Cores e vidas amazônicas
por Suzana Varjão (texto e fotos)
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AmazôniaA bordo de um hotel flutuante, percorri a Amazônia por seus caminhos d´água, plenos de cores, texturas, vidas, encantamentos. Cortando os rios Negro e Solimões, adentrei igarapés e matas, vibrando ante a exuberância da natureza, me emocionando com a beleza e a sabedoria de suas gentes. Confira impressões e imagens dessa extraordinária jornada!
O navio deixa lentamente o Porto de Manaus, proporcionando o primeiro show de cores da travessia. À medida que o horizonte vai engolindo o sol, a coloração do espelho d´água vai sendo delicadamente alterada: depois de passar por vários dourados, o Amazonas se veste de prateado, tão logo os últimos raios de luz incidem sobre suas águas escuras.
Permanecemos boa parte da noite no convés, observando a floresta e escutando seus sons, cada vez mais vívidos — corações cheios de expectativa ante a iminência da aventura. E ela começa, na manhã seguinte, pelo rio Solimões, de tonalidade castanha e aparência de chocolate derretido.
Tanto quanto o pôr do sol, o amanhecer é deslumbrante. Limitado pela linha da mata em penumbra, um céu em tons pastéis, com rasgos de luz bege e nuvens branco-acinzentadas separando diferentes azuis — cenário reproduzido (melhor dizendo, recriado) nas águas ainda quietas do rio.
ABRE PARÊNTESE. Da varanda de minha cabine-dormitório, de onde se divisa a selva, registro o espetáculo, pensando ter capturado imagens representativas do adormecer e do despertar em águas amazônicas. Ledo engano. No final da viagem, teria fotografado sete auroras e crepúsculos de composições incrivelmente diversas.
Ora raios alaranjados surgiam por trás da floresta já escura e caiam sobre as nuvens, transformadas em espécies de cristais flutuantes; ora um ponto vermelho escarlate contrastava com o azul marinho do céu, salpicado de pontos cintilantes... Enfim, cenários múltiplos, sensações idem. FECHA PARÊNTESE.
O Iberostar segue margeando a floresta, o colorido de seus ipês (ou 'tachis'), seus inúmeros bichos. Aves, sobretudo. Em árvores, barrancos ou nos céus, solitários ou em bando, centenas de águias pescadoras, gaviões, harpias, urubus da mata, anu-pretos, carcarás, jaçanãs, sanhaçus, uirapurus, mergulhões, tucanos, aves ciganas, araras, patos selvagens, garças...
Seguindo o fluxo do rio, casas e pousadas flutuantes, com suas "garagens" de canoas. Construídas em madeira, sobre grandes troncos, ancoram aqui e ali, atadas a árvores por cipós. Os esgotos caem diretamente nas águas, também consumidas pelos nativos. "A gente tem anticorpos", brinca Piro, um dos índios-guia. Mas dá explicação mais convincente: a vegetação aquática, que funciona como filtro natural. E garante:
— É a água mais pura do mundo.
Como sinal de assentimento, um "guarda-rios", ou martim-pescador, salta de um toco seco, sobrevoa a superfície da água e, numa manobra veloz e precisa, mergulha e fisga um pequeno peixe, que carrega no bico até um buraco numa das margens barrentas do rio, onde provavelmente tem filhotes aninhados.
Cenas desse tipo de pesca se tornariam comuns, com outros tipos de aves tirando sustento na fartura do Solimões, suas mais de 3.500 espécies de peixe de hábitos peculiares, como o aruanã, ou macaco d´água, que pula até um metro de altura para capturar insetos; ou o peixe boi, que se alimenta da canarana (cana falsa), espécie de capim aquático endêmico da região.
Igarapés
Mágico, observar a interação entre os ecossistemas aquático, aéreo e terrestre. De frondosas mongubas (árvores que brotam nos barrancos do rio), desprendem-se frutos e flores, para deleite dos cardumes que percorrem as estradas fluidas, concentrando-se nos igapós, ou "florestas inundadas", quando o nível das águas sobe.
Em botes, percorremos os estreitos "caminhos de canoas", ou igarapés, onde divisamos, entre outros encantamentos, uma das mais belas espécimes de aves que habitam a Amazônia: a garça real, com seu magnífico bico azul, suas penas amarelas e brancas e sua plumagem preta no alto da cabeça.
Quando nos aproximamos das margens, para melhor visualizar a fauna terrestre, não raro, o bote é invadido por um bando de macacos-esquilos, à cata de banana fácil, trazida nas pequenas embarcações. A pelugem curta, aveludada, de tons cinza e dourado, exala um odor não muito agradável, de onde vem a denominação popular de "macaco de cheiro".
Isso porque os machos fazem xixi e passam no corpo, para atrair as fêmeas. Apesar da prática não muito higiênica, é uma das mais graciosas espécies de pequenos primatas que vivem na extensa área da floresta amazônica. Conhecemos outras, igualmente cativantes, como o macaco cairara e o macaco prego branco.
As novidades se sucedem. Dependurada numa jauari, uma das muitas palmeiras da região, avistamos uma massa cinzenta, inerte, semelhante a um gigantesco ninho de marimbondos. O guia imita o som estridente de um gavião e a massa se mexe lentamente — na verdade, o movimento máximo da preguiça em fuga, ante a aproximação presumida de seu predador natural.
— Mas na água ela muito rápida, explica Piro.
Os passeios noturnos também reservam surpresas. Durante uma focagem de jacarés, flagramos um fenômeno que vem intrigando estudiosos do bioma amazônico: a presença de uma jararaca, em geral animal terrestre, numa árvore. E em posição de bote. Tanto quanto os jacarés, as cobras são localizadas na escuridão pelos olhos, que incandescem ante a luz das lanternas dos guias.
São inumeráveis, as ambiências da floresta fluvial. Algumas, com pontos de acesso aos aglomerados terrestres, como o Lago Janauaca, que abarca vila de mesmo nome; o rio e cidade Manaquiri, fundada por paranaenses; ou o rio e vila Jaraqui, cujo nome designa também um peixe saboroso, apesar das muitas espinhas.
Árvore de seiva altamente inflamável
Na selva
As caminhadas na mata são um capítulo à parte da viagem. Tivemos a sorte de ser guiados por índios experientes, que foram desvendando segredos e recursos da floresta, de onde a população nativa extrai quase tudo: comida, bebida, remédios, utensílios, vestuário, especiarias, cosméticos...
Piro faz um corte na casca de uma árvore, de onde escorre uma resina aromática, usada no tratamento da sinusite. É a almecega, também conhecida como "breu branco", ou "incenso do povo". De uma amapá (ou amapazeiro), tira outra seiva branca — cicatrizante natural, utilizado há dezenas de anos pela indústria farmacêutica Bayer.
Entre uma incursão e outra, conhecemos os cipós curare (de onde se extrai anestésico) e escada de jabuti (imerso n´água, produz calmante e anti-inflamatório); a goiaba de anta, boa pra diarreia e pra vedar canoa; ouriço de castanha, cujo chá trata diabetes; carapanaúba, que cura malária; socuba, para tratamento de câncer (a casca) e verme (o leite)...
São incalculáveis, os insumos da flora amazônica, aliás, há muito explorados não apenas pela indústria farmacêutica, como pela cosmética — entre outras. A palmeira murumuru, por exemplo, é base de sabonetes e hidratantes da Natura. E o pau rosa, além de produzir cicatrizante natural, é usado na composição do perfume Chanel nº 5, pela Maison Chanel.
Para qualquer lado que os guias se viram, encontram um utensílio natural, ou matéria prima para sua confecção: bucha para arear panela, sabão vegetal, aromatizantes (com a piripirioca e sua fragrância levemente amadeirada), cipós titica (base para mochilas de carga), embaúbas (para manufatura de redes de dormir e de pescar, fios de arcos, vestimentas, colares)...
Tacho aquecido, para fazer tapioca
Delícias e perigos
Também experimentamos sabores da mata, como o leite vegetal, rico em cálcio e muito gostoso. Extraída do amapazeiro, a seiva branca, açucarada, substitui o leite animal — incluindo o humano. E uma curiosidade: seu látex é utilizado na fabricação da goma de mascar "Chiclete Adams".
Outra degustação incomum: larva de vaga-lume, gerada dentro da castanha da palmeira inajá. Além de saborosa fonte de proteína, a lagarta é rica em óleo, sendo muito utilizada pelos índios na fritura de carnes e peixes. Entre as frutas nativas, a que mais apreciei foi o ingá, cujos gomos brancos doces se desenvolvem numa espécie de vagem gigante (chega a um metro de comprimento).
A selva oferta ainda especiarias (inclusive sal, fabricado com o auxílio da imbaúba), vinhos (como os das palmeiras pupunha e abacaba) e... perigos. Mesmo as trilhas destinadas a turistas escondem ciladas, como o esperma de sapo que encontramos ao pé de uma samaumeira (maior árvore da Amazônia) e cujo veneno mata em questão de minutos.
Daí o alerta dos guias para que evitássemos tocar indiscriminadamente a fauna, e a orientação para que usássemos calças e blusas de manga comprida, meias de cano alto, tênis ou botas. Numa demonstração convincente, Piro passa repetidamente o facão no tronco de uma árvore e dezenas de formigas descomunais acorrem.
São as tucandeiras, formigas carnívoras usadas por tribos indígenas em ritos de passagem de seus jovens, obrigados a usar luvas infestadas delas por mais de 10 minutos, como prova de resistência e bravura. Esses insetos chegam a 2 centímetros de comprimento e causam dor tão lancinante, durante até 24 horas, que pode provocar alucinações.
Encontro de rios
Foram três dias e três noites de aprendizados e deslumbramentos em matas e águas do trecho superior do rio Amazonas, até que alcançamos o maior afluente de sua margem esquerda e presenciamos mais um show da natureza na região: o encontro dos rios Negro e Solimões.
Os dois afluentes percorrem mais de seis quilômetros sem se misturar, devido à diferença de composição química, temperatura e velocidade de suas águas, encantando a todos com o contraste de suas cores, dinâmicas e texturas. E para nós, ponto de partida para novas vivências, descobertas, emoções.
A embarcação segue o curso do rio Negro, rumo a outra maravilha da Amazônia brasileira —Anavilhanas, segundo maior arquipélago fluvial do mundo, com suas centenas de ilhas (400, as documentadas), lagos (60), canais. Um labirinto de vias líquidas e escuras, delimitadas por verdes de incontáveis matizes.
No rio Cuieiras, ancoramos, para uma visita à aldeia Três Unidos, onde vivem remanescentes dos índios Kambeba, ou Omágua ("povo das águas"). A comunidade é bem estruturada, contando com escola, posto de saúde, horta, luz... E apesar das modernidades (televisão, wifi...), mantém vivas suas tradições e rituais, com alguns dos quais recepcionam os viajantes.
Menino indígena Kambeba
Ruínas
Numa das paradisíacas praias que se formam na baixa do rio, tomamos banho, sem medo dos terríveis carapanãs. Como a maioria dos mosquitos, os pernilongos "cuspidores de fogo" preferem época de chuva, quando se formam muitas lagoas e igarapés. Nas margens de um deles, avistamos destroços daquele que já foi um dos maiores hotéis de selva do mundo.
Construído em 1986, o Ariaú Amazon Towers dispunha de 288 cabanas de luxo, piscinas, bares e restaurantes temáticos, recebendo celebridades nacionais e internacionais, como Gisele Bündchen e Arnold Schwarzenegger. Pouco antes de completar 30 anos, fechou as portas, afundado em processos judiciais e dívidas.
No Lago Acajatuba, outra parada estratégica, para vivenciar o cotidiano da população ribeirinha. Em uma "casa de caboclo", aprendemos truques culinários, como assar peixe em folhas de pariri ou de bananeira ("as únicas que não têm veneno") e fazer tapioca de mandioca braba — a arte de tirar o veneno da raiz, triturar, peneirar, assar a massa...
Já na rota de volta ao Porto de Manaus, mais uma escala interessante: o igarapé São João, para conhecer o Museu do Seringal. Construído para as locações do longa metragem "A selva", do diretor português Leonel Vieira, o grande cenário foi doado ao governo do Amazonas, que o transformou em museu.
Acompanhamos o processo de produção da borracha, da coleta do látex à defumação. E revivemos o fausto e a escravidão na selva amazônica, a partir de utensílios, mobiliário e vestuário de época — as cabanas dos seringueiros contrastando com o luxo da Casa do Barão; o famigerado armazém de "aviamento" (venda de gêneros de primeiras necessidades a crédito) e suas contas impagáveis.
Botos
Uma das últimas atrações do "safári molhado", o encontro com botos cor de rosa, os lendários golfinhos de água doce. Não se pode mais mergulhar com eles, mas os observamos de muito perto, numa plataforma flutuante, da qual acercam-se para comer os peixes oferecidos pelos adestradores.
O espetáculo é arrebatador, como de resto toda a viagem, que eu e meus parceiros (Eloíza Casaroto, Margareth e Renato Lima) encerramos no Mercado Municipal com saudade, chope gelado e um delicioso chouriço de peixe pirarucu.
No vídeo
Os caminhos, crepúsculos, manhãs e cores da Amazônia