Por: Camila de Jesus, Gabriel Lopes, Jade Coelho e Clara Gibson

CÁrcere feminino na Bahia
O portão de entrada do presídio não é diferente do de uma escola. A sensação de entrar em uma prisão é a mesma de entrar em um prédio público qualquer. A diferença é que você não sai com a mesma leveza que entra.

Ao passar pela porta, a primeira coisa que chama a atenção é a frase “O amor move o mundo” escrita na parede, emoldurada com pinturas de flores coloridas. Uma agente no balcão confere nossos nomes, recolhe os documentos, celulares e contabiliza os equipamentos que levamos. Não chegamos a passar por detector de metais, nem fomos revistados.

No andar de cima, depois chegar a uma sala de espera com sofás e cadeiras, algumas pinturas e posters bíblicos nas paredes, tivemos acesso à sala da diretora do Conjunto Penal Feminino, Luz Marina, e também à outros aposentos, onde as internas têm consultas com psicólogos ou outros médicos, e recebem os seus advogados.

A primeira detenta que vimos foi no andar de cima. Não chegamos a falar com ela. Estávamos aguardando para entrevistar a diretora, quando ela saiu de uma das salas e caminhou até uma agente que a esperava conversando animada com uma colega no sofá. Com as mãos algemadas na frente do corpo, cabelo loiro, liso, arrumado e um relógio dourado em um dos pulsos, a mulher chegou até o sofá e estendeu as mãos para que a agente que, ainda conversando, distraída, trocasse as algemas para que as mãos da interna ficassem para trás. “Pode ir descendo que eu já vou”, informou a carcereira.

Por mais que estivéssemos cientes de que aquela realidade é comum para as mulheres que trabalham ali e também para as que estão presas, a naturalidade com que elas tratam a situação não passou despercebida. Para espectadores curiosos que, até então, só conheciam o presídio feminino através de gráficos e estatísticas, todo detalhe parecia ser extremamente necessário de ser absorvido.

No andar de baixo, seguimos pelo caminho que dava acesso ao pátio e às celas. A partir daqui, o cenário ganha um chão sujo, paredes emboloradas e mais personagens, que tiveram seus nomes preservados para protegê-las.


Conheça o perfil das mulheres encarceradas através dos dados
do cárcere feminino no Brasil e na Bahia indicados pelo
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

 

Ações e punições

Vaidosa, Rosa tinha as unhas das mãos e dos pés bem feitas, pintadas de preto. O cabelo pranchado, estilo Chanel. Tinha um olhar desafiador. Falava com a autoridade de quem debocha de tudo e todos. Começamos a conversa perguntando o que ela fazia antes de ter sido presa:

“Minha profissão sempre foi essa. Eu sou 155”

Ao notar nosso silêncio, foi a vez dela nos perguntar se sabíamos o que era 155. Negamos. “Furto de loja. Roubo sem ser a mão armada. Chegar dentro da loja, colocar dentro da bolsa e sair. 155 é o número do artigo”, explicou, levantando as sobrancelhas, como se não estivesse surpresa por não sabermos o significado daquele número.

Ela manteve o tom debochado enquanto contava sobre o seu crime. Mesmo com tal atitude, e mesmo sendo mais velha do que nós, com seus 31 anos, insistia em nos chamar de “senhor” e “senhora”. “Eu não vou mentir pra senhora não. Eu nunca me interessei em fazer nada. A única coisa que eu gosto de fazer, que é em mim mesmo, era a minha unha. Já pensei em fazer um curso, mas é como eu disse a vocês, minha rotina sempre foi essa, se juntar com as parceiras pra fazer esse tipo de delito aí que eu cometi”, afirmou.

Presa pela terceira vez em um presídio, Rosa acumula incontáveis retenções em delegacias, das quais sempre era liberada após um curto período. Quando conversamos com ela, estava aguardando o andamento do processo judicial, sem advogado para defendê-la. “Ó que feio né. Roubar tanto e não ter nem R$ 1.000 pra dar pra um advogado pra pelo menos ele conseguir marcar uma audiência com o juiz. Isso é feio, né? Eu roubei, eu sei que eu roubei, eu sei que eu roubo, eu tô aqui, vou fazer três meses por causa de quatro shorts que pegaram comigo”, lamentou.

“Não é porque eu roubei que sou pior do que ninguém”

A única vez que Rosa mudou o tom enquanto falava conosco foi quando perguntamos sobre os seus filhos. “Ah, aí a senhora já vai começar a mexer com o meu sentimento, eu já vou começar a chorar, porque eu sinto falta dos meus filhos”, desabafou. A família de Rosa mora em Feira de Santana e não tem condições de visitá-la sempre. O marido, em três meses de prisão, não fez nenhuma visita.

Dália também sentia falta dos filhos. Com 38 anos, ela teve seis crianças, sendo o mais novo um bebê que nasceu dentro do presídio, há dois anos. Ela carrega os nomes dos três garotos tatuados em sua perna. O mais velho, de 21 anos, vai visitá-la toda semana.

Presa por tráfico de drogas, Dália foi sentenciada a 12 anos de prisão. Quando a conhecemos, ela já havia cumprido seis anos da pena. Era usuária de crack e contou que só parou de usar depois que a irmã morreu por causa da droga.

“Parei de fumar naquele dia que eu vi ela morta. Eu falei que não ia mais usar, e não usei mais, aí eu já passei a vender”

A necessidade de dinheiro foi o motivo que a levou a começar a vender drogas. “Eu não tenho mãe, nem pai, não tinha ninguém pra me ajudar assim. Então, eu vi o mais fácil e fui”, constatou ela.

A dificuldade financeira também foi o que levou Íris a se envolver com a venda de entorpecentes. Nascida em Manaus, no Amazonas, está presa por tráfico de drogas interestadual, foi flagrada no aeroporto de Salvador. “Eu nunca tive contato com nada do crime. Uma pessoa me pediu que transportasse [a maconha], mas eu não sabia que seria de avião. Uma menina que veio primeiro do que eu rodou e me entregou”, relatou.

A distância que separa Íris da família e da terra natal é de 4.800 km. A amazonense contou que no início foi difícil estar tão longe dos familiares. Além da liberdade e da dignidade perdidas, quando entrou na cadeia, a saudade é a dor contra a qual ela mais luta. Sentenciada a sete anos, três meses e quinze dias, Íris trabalha na biblioteca e faz o curso preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Quer redimir a pena e voltar logo para casa.

“Várias pessoas sofrem com isso, com a prisão da gente. É individual, mas a família acaba sendo aprisionada”

Diferente de Dália e Íris, Violeta nunca precisou de dinheiro e nunca se envolveu com o tráfico. Na quarta passagem por um presídio, o crime pelo qual está pagando agora é o de sequestro. Ela nos contou que já fez muitas coisas erradas, mas não especificou quais crimes teria cometido antes. Na época que foi presa, alegou que já estava ajeitando a vida, mas, por insistência, acabou entrando no esquema. Em sua defesa, disse que não participou do ato em si, que a vítima ficou quatro dias em cativeiro, e, 16 dias após o pagamento do resgate, um dos integrantes do grupo foi preso, e “caguetou” o resto dos participantes do crime.

Violeta foi a única mulher com quem conversamos que especificou exatamente o tempo que estava presa, calculando até os dias que estava lá dentro: “dois anos, um mês e 22 dias”. Aos 34 anos, ela é mãe de dois filhos: uma menina de 17 anos, que mora com o avô, e um mais velho, que acabou sendo assassinado enquanto ela estava presa. Ela também está tentando uma vaga na universidade através do Enem. Violeta chegou a entrar na faculdade. Teve problemas com a documentação e a matrícula foi cancelada. Nunca conseguiu retomar os estudos no curso de Serviço Social.

Lírio conseguiu cursar até a oitava série, mas gostava muito de ler e, se tivéssemos deixado, teria conversado por horas. Estava presa, como disse ela, por causa de uma “laranjada”. “Estou cumprindo pena por um crime que eu não fiz. Tava no lugar errado na hora errada, infelizmente”, lamentou. Uma noite, quando perambulava pelas ruas depois de usar crack, Lírio acabou adormecendo em frente à uma universidade, que havia sido roubada no mesmo dia. Quando acordou, já estava sendo sacudida pela polícia, que achou que ela era olheira para o crime. Acabou presa por ter antecedente criminal.

Culpadas ou inocentes, com diferentes histórias, vivências e estradas percorridas, essas mulheres dividem não somente suas celas, mas também a ânsia por liberdade. Acumulando saudade das pessoas amadas, elas anseiam em coletivo pela vida que vão ter depois que saírem da prisão. Até lá, fazem companhia umas às outras, dentro das suas comarcas.



As tentativas de deixar menos endurecido um ambiente já tomado pelo esquecimento.
Veja uma perspectiva do ambiente interno do presídio:

Clique e ouça o poema “Julgamento” do livro “Força Feminina, a poesia que liberta”.
Publicado em 2018 pela editora Galinha Pulando, a obra reúne 53 poesias
escritas por adolescentes da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac).

As celas são abertas uma vez ao dia por algumas horas. (Foto: Clara Gibson)
 

Convívio entre as grades

O jeito tímido combinava com a sua aparência física. Falava baixo, era magra, pequena, e não parecia se importar com os cabelos desalinhados, presos no alto da cabeça. Durante toda a conversa, Jasmim permaneceu constantemente na retaguarda. Desconfiada, mantinha as mãos no ventre aparente como se estivesse protegendo e acalentando o segundo filho que estava por vir.

Presa há um mês, Jasmim está na sua segunda passagem pelo presídio. Da primeira vez, entrou por causa do tráfico de drogas. Agora, ela aguarda a sentença do processo que a acusa de ter matado o marido. Assim como uma grande parcela das mulheres que se encontram na prisão, Jasmim está entre as presas do Brasil que estão encarceradas sem terem sido condenadas. Ela faz parte dos 71% das presas sem condenação da Bahia, porcentagem que faz do estado o terceiro que mais prende mulheres não sentenciadas.

Sobre a vida entre as grades e a relação com as colegas de encarceramento, Jasmim nos conta que possui poucas amizades lá dentro. “Antes só do que mal acompanhada. Vejo a covardia, uma querendo bater na outra”, contou ela. Para definir as cerca de 100 mulheres com que é obrigada a conviver na cadeia, Jasmin usou uma comparação:

“Um bando de cobras”

Rosa compartilha uma perspectiva parecida com a de Jasmin a respeito da convivência dentro da prisão. “Ando na minha, porque o bagulho aí embaixo é não se misturar. Porque se não o bicho pega”, afirmou.

Ela conta que, além das brigas por drogas, o ciúme é o sentimento que, em várias escalas, domina a maioria das relações dentro do presídio. “Não vejo diferença nenhuma dos presídios dos homens. A diferença é que somos mulheres. Mas elas são muito violentas, principalmente as sentenciadas”, diz.

Dália está no presídio há seis anos, é a presa mais antiga com que falamos. Ao longo deste tempo, ela  já teve muitas companheiras de cela. Atualmente, divide o cubículo com uma mulher que tinha apenas quatro meses na cadeia. “Me dou muito bem com ela”, contou. Mas quando questionada a respeito de amigas na cadeia, Dália garantiu que não existe amizade dentro do presídio.

“A gente tem camarada, mas amiga não”

Jasmin aguarda a chegada da sua segunda filha. (Foto: Gabriel Lopes)

A divisão das celas pode acabar criando uma afinidade entre as mulheres. No Conjunto Penal Feminino, as detentas estão divididas em oito galerias, que iniciam na letra A e vão até a H, com quatro celas, cada uma com quatro comarcas, como são chamadas as camas. A exceção vai para as mulheres que cometeram infanticídio, crime inaceitável no código de conduta estabelecido pelas presas, que ficam separadas das demais.

A respeito das facções, Dália contou em seu depoimento que, mesmo que existam muitas mulheres ligadas a esses grupos dentro da cadeia, elas não são separadas das demais  quando chegam lá. “Aqui não tem negócio de separar facção, CP, Caveira, não. Aqui todo mundo tem que ficar junto”, revelou.

As relações dentro da prisão são marcadas pela multiplicidade. Dentro do cárcere, as mulheres, abandonadas por seus companheiros, encontram cumplicidade, e se abrem para novas possibilidades de amar e serem amadas.

Lírio tem uma namorada fora da cadeia mas, ao se ver encarcerada e sozinha, reencontrou um antigo amor, e mantém também um relacionamento com essa presa, cujo nome ela carrega na pele. “Lis”, em letra maiúscula escrita com caneta.

A não aceitação da orientação sexual por parte da família fez com que Lírio, desde muito cedo, convivesse com a decepção das pessoas por ser quem é. “Meu sofrimento é esse. Minha mãe queria que eu vestisse vestido. [...] Do que adianta estar com um homem e não estar me sentindo bem? O meu gostar, o meu amar onde é que fica?”.

“Aqui dentro eu viro homem”

O corte de cabelo de estilo “masculino”, assim como o jeito de falar, andar e sentar, fazem com que as demais presas a considerem um homem.  As colegas de cela de Lírio pedem que ela se vire ou saia quando vão trocar de roupa.

Ela nos conta uma outra regra do código de conduta das presas: “E tem um porém, já tenho o nome de Lis aqui [apontou para a perna], se eu cobiçar outra mulher, eu tomo pega no pátio. Não pode, ou você termina com aquela pra pegar outra pessoa, ou você só fica com aquela até sair”. A detenta diz ainda que não há porque ficar com outra pessoa e que deseja ficar na mesma cela que a sua companheira.

Lírio tem uma personalidade que marca. É romântica, e em várias oportunidades durante nossa conversa falou sobre o amor, filosofou até.

Quanto às agentes penitenciárias, apenas Rosa falou que não era bem tratada. “Elas são ignorantes. São contadas de dedo as que são boazinhas”, alegou. No entanto, as outras internas que entrevistamos falaram que não têm problema algum com as agentes, nem nunca tiveram. Algumas relataram, inclusive, que as agentes as ajudam com doações de produtos e de dinheiro.

Sobre a diretora, a aprovação e o sentimento de gratidão demonstrado pelas presas foi unânime. Era perceptível que elas enxergavam em Luz Marina uma ajuda bem-vinda diante da situação em que se encontravam. “Graças a Deus continua sendo ela, se não não sei o que seria de mim”, reconheceu Jasmim.

Mas afinal, o que é ser uma mulher presa?
Veja a resposta de Íris a esse questionamento:

 

Luz na prisão

A filosofia de gestão aplicada no Conjunto Penal Feminino é definida em uma frase: “Se presa eu fosse como eu gostaria de ser tratada?”. Aos 57 anos, Luz Marina Ferreira trabalha no presídio há 28, e nos últimos sete exerce o cargo de diretora da prisão com a responsabilidade de monitorar, garantir o cumprimento das dívidas com a sociedade e ressocializar cerca de 100 mulheres presas na unidade.

Luz Marina começou nossa conversa com respostas genéricas e era possível perceber o tom de desconfiança dela. Com o tempo, no entanto, ela ficou mais a vontade e nos deixou a vontade para tirar as milhares de dúvidas que tínhamos sobre a prisão.

A sala bem iluminada e cheia de objetos pessoais da diretora imprimem a ela uma personalidade maternal apesar de toda responsabilidade. Além da pilha de documentos espalhados por toda a mesa, chama a atenção, logo que se entra, um painel grande com fotos de bebês e suas mães, todas vestem a farda laranja do sistema penitenciário baiano. Na parede do lado oposto ao do painel, tem uma tabela com o número de presas indicado por colunas com a descrição dos vários tipos de crime e condição de saúde.

A gestora compensa a baixa estatura com o salto alto, estava usando em todas as oportunidades que tivemos de vê-la. Os cabelos avermelhados, unhas feitas e o uso dos mais variados acessórios sugerem que ela é vaidosa. Mas não é a aparência o que mais chama a atenção na diretora, mas o fato dela conhecer cada uma das presas por quem é responsável, não só os nomes, mas as histórias delas, as famílias. Ainda mais impressionante é o fato de que, ao falar das custodiadas, ela adota um tom maternal e parece não fazer julgamentos.

“Essas mulheres perderam a liberdade, não a dignidade”

A diretora conta que faz o possível para tornar a prisão uma verdadeira ferramenta de ressocialização, o que, segundo ela, a torna alvo de julgamentos dentro e fora do sistema. “As pessoas me chamam de romântica, mas eu entendo que não posso embrutecer um ser que eu estou custodiando. Se no Brasil não existe pena de morte, não tem prisão perpétua, esse ser vai voltar ao nosso convívio e se eu embrutecer eu que vou ser prejudicada, nós todos aqui da sociedade”, explicou.

Em relação às dificuldades enfrentadas na gestão, a diretora faz críticas à disposição da Polícia Militar para acompanhar presas que precisam sair para hospitais, por exemplo. De acordo com Luz Marina, em algumas situações é necessário que ela assuma o risco e leve por conta própria a prisioneira que precisa de atendimento médico especializado. “Hoje eu não tive polícia, nem camburão, aí eu tenho que botar no carro da casa e contar com agentes penitenciários para sair sem a polícia. Às vezes o camburão não quer sair sem a polícia e eu tenho que me responsabilizar”, relatou.

Internas são vigiadas por câmeras de segurança (Foto: Gabriel Lopes)

A quantidade atual de presas no Conjunto Penal Feminino está abaixo da capacidade total. Para um lugar que já abrigou mais de 300 mulheres, 106 não parece um número tão alto. “Meu primeiro plantão, em 26 de abril de 1990, tinha trinta presas. Aqui já chegou a 300, a 200, mas hoje estamos com o número bem aquém da capacidade, que é de 132”, lembrou a diretora.

Luz Marina, que é mãe e avó, falou com carinho das crianças que tiveram a má sorte de nascer na prisão e comemorou o fato de que desde fevereiro deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu um Habeas Corpus coletivo (HC 143641), que garantiu a liberdade de mulheres grávidas e com filhos de até 12 anos. Graças a ele, “as grávidas não estão ficando”.

Defensor público há 10 anos e titular de execução penal da Defensoria Pública da Bahia,
Pedro Casali explica o que é o Habeas Corpus coletivo (HC 143641) citado por Luz Marina.

 

Atualmente não há crianças na prisão, aquelas presas que têm filhos, e que as respectivas famílias não ficam com a guarda, são acolhidos no Centro Nova Semente, uma creche-abrigo que funciona no Complexo Penitenciário, em um prédio próximo ao Conjunto Penal Feminino. As crianças visitam as mães todas às quartas-feiras.

“Muitas mães morrem, outras mães saem e não pegam seus filhos alegando que estão mais bem cuidados e melhor protegidos aqui”

Luz Marina tem sempre uma história para contar. Passou um bom tempo falando da época em que as crianças ficavam junto com as mães. Esse período poderia durar meses, ou mesmo anos. Elas cresciam na prisão, com a rotina das mães presas, pagando por algo que talvez nem soubessem que existia ou do que se tratava. Crianças presas, sem cometer crimes, sem sentença judicial, mas sentenciadas ao cárcere, filhos do cárcere.

Em mais de uma oportunidade durante a conversa, a gestora mencionou o abandono pelo qual a maioria das mulheres que cumprem pena são alvo. De acordo com Luz Marina, as mulheres que acabam na prisão, na contramão dos homens, são abandonadas pelas famílias e principalmente pelos companheiros. “Elas são abandonadas no cárcere. Das cerca de 100 presas, amanhã, que é dia de visita, você vai contabilizar 28, 30 visitantes. Ou menos”, afirmou. Entretanto, uma das nossas idas ao presídio coincidiu com um dia de visita, e o número de familiares visitando as presas não chegava à metade do mencionado pela diretora.

As presas tem direito a ter esmaltes e alicates de unha nas celas. (Foto: Clara Gibson)

Nos dias anteriores aos de visitas, que acontecem as quartas e sextas-feiras, aquelas que as recebem têm o direito de ir ao salão de beleza. Fazem os cabelos, as unhas, sobrancelhas. A vaidade é o pecado permitido dentro da prisão. “Elas são vaidosas, se arrumam... Hoje é quinta e elas estão dando prancha para visita de amanhã. Elas também têm maquiagem. Eu ganho de doação, às vezes trago de casa, e elas recebem”, disse Luz Marina ao defender que esses privilégios só são permitidos porque a gestão é feita por uma mulher. “Por isso que eu acho que tem que ter uma mulher à frente do presídio feminino, para entender essa necessidade, tem que ter essa sensibilidade”, completou.

Nas quase três décadas em que trabalha no Conjunto Penal, a diretora se recorda de cerca de oito casos de fugas e rebeliões. A engrenagem de funcionamento da prisão conta com uma equipe de 98 funcionários, 90% do total é composto por mulheres.

“[...] Como dói, meu filho,
Saber que estou distante,
Perdendo o seu crescimento
A cada dia e cada instante”
Nayellem

Ouça a poesia da íntegra com narração de Joyce Melo:

O Conjunto Penal Feminino possui 98 agentes penitenciários. (Foto: Gabriel Lopes)
 

O cárcere fora das grades

Enquanto nos guiava pela Penitenciária Feminina, Hortênsia nos perguntou diversas vezes por qual motivo tínhamos escolhido falar sobre a prisão de mulheres no nosso trabalho de conclusão de curso. "Não tinha nada mais interessante não?", ela questionava, inconformada. Tentamos explicar o motivo que nos fez ir até ali buscar histórias e explicações. Tentamos falar sobre curiosidade, proximidade, invisibilidade, mas não adiantou, ela continuava inconformada pelo nosso interesse por essas mulheres.

“Isso aqui não tem jeito não, é que nem enxugar gelo”

Hortênsia caminhava pelo presídio com a propriedade de quem está andando pela própria casa, mas carregava o olhar de quem já viu de tudo, de quem tem consciência de que aquele lugar não modifica nada nem ninguém. Há 28 anos, Hortênsia trabalha dentro da penitenciária. O tempo de trabalho deu a ela a propriedade para dizer exatamente como aquele ambiente funciona. “Todo dia a gente enxuga gelo. Tem internas aqui que chegaram aos 22 anos, quando eu entrei, e aparece agora de novo aos 47 anos. Nesses 20 e poucos anos, ela já deu mais de 10 entradas”, afirmou.

Ela acredita que o sistema carcerário brasileiro está obsoleto e que ele não se atualiza. Para a agente, quando a Justiça coloca as presas para fora do cárcere não oferece junto com a liberdade a perspectiva para sobreviver. A mulher fica “carimbada” para sempre como uma ex-detenta. A falta de perspectiva faz com que elas procurem os traficantes, que as esperam para “salvá-las” dessa realidade.

Caminhando pelas dependências do presídio passamos por salas de aula vazias e uma biblioteca mal iluminada, na qual, segundo Hortênsia, o acervo foi todo feito por doações. Mas ela garante que ninguém lê nada, nem quer saber de nada. “São todas umas interesseiras, só fazem as coisas pelos lanches e pelas ofertas que se tem a dar”, constatou.

A cadeia possui algumas iniciativas que visam a ressocialização das presas, como cursos voltados para beleza e estética, padaria, cursos de justiça reparativa, entre outros. Mas Hortênsia nos contou que, por mais que isso possa soar como algo que realmente colocaria aquelas mulheres em um rumo “correto”, as iniciativas não funcionam da forma que deveriam já que as detentas só aparecem “se tiver boa ação e merenda”, como disse a agente.

Hortênsia trabalha no presídio quase todos os dias da semana, das 8h às 18. As outras agentes trabalham 24h dentro do Conjunto Penal, e folgam por três dias, alternando as escalas em um esquema de rodízio entre elas.

Margarida atua nesse tipo de regime há dois anos e quatro meses. Quando está fora do trabalho, faz mestrado, estuda e dá aulas. “É uma rotina normal, eu faço atividade física, eu estudo, eu dou aula de contabilidade. Nesses três dias dá pra a gente ter outras atividades. Eu avalio como uma rotina tranquila”, contou.

Aos 35 anos e aparentando ter menos, Margarida confessou que teve medo quando começou a trabalhar no presídio. “É tudo muito diferente. Meu histórico profissional é todo em escritórios, então quando eu cheguei aqui era tudo diferente da minha realidade”.

“No começo eu tinha medo, mas depois eu percebi que muitas vezes elas são mais vítimas do que algozes”

Os agentes penitenciários se revezam entre rondas, recepção de visitantes e demais funções. (Foto: Clara Gibson)
 

A agente tem uma visão menos pessimista do que Hortênsia sobre o sistema carcerário. Ela acredita que no Presídio Feminino há um foco realmente na ressocialização das presas, o que já é um diferencial, levando em consideração que este é o maior problema do cárcere no Brasil, segundo a mesma. “Eu acredito que a prisão não tem como objetivo punir, e sim ressocializar. Acho que o perfil das mulheres encarceradas, principalmente aqui na minha realidade, é o perfil de quem já sofreu pela própria desigualdade do nosso país, e por isso, talvez, que ela esteja aqui, porque talvez seja difícil ressocializar”, afirmou.

Talvez por ser mais jovem, Margarida mantém a perspectiva de que as coisas podem melhorar. Uma ideia diferente da de Hortênsia, que vive o cárcere do lado de fora das grades há mais tempo.

“A gente tem família”, disse ela para nós. “Minha casa tem muita gente desempregada, mas com ensino superior. E esse povo aí? Quem tá lá para elas? Vocês colocariam uma delas lá como diaristas na sua casa? Eu não botaria. Eu não boto. Não quero pra nada”, afirmou.

Até o final da visita, não conseguimos convencer Hortênsia da importância que enxergávamos em mostrar aquela realidade em uma reportagem. Ela desprezava os nossos argumentos e nos olhava como um olhar de quem testemunha ingenuidade. “É bonitinho pra vocês que são estudantes de jornalismo e pra todo mundo que vem aqui e vão visitá-las, mas pra mim, pelo meu olhar, eu acho que tá complicado, é muito triste”, concluiu.

Detida há pouco mais de dois anos, Violeta compartilha
a dor de ser mãe, perder o filho, e não poder enterrá-lo
por estar presa.

Cada uma das celas possui capacidade para duas presas (Foto: Gabriel Lopes)
 

Sem sal, sem desodorante, sem visitas

A simpatia e o sorriso largo de Violeta não diminuíram nem quando ela respondeu como eram as refeições no presídio. “Horrível”, afirmou. E mesmo sendo enfática na descrição, ela continuou rindo. O tom também não mudou quando nos contou sobre os itens encontrados no meio da comida, e que com certeza não deveriam fazer parte do cardápio.

“Um dia é omelete, cru, um dia é frango, cru, e assim vai... Um dia é lasanha com cabelo, feijoada com unha. Rosa já tirou uma unha da boca assim uma vez”, revela e repete o gesto aproximando o dedo indicador e o polegar da boca. Nossos estômagos embrulharam, mas ela riu.

A interna contou ainda que elas não têm pratos. Cada uma possui uma vasilha plástica em que as refeições são servidas. “A comida vem sem separação, sem nada. Feijão, arroz e salada é rotineiro, mas um dia é batata, um dia é cenoura, 10 dias é beterraba, 10 dias cenoura, 10 dias batata de novo”, nos disse com ar de reprovação.

“Sem tempero, sem sal, sem nada”

Perguntamos se de alguma forma a comida servida lembrava uma comida caseira. Ela debochou, riu alto na nossa cara e imediatamente deixou claro que aquela pergunta não tinha cabimento algum.

De todas as presas que tivemos a oportunidade de conversar, a maioria disse sentir falta de algum tipo de comida. Quase todas citaram coxinha como a alimento que mais tinham saudade. Pequenos prazeres, como comer uma fruta, chocolate ou biscoito recheado, compõem a extensa lista de restrições dessas mulheres.

Algumas vontades podem ser sanadas com itens que são permitidos se levados pelas visitas. “Os visitantes podem trazer lanches, tipo nescau e biscoito não recheado. Também podem trazer material de higiene pessoal”, explicou Luz Marina.

De acordo com a diretora, na primeira visita do mês, é permitido que as famílias levem 50 ml de perfume, alicate de unha, esmalte, óleo de banana, desodorante em bastão, shampoo e condicionador. Itens que para a maioria das pessoas podem ser comuns, mas na prisão se tornam verdadeiros privilégios.

As visitas são como oásis no deserto para essas mulheres. Proporcionam, além das “regalias”, os poucos momentos de prazer a que elas têm acesso dentro do cárcere. A questão é que a maioria delas não recebe nenhuma.

Kits de higiene com sabonete, papel higiênico e absorvente são fornecidos pelo Governo da Bahia através da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) com uma frequência que, segundo a diretora, pode ser quinzenal ou mensal. Ainda assim, não parece suficiente. “O estado deixa muito a desejar nesse negócio do kit de higiene né, porque sempre falta alguma coisa”, denunciou Violeta.

“Esse mês não tem papel higiênico pra gente”

Rosa concordou que o kit de higiene oferecido pelo estado é insuficiente. Segundo ela, a pasta para escovar os dentes é pequena, e a escova é partida ao meio para que o cabo não seja utilizado como arma. "Coisa pior, alicate, fica lá na cela lá. A escova de dente pequenininha, nem dá pra escovar os dentes direito. Eu mesma quando estou escovando os dentes, a mão entra toda dentro da boca", relatou. Rosa também falou sobre o sabonete oferecido pelos kits. "É pior que aqueles sabão (sic) que a gente compra em barra pra lavar prato", declarou.

Como um número expressivo das internas não recebe visita, para ter acesso a esses produtos, elas dependem da boa vontade das colegas “privilegiadas”, das agentes que se compadecem com a situação e de doações de ONGs e entidades que realizam projetos sociais e religiosos dentro da cadeia.

“Eu tinha marido, não sei se eu tenho mais.
Eu tenho três meses aqui e meu marido nunca veio me ver”.
Rosa fala sobre o abandono no cárcere.

Bíblias são objetos comuns nas celas. (Foto: Gabriel Lopes)
 

Fé: refúgio dentro do cárcere

Lírio considera a prisão uma espécie de livramento divino. Acredita que se estivesse em liberdade, algo muito pior poderia ter lhe acontecido. O presídio, para ela, é encarado sob uma perspectiva que nos surpreende. “Passei aqui oito meses, mas foi assim oito meses que Deus me guardou aqui dentro. Se eu tivesse lá fora eu tava morta”, refletiu.

“Eu vejo aqui como um livramento. Eu digo assim, agradeça a Deus que você tá aqui, se você tivesse lá fora, você tava morta”

Ela não especificou a que religião pertencia, se é que pertencia a alguma, mas declarou que detestava evangélico. A aversão, segundo ela, surgiu por causa do pai, pastor da Igreja Universal. Lírio conta que apesar da igreja fazer ações dentro da prisão feminina, ele nunca foi visitá-la. Nunca mandou um recado.

As mulheres com quem falamos são todas muito diferentes, seja na personalidade, aparência, nas bagagens ou nos sentimentos que dividiram conosco. Ainda assim, todas possuem como ponto em comum a fé. Independente de religião e das crenças, o fato de acreditar e se apegar a algo maior ajuda essas mulheres a manterem a sanidade e faz com que elas tenham esperança de dias melhores.

A diretora do Conjunto Penal garante que há espaço para que todas as religiões sejam praticadas. No entanto, as frases e pôsteres que se encontravam nas paredes dos corredores do presídio tinham passagens bíblicas. Sobre as mulheres que conhecemos, mesmo que algumas tenham alegado não ter religião, todas afirmavam que acreditavam em Deus.

Filha e neta de pastores evangélicos e crescida na religião, Íris estava afastada da igreja antes de ser presa. “Eu cresci no evangelho, meu avô é pastor, minha mãe também, mas aí eu me desviei. Aqui dentro eu me reconciliei”, relatou.

Íris diz que além da família, somente a religião faz com que ela tenha força para aguentar a rotina dentro do cárcere. “Só Deus pra dar força nesse lugar”. Ela lê a bíblia todos os dias e contou que o momento de oração acaba estreitando relações e criando laços com as colegas de cela. “Orar junto, sentir o que a outra tá sentindo, e é isso, uma ajudando a outra”.

“Deus dá muito força pra gente aqui”

Violeta também é evangélica. Ela frequenta os cultos que acontecem quase todos os dias no Conjunto Penal e participa de ações realizadas por algumas igrejas. “Eu sou evangélica. Aqui só não tem culto dia de quarta e sexta porque é visita, e domingo a tarde, mas os outros dias da semana tem todos os dias”, descreveu.

Além dos cultos, as igrejas evangélicas também oferecem doações para as detentas que não recebem visitas, para que elas possam ter acesso a produtos de higiene pessoal e lanches. “Tem um culto que vem dia de domingo [...] aí eles sempre conseguem papel higiênico, um sabonete”, contou Violeta.

Com firmeza, Rosa diz que acredita em Deus, mas não em uma seita ou religião. Ela se apega a essa crença ao clamar por um futuro melhor. “Eu creio em Deus que eu tô perto de sair”, disse.

“Eu já pedi a Deus pra ele abrir as portas pra mim em alguma coisa, é o que eu mais peço a ele”

Além das igrejas evangélicas, a Pastoral Carcerária (PCr) também promove ações nas prisões brasileiras, e faz isso há mais de 30 anos, tendo como lema a passagem bíblica: “Estive preso e vieste me visitar” (Mt, 25:36). Na Bahia, o coordenador da Pastoral Carcerária é Francisco Carlos Almeida, que listou as principais dificuldades do trabalho voluntário. “A distância no estado é muito grande, a falta de recursos financeiros, a morosidade da justiça, a superlotação dos presídios, o pequeno número de agentes”, afirmou.

Outras instituições também oferecem cursos de estética, beleza e padaria para as detentas. Luz Marina, diretora do Conjunto Penal feminino, acredita que a prática dessas atividades auxilia na reinserção na sociedade após a prisão. “Os cursos são de cunhos empreendedoristas [...], para que ao saírem do cárcere, essas mulheres possam colocar uma guia e viver através dela”, explicou.

O tempo doado a essas mulheres, seja para transmitir uma palavra de conforto, ofertar um item de higiene pessoal ou para ensiná-las tarefas que poderão ser úteis fora da prisão, contribui para preencher o vazio sentido por elas, que até a chegada da sua liberdade, permanecem encarceradas, vigiadas e esquecidas.

“Presa em minhas próprias grades
Me encontro em um desespero
Com as mãos atadas
Deixando a felicidade escorrer entre os dedos”
Vanuza

Ouça a poesia da íntegra com narração de Joyce Melo:

Reportagem de
Camila de JesusCamila de Jesus
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