A educação e a saúde são direitos básicos que devem ser oferecidos pelo governo, e a assistente social trabalha para dar autonomia para o cidadão. “Eu foco em ajudar as pessoas a saírem de situações ruins, mas é gratificante saber que onde eu possa brotar uma semente, ela tenha brotado através do conhecimento para a garantia de direitos das famílias”, diz Jamile.

O trabalho de Jamile vai além do bem-estar físico, psicológico e social dos seus pacientes. Grávida de 7 meses, ela sobe a ladeira do Curuzu todos os dias, para ajudar e conscientizar famílias. Antes de começar o seu trabalho na Senzala do Barro preto, ela conhecia o Ilê Aiyê apenas como um bloco afro, e não imaginava a riqueza social que ele carrega.  

Após conhecer a territorialidade e a história de onde se inseriu, ela começou a repassar esses conhecimentos para suas estagiárias: “O que elas diziam é que não queriam vir trabalhar no Ilê, porque se questionavam o que poderiam fazer dentro de um bloco de carnaval”. Como resposta, Jamile propôs uma pesquisa sobre a importância do bairro do Curuzu e a preocupação que esse bloco tem com a comunidade. “Quando chegaram ficaram impressionadas e ainda mais motivadas a trabalhar em conjunto”.

Além de atuar diretamente na área da educação, por conta de fatores como frequência e rendimento escolar dos alunos, ela também se preocupa com higiene e alimentação das crianças, e garante que não é algo fácil fazer com que as famílias compareçam na senzala, principalmente se for para tocar em assuntos delicados.

Para conseguir a atenção dos pais/responsáveis, foi necessário o desenvolvimento de métodos que vão de carta convite a ligações feitas pelo seu telefone pessoal. Sempre são propostas diversas datas para o encontro, para que o responsável escolha a melhor, visando a sua disponibilidade de horário. A falta de patrocínio também afeta o trabalho. Até pouco tempo, arquivos sigilosos eram guardados em caixas, sem segurança, por falta de computadores.

As atividades socioeducativas buscam somar no desenvolvimento das crianças dentro dos projetos, evitando, principalmente, a evasão escolar que é comum após o segundo semestre do ano letivo. Visitas domiciliares são realizadas, como forma de evitar que qualquer um deles desistam de estudar.

Ó, minha Deusa do Ébano


À esquerda, Gisele Soares, Deusa do Ébano de 2017. À direita Larissa Oliveira, Deusa do Ébano de 2016 - Fotos: arquivo pessoal

“Se eu não for médica, eu vou ser Deusa do Ébano, e se eu não for, vai ser muito triste para mim, então eu vou estudar bastante, fazer tudo direitinho na escola e realizar meu sonho”. O desejo de Francine Vitória representa grande parte das meninas que vivenciam o Ilê desde cedo, e já crescem sonhando em ser rainhas do bloco. A consciência de que o título não é apenas voltado para beleza, mas necessita de inteligência e representatividade para defendê-lo, é presente desde cedo.

O bloco voltado para os negros já estava criado, mas havia a necessidade de elevar a autoestima da mulher negra. O concurso Noite da Beleza Negra começou um ano após o surgimento do Ilê, e tinha como objetivo exaltar a beleza da mulher negra, e fugir do padrão estabelecido por outros concursos que enxergavam apenas a mulher branca como estereótipo de beleza.

O primeiro concurso aconteceu quando ainda não existia asfaltamento na rua, e o local era coberto por barro preto. Maria de Lourdes Cruz, conhecida como Mirinha, foi a primeira Deusa do Ébano, aos 15 anos. Mirinha, que foi para assistir, acabou participando. Hoje, aos 60, ela ainda lembra carinhosamente da sensação: “Fui pega de surpresa, tinham poucos jurados, tudo simples. Começamos a conversar individualmente e depois foi chamando todas as participantes, começamos a dançar, e aí os jurados me escolheram. Fiquei bastante emocionada, na verdade, até hoje quando eu lembro, fico emocionada”.


Maria de Lourdes Cruz, Deusa do Ébano de 1975

Mirinha acredita que o concurso valoriza muito a autoestima da mulher negra, e sentiu essa experiência na pele ao ter a visão sobre o reconhecimento de sua cor, mudada após o processo:  “Primeiro que você não vê rainha negra, é uma coisa muito rara. O Ilê Aiyê veio para ajudar muita gente. Hoje você vê uma negra usando batom, usando trança nagô, uma roupa vermelha, e antes você não via isso. Na noite da Beleza negra, a mulher passa a dançar, e mostra toda a sua beleza nos trajes africano”.

As candidatas são escolhidas com cautela. Tem a inscrição, e depois a pré-seleção, que pode acontecer em até dois dias, dependendo do número de candidatas. Após escolhidas, as 16 selecionadas se preparam para a Noite da Beleza Negra. A escolhida será a responsável por representar o Ilê ao longo do ano, e inspirar mulheres a perceber a sua força.

Em 2018, a escolhida foi Jéssica Nascimento, e percebe a influência que exerce, sobretudo no bairro do Cabula, bairro onde mora atualmente. Hoje, ela se identifica como símbolo de resistência e agradece ao Ilê Aiyê por fazer parte desse momento de transformação: “É um sentimento de reafirmação da minha identidade enquanto mulher preta. Levo como um símbolo de representatividade. Levo o meu nome e nome do Ilê Aiyê onde eu for”.


Jéssica Nascimento, Deusa do Ébano de 2018 - Foto: Arquivo pessoal

Uma figura importante para a realização do concurso é Dete Lima, pois além diretora e estilista do Ilê, e educadora das aulas de Arte em Tecido na Banda Erê, é ela quem arruma todas as participantes do concurso desde o primeiro ano. As roupas da comitiva são feitas de amarrações, e Dete produz cabeça e corpo das mulheres da receptiva, cantoras, apresentadoras, e todas as candidatas. Nos últimos anos, meninas que ela ensinou nas aulas de Arte em Tecido, a auxiliaram na produção das roupas.

Para o Carnaval, Dete realiza um trabalho ainda maior. Na sexta-feira, a rainha vai para o terreiro Ilê Axé Jitolú, onde permanece até a quarta-feira de cinzas sob os cuidados da estilista. O figurino usado no sábado de Carnaval é construído horas antes, no terreiro, onde pessoas se reúnem para assistir à confecção no próprio corpo da vencedora: “O figurino é criado na hora, porque é difícil sair imaginando. Posso até produzir algum detalhe antes, porque na hora pode vir um estalo e eu usar, mas não é um figurino pensado não, é tudo na hora que eu pego o tecido e estou com ela na frente do espelho”. O figurino da segunda-feira começa a ser construído no dia anterior.

“É uma realização, empoderamento, fortalecimento, você escutar as meninas dizendo que estão realizando um sonho é uma felicidade muito grande. É uma coisa que eu digo que foi me dada por Deus e pelos santos, porque eu nasci no período de carnaval e eu acho que eu fui criada para contribuir com a beleza da mulher negra”.

Não é à toa, em 2008, o tema do carnaval do Ilê foi Candaces - Rainhas do Império Meroe, e homenageou Dete. Além do figurino, ela constrói memórias e confiança nessas mulheres, o que a faz se sentir como uma deusa do Ébano todos os anos. Assim como ela marca a vida das participantes, ela é marcada por elas de alguma forma, e entre tantas, a história de Geruza chamou sua atenção: “Ela ganhou em 1998, e me marcou muito pelo fato de ser uma menina daqui no Curuzu. Eu via ela subindo e descendo muito diferente da linha do Ilê, e de repente, veio se candidatar. Ela ter ganho foi uma transformação de vida, porque hoje ela é uma grande empresária, tem um salão aqui no Curuzu. Foi uma transformação total. ”

Outra história que Dete lembra com carinho é a de Daiana (educadora de dança). Ela foi deusa do Ébano em 2013, e enfrentou dificuldades dentro de casa quando decidiu se candidatar. “A mãe dela é evangélica, resistiu muito, não aceitava. Ela veio assistir a montagem de figurino de Daiana, acompanhou tudo de perto, porque passavam muitas coisas para ela. Hoje somos irmãs de coração, e ela até já participou de um curso de estética aqui depois.

Daiana foi rainha em 2013, após a sexta tentativa: “A minha vontade de ser deusa surgiu com 10 anos, quando vi pela primeira vez uma Deusa do Ébano. Concorri 6 vezes até ganhar, na sexta vez decidi que seria a última vez, já estava decidida a desistir de meu sonho, mas ganhei. Só quem passa pelo concurso para entender, porque é uma sensação surreal”. Após o concurso a união com sua mãe se fortaleceu, e tornou a relação familiar muito mais sadia. “Isso reforça a ideia de que o Ilê é família”, aponta Dete.

O charme da Liberdade 

Escola Mãe Hilda, responsável pela educação de centenas de crianças há 31 anos; Banda Erê, desde 1992 estimulando o desenvolvimento das crianças através da arte; Dandarerê, estreitando laços de amizades, através de rodas de samba e troca de experiências entre a terceira idade; Serviço social, cuidando da saúde mental dos moradores do Curuzu; e a Noite da Beleza Negra, elevando a autoestima de mulheres negras...Tudo isso só se tornou possível a partir de 1974, após uma inquietude de Antônio Carlos dos Santos Vovô e seu amigo, Apolônio de Jesus.

Cansados do protagonismo branco em um Carnaval de elite, em blocos tradicionais como o Internacional e o Coruja, onde o negro só aparecia como vendedor, cordeiro, e no máximo percussionista, os amigos, que antes se reuniam com um grupo de mortalha e de festas juninas, decidiram se juntar e criar o primeiro bloco afro do Brasil, no qual só desfilariam negros. A ideia revolucionou a percepção do Carnaval de Salvador, e influenciou o Brasil (que teve o segundo bloco afro inaugurado no ano seguinte) e o mundo.

O bloco foi criado em meio a ditadura militar, e por medo do que podia acontecer com seu filho e os seguidores do bloco, Mãe Hilda não deixou Vovô escolher o nome “Poder negro” para o grupo. Na época, Vovô tinha 20 anos, era chamado de mocinho vermelho comunista por policiais, e escapou da morte e da prisão diversas vezes. Os traços do racismo eram latentes, e o bloco tinha que sair nas ruas acompanhado da polícia, e entregar documentos para a Secretaria de Segurança para provar que não havia nenhum integrante com a ficha suja. “Eles pensavam: ‘um grupo preto da Liberdade só pode ser de marginal’, mas chegou um momento que não tinha mais como controlar a gente”, lembra Vovô.  A polícia chegou a pegar o seu pente garfo para dizer que ele estava usando como arma para assaltar.


Vovô do Ilê na sacada da Senzala do Barro Preto - Foto: Adriele Lisboa

O Ilê foi muito atacado em sua primeira aparição, e as ofensas iam desde “falsos africanos da Liberdade” à “bloco racista”. Mas foi assim que os idealizadores perceberam que o bloco, mesmo pequeno, havia chamado atenção. O Ilê Aiyê se tornou o marco de uma revolução que não era somente estética e musical. Jovens negros saíram nas ruas de Salvador com roupas coloridas para lutar contra o preconceito e mostrar que o negro pode e deve ocupar todos os espaços que quiser.

Vovô sentiu o racismo na pele desde muito cedo. Ele recebeu esse apelido, aos 9 anos, pois seus colegas de classe diziam que ele tinha a aparência velha, pela cor da sua pele, e chamavam sua mãe de feiticeira. Quando cresceu, o racismo só mudou de cara. O fim da ditadura não o extinguiu, e a perseguição continuou: "Eles agora agem diferente. Dificultam o empoderamento, o acesso à educação. O pessoal vê o negro na rua e segura a bolsa pensando que você vai assaltar. Minha mãe dizia que o negro não tem que ser 10, tem que ser 11 e estar sempre na frente".

Quando o bloco foi criado, o racismo era ainda mais explícito, e ser negro era motivo de vergonha. Visando fortalecer a origem, negros de pele clara não poderiam ter acesso ao bloco, a não ser que se reconhecessem como negros: “Pessoas da minha cor, me diziam que eram brancos queimados de sol”, recorda Vovô.

Por isso, as cores escolhidas para dar representatividade visual ao bloco, também têm significados fortes. O preto representa a pele preta; o amarelo, a riqueza cultural; e o vermelho, o sangue daqueles que lutaram pela libertação. Essa paleta se espalha nos tecidos usados a cada carnaval, e assim como na tradição africana, cada tecelagem conta uma história.

Luiza dos Santos, 103, é uma das moradoras mais antigas do bairro do Curuzu, e lembra dos primeiros ensaios do bloco: ”O ensaio era na rua, no barro preto. Eles ficavam de pé, atolados de lama. Começava às 22 horas e ia até às 6 da manhã”.

Mesmo conquistando o que queria, Vovô nunca abandonou suas raízes, e não esquece da sua negritude: “Não pode esquecer que é negro, porque se esquecer, alguém vai lembrar te lembrar de sua negritude, e vai é duro. Quando você tiver com seu carro de luxo, vão te parar da blitz. Quando você for entrar em um condomínio, vão te mandar ir pela porta dos fundos”.

A jornalista e ativista, Ceci Alves, ressalta o contexto da evasão dos bairros periféricos, ligando-o às pessoas que buscam melhorar de vida para deixar o local, e aponta que o Ilê faz o contrário: “Quando eles continuam colocando a saída do Ilê de dentro do Curuzu, é justamente para dizer ‘a gente é daqui a gente saiu daqui, e a gente vai continuar propiciando e fomentando esse caldo cultural'. Eles sabem do compromisso social que têm com aquele bairro”.

Moradora do Curuzu há mais de 90 anos, Luiza acompanhou o desenvolvimento do bairro da Liberdade, e conta que havia lugares que só se passava cavalo. Ela lembra que hoje, onde é a Rua da Alegria, antes era o dique em que pegava água para a mãe lavar roupa, e que onde fica a Rua do Progresso, antes era uma fazenda. Quando Luiza se mudou para a Liberdade, o bairro se chamava Estrada das Boiadas, pois os bois costumavam a subir a ladeira de pedra, e o Curuzu, que antes era uma rua, se chamava Avenida Bonfim.

Após o surgimento do Ilê, outras mudanças foram notadas: “As casas foram se desenvolvendo, porque o Ilê deu prazer para o Curuzu. As casas que eram cercas viraram muros. Foi um incentivo para o povo se desenvolver”, diz Luiza.

Nos anos 80, Vovô começou a viajar o mundo, e percebia que o Carnaval era visto de fora com a objetificação do corpo da mulher através do samba, e aos poucos foi percebendo os traços da cultura baiana ocupando espaço. Para Vovô, o bloco possibilita o consumo de conteúdo produzido por negros para negros, o que é importante para a valorização da negritude.

Foi viajando também que ele se deparou com a cultura do voluntariado, e percebeu diversos projetos voltados para a contribuição cultural lá fora, o que é difícil de encontrar no Brasil. “Temos dificuldade com empresas de domínio branco, mas os empresários da elite negra também se escondem. Muito se fala em Black Money hoje em dia, mas tem que fazer um jeito desse dinheiro circular entre a gente”.

Por causa do Ilê, o Curuzu é um bairro mundialmente conhecido, e acordo com Vovô, os órgãos públicos de Salvador não têm essa visão da contribuição que o Ilê dar para a cidade: “Tem muita gente que vem de fora ver o Ilê, se hospedam, se alimentam, visitam pontos turísticos, mas os órgãos não dão esse crédito para a gente. Não nos fortalece”.

Dificuldades são enfrentadas até mesmo quando o serviço é pago. O Ilê foi parceiro do grupo Pão de Açúcar por 7 anos, e precisava de uma agência para confeccionar o material de divulgação para a Noite da Beleza Negra. O grupo indicou uma agência, e essa ficou encarregada de produzir materiais visuais com as letras das músicas do Ilê Aiyê. Ao receber a demanda, a agência se recusou e quiseram entregar outro trabalho, pois temiam que o grupo Pão de Açúcar não gostasse: “Vocês foram indicados por nossos parceiros, mas quem pagou fomos nós. Tem que fazer as frases que falamos para vocês, não a que vocês, brancos, querem falar para nós, negros", contestou Vovô.

Mas todas as dificuldades fazem ele ter cada dia mais certeza de que fez a escolha certa em 2004, quando decidiu valorizar suas raízes e construir a sede do Ilê no Curuzu, de maneira que pudesse dar maior visibilidade ao bairro através do turismo. “Quando a sede inaugurou foi uma festança, com muitos fogos. Algumas pessoas dizem que o Ilê não é para esse bairro, que a estrutura da senzala está muito acima das condições do Curuzu. Mas mesmo assim, ele escolheu fazer aqui”, aponta Luiza.
Bancada localizada na Senzala do Barro Preto - Foto: Luiza Nascimento

O Ilê Aiyê surgiu como um movimento para reforçar a questão da negritude a partir do bairro do Curuzu, que mesmo tendo sua população em maioria negra, não era representada. De acordo com Ceci Alves, compreender a territorialidade é importante para estabelecer uma relação de representatividade dentro do bairro: “O Ilê surgiu para esse desabafo, esse grito de que existimos enquanto negritude. Eles transformaram o Curuzu em um bairro conhecido mundialmente, mas não perderem de vista essa questão do território como ponto de partida, de luta e de políticas públicas. O Ilê é como se fosse um umbigo, tem uma presença muito materna deles com o Curuzu”.

Luiza era amiga de Mãe Hilda, e sempre que pode, deixa explícita para Vovô sua opinião em relação trabalho que ele desenvolve: “Eu digo para ele ‘seu prejuízo está na educação. A educação que Hilda deu para vocês é para a família, mas para labutar com o mundo não é. É por isso que vocês não estão longe”.

A diáspora negra incide nessa questão de territoriedade, pois o movimento negro busca ocupar e se empenhar em espaços que carregam uma bagagem majoritariamente negra. "Quando arrancaram a gente da África e trouxeram para cá, quando eles afofaram a terra e tiram nossas raízes... é muito importante depois disso acontecer, que a gente tenha essa dimensão de quais são os territórios negros, e o que é que eu posso fazer com aqueles territórios para que, não só existem ações de representatividade, mas também se resguarde essa cultura que já foi tão massacrada, da qual eu tive que ser afastada e arrancada por conta da escravização", salienta Ceci.

Ceci aponta ainda, Mãe Hilda como uma das principais responsáveis por essa valorização local, e recorda que a entrevistou no início dos anos 2000, e ela já carregava esse pensamento: “Ela falava de empoderamento quando nem se falava sobre isso. E falava sobre território também ‘eu preciso cuidar disso aqui, desse entorno, para formar uma massa crítica que vai poder incidir não só dentro do bairro, mas também ter representatividade lá fora'”.

Carnaval é cultura, e cultura é política. O Ilê Aiyê surgiu para ser muito mais que um bloco afro. O Ilê é família, educação, respeito e resistência!