Max Bittencourt

A procura pelo 'não-ator' perfeito para atuar com um gênio surdo

O termo "não-ator" é amplamente utilizado no ambiente da produção audiovisual


Foto: Pixabay/Creative Commons

Até começar a trabalhar em produtoras de cinema e em emissoras de televisão eu não tinha uma ideia precisa de como o elenco de um filme, de uma série ou de um comercial de TV era produzido. Lá dentro é que eu pude tomar conhecimento deste processo porque mesmo antes de terminar o curso na faculdade de Publicidade e Propaganda, em Salvador, fui chamado para trabalhar em São Paulo, como estagiário, em uma destacada produtora de filmes publicitários, fazendo assistência, justamente, para duas produtoras de elenco.

O dia-a-dia da produção, para mim, se dividia entre acompanhar os atores nas filmagens, colher suas assinaturas nos contratos firmados com a produtora, organizar as fichas com os cadastros dos atores e as fitas Betacam (sim, fitas!....Betacam!) com imagens de testes já realizados pelos mesmos, além de preparar o estúdio para os testes de elenco. Eu fui um estagiário curioso, gostava de abandonar os meus afazeres na sala de produção para ir espiar o diretor passando as instruções aos atores, pedindo determinadas emoções e reações; determinando as marcações de cena; aplicando suas técnicas para extrair deles o acting perfeito.

Era quase hipnotizante assistir o trabalho de composição dos atores, as repetições de tomadas, a interpretação fragmentada, mas eficaz, a encenação para a câmera, a cronometragem dos planos. Sim, no audiovisual publicitário há um extremo rigor na duração das peças. Os filmes comerciais precisam se encaixar nos espaços publicitários destinados a eles nas grades de programação das emissoras de TV, que, em geral, são de 30, 45, 60 ou 90 segundos. Então cada plano é gravado dentro de uma duração pré-estabelecida já na decupagem de planos feita pelo diretor na fase de pré-produção. Certamente, quando a produção é destinada às plataformas da internet, estes padrões de duração deixam de fazer sentido e, portanto, não precisam mais ser obedecidos. Mas também não estão proibidos.

Para mim, que já desejava fazer parte de alguma equipe de direção, lá mesmo naquela produtora, era uma sorte, um privilégio e uma emoção indescritível poder aprender naquelas aulas práticas de direção de atores e de como ser um diretor, como se portar no set de filmagem, como tratar o ator e como se relacionar com sua equipe.

Eu só observava, nada anotava. Quando eu comecei a dar aulas de produção audiovisual, anos depois, tudo veio de novo. As memórias que eu havia acumulado por ter tido a oportunidade de trabalhar com profissionais consagrados pelo mercado audiovisual naquele momento, nunca me abandonaram. Muito do que trabalho com os meus estudantes hoje em dia, dentro e fora da sala de aula, vem dessas experiências, vem da minha participação em um grande volume de produções, o que me permitiu ter contato com as mais diversas situações e problemáticas de produção. Aprender na prática é diferente. É difícil esquecer daquilo que um dia vivemos.

Mas neste meu início de carreira, como assistente de produção de elenco, o que eu mais gostava mesmo era de fazer pesquisa de elenco. Meu trabalho consistia em ir a campo em teatros, circos, escolas, clubes, a fim de fazer imagens de atores e pessoas comuns que pudessem se encaixar nos perfis das personagens dos filmes em fase de produção. Este trabalho apurou minha sensibilidade artística e meu olhar para as coisas, naquele começo, e me permitiu conhecer pessoas e assistir a espetáculos que de outra forma eu jamais veria, e que hoje eu percebo, ajudaram a me formar, a me tornar quem eu sou, na medida em que foram me abrindo janelas para que eu pudesse conversar com o mundo.

Eu era uma espécie de caça-talentos com uma câmera na mão, apontando-a para quem eu considerava dentro do briefing, ou seja, dentro do perfil do personagem. Claro que depois de pedir autorização para isso. Não se pode sair por aí fazendo imagens de outra pessoa sem que ela tenha assinado uma declaração ou gravado um vídeo consentindo. No audiovisual publicitário ou em qualquer outro formato comercial, não pode.

O episódio que melhor guardo na lembrança, relacionado a pesquisa e produção de elenco, ocorreu quando integrei a equipe de produção de uma campanha de refrigerantes, composta por cinco filmes. Cada filme de trinta segundos possuía sua própria narrativa, mas um bordão ligava todas as peças, criando uma unidade para toda a campanha. Em um dos cinco roteiros, a narrativa apresentava um rapaz franzino e desajeitado, como aqueles adolescentes cheios de braços e pernas, em processo desgovernado de crescimento. O roteiro ficcional sugeria um rapaz de dezesseis anos e ainda virgem. Mas, para evitar a filmagem com menores de idade e ter que acionar o juizado de menores para as autorizações, o briefing elaborado pela produtora de elenco logo sugeriu que fosse pesquisado um ator de dezoito anos, mas que aparentasse menos. Fica a dica.

A principal personagem desta campanha, que estava presente em todos os filmes e que fazia a ligação entre todas as peças, era um tal gênio da lâmpada, que ouvia mal e não entendia muito bem os pedidos feitos por aqueles que esfregavam a lâmpada com as mãos. Deficiente auditivo, o gênio sempre se confundia na realização dos desejos.

Neste filme, a cena é a seguinte: um rapaz franzino, tímido e desajeitado entra no vestiário do clube, só de toalha, e dirige-se ao seu armário. A câmera, em ângulo alto, sugere a posição enfraquecida na qual se encontra o personagem, que deve parecer um tanto envergonhado com toda aquela situação. Então, o rapaz abre o seu locker e se depara com o que havia pedido ao gênio. Lá dentro vemos um par de tênis exageradamente grande. O filme dá a entender que o gênio, confuso e surdo, ao atender o pedido do rapaz, teria entendido que ele desejava um “tênis” grande, mas que, na verdade, não teria sido bem esse o pedido do rapaz. O gênio tenta se explicar pelo mal entendido, mas o fato é que o jovem, frustrado, termina o filme vendo o seu sonho de uma tão esperada iniciação sexual permanecer distante.

Reunião finalizada, briefing passado. O diretor do filme gostaria ainda de acrescentar, para os produtores de elenco da campanha, um detalhe que para ele era central na realização do filme e que, naquele momento, me gerou um certo estranhamento, eu não pude entender a razão daquela observação. Ele queria que o personagem do adolescente fosse protagonizado por alguém que não fosse ator, modelo ou figurante; alguém que nunca tivesse sequer pisado em um estúdio de filmagem. Ele pedia que eu pesquisasse não-atores. Foi a primeira vez que ouvi esta expressão: não-atores (o termo “não-ator” não se trata de uma unanimidade no campo das Artes, mas é amplamente utilizado no ambiente da produção audiovisual). Mas por que ele queria trabalhar com não-atores? Não teriam os atores profissionais um desempenho superior? O que ele almejava com isso?

Sem maiores explicações da direção sobre esta exigência, parti, no dia seguinte, bem cedo, para uma escola que ficava próxima à produtora e pedi autorização para fazer alguns registros (imagem + depoimento) de alguns estudantes, para um trabalho publicitário. Apresentei o cartão da produtora e quis mostrar confiabilidade. A inspetora me disse que eu poderia ficar do lado de fora da escola e abordar os alunos que fossem saindo. Se eles concordassem, estaria tudo bem.

Coloquei-me ao lado dela no portão da escola, quarando sob o sol, até que o sinal tocou, liberando os estudantes para casa. O primeiro que cruzou o portão, acreditem ou não, era exatamente o que procurávamos. O tal personagem, franzino e tímido. E aparentemente virgem. Pedi sua atenção e expliquei o que eu estava fazendo ali. Disse que ele correspondia ao perfil que eu estava buscando e perguntei se ele aceitaria gravar um pequeno depoimento falando de si para que pudéssemos analisar as imagens depois com o diretor. Só depois de muita insistência ele topou. Gabriel me disse que era só pra “quebrar meu galho”, mas que não faria filme nenhum. Que não levava jeito pra isso, que não gostava de aparecer mesmo e ponto.

Eu concordei com tudo que ele disse ali na hora. O mais importante era fazer o registro e apresentar ao diretor mais tarde. Eu estava certo que aquele jovem correspondia ao perfil do briefing, mas ainda tinha uma longa jornada por outras escolas naquele dia. Voltei à noite para a produtora com dezenas de registros feitos durante o dia de pesquisa e mostrei a fita com as imagens ao diretor. A primeira imagem foi a de Gabriel, o primeiro entrevistado do dia. Depois de assistir ao “teste” do adolescente, o diretor encerrou a sessão e pediu que eu ligasse para o rapaz no dia seguinte e informasse que ele já estava aprovado para fazer o filme.

Mesmo sabendo que o adolescente não faria o filme, resolvemos insistir. Depois de eu tentar convencê-lo por duas vezes, o diretor teve que ligar para ele pessoalmente. O horário da filmagem foi modificado, em função das exigências de Gabriel que, por timidez, tentou dificultar ao máximo sua participação na filmagem, impondo condições. Disse até que teria prova na escola no mesmo dia e horário da filmagem. Mesmo com tudo isso, o diretor convenceu o rapaz. Gabriel, pelo dobro do cachê, resolveu fazer o filme.

No dia da filmagem, o carro da produtora foi buscá-lo na escola e ele chegou diretamente para o set. Ele tinha apenas uma ou duas falas no filme, que foi decorando no caminho. Sem ensaios, o diretor apenas indicou a marcação, por onde ele deveria se mover no cenário, até alcançar o armário de cena, e em que momento ele deveria dizer as falas do personagem. Ao contrário do que eu acharia o normal, nenhuma orientação foi passada para Gabriel sobre atuação.

Tudo pronto para começar a gravar. Apenas o operador de som afinando os últimos detalhes. Gabriel, já de toalha amarrada à cintura, aguarda o sinal do diretor para entrar em cena naquele vestiário cenografado. Como planejado na reunião, a câmera começa a mover-se sobre a cabeça de dele, que entra em cena quando ouve o “ação”, do diretor. Aquele jovem que não queria filmar, que tinha problemas com a própria aparência, que parecia inadequado e pouco à vontade naquele ambiente de filmagem, de alguma forma, dava vida ao personagem do roteiro.

O rapaz franzino e tímido do roteiro parecia se manifestar com perfeição nas ações de Gabriel, em seus gestos, em seu olhar vacilante. O caminhar desajeitado até a realização do seu desejo, trancado no armário, talvez tenha sido resultado da pouca familiaridade do adolescente com refletores, cabos e cenários, mas era positivo para a cena. A vergonha que o rapaz sentia ao aparecer seminu para uma equipe de mais de trinta pessoas confundia-se com a vergonha que o personagem da narrativa publicitária precisaria imprimir na tela. Era verossímil.

O diretor não precisou orientar o rapaz quanto ao que fazer em cena, como interpretar as falas ou como lançar seu olhar fragilizado para o gênio da lâmpada porque ele já sabia que Gabriel não estaria à vontade ali, no ambiente de uma filmagem, e isso era tudo o que ele precisava para criar o sentimento de inadequação e de timidez que o personagem requeria e para conferir realismo à cena. De alguma forma, a performance de Gabriel evocava, sim, o personagem do roteiro e o contrário também era verdadeiro. Ao ler o roteiro e tomar conhecimento da narrativa e do personagem ficava impossível não pensar em Gabriel, mesmo antes de conhecê-lo. E vendo aquilo, eu entendi o diretor.