Max Bittencourt

Minha vitrola e as imagens que saíam dela

Sigo por aqui, derramando sobre o leitor as minhas experiências acumuladas em duas décadas de trabalho atrás das câmeras


Foto: pxhere/Creative Commons

Já faz alguns dias, desde que fui surpreendido pela grata surpresa de que ocuparei este espaço para falar sobre as minhas experiências na produção cinematográfica e audiovisual, que me pego pensando em como iniciar este diálogo com o leitor, em como me abrir, me expor e por onde começar a descrever, em linhas gerais, a minha relação com a imagem e com a produção de audiovisuais, mais precisamente. Não consigo me afastar da ideia de ir lá para o começo, para um tempo em que eu vivia carregando a minha Sonata do Mickey pelos corredores do prédio onde eu morava com meus pais e meus irmãos.

Não pretendo aqui fazer um relato cronológico da minha formação profissional, não é isso, mas é que hoje, recuperando a minha trajetória no audiovisual a fim de me apresentar e de situar o leitor sobre de onde eu vim e o que eu quero aqui, é interessante notar que, a princípio, pode-se pensar que aqueles momentos nos quais eu ia de porta em porta, com a minha vitrola, convocar meus amiguinhos do prédio para brincar no playground, nenhuma influência teriam na minha experiência pelos estúdios e produtoras de tevê, cinema e vídeo. Mas acredito, sinceramente, que foram estes instantes, lá atrás, que forjaram em mim o diretor e o produtor de imagens que nasceriam mais tarde.

Indo para o começo: lá pela segunda metade dos anos 80, minha mãe era professora de uma escola estadual e com muita frequência nos levava com ela para o trabalho porque não tinha com quem deixar os três filhos pequenos. Então, ao chegar para dar aula, ela nos deixava aos cuidados de suas colegas, outras professoras, ou mesmo de funcionários da escola (todos nos conheciam em um nível de aproximação e afeto que talvez não exista mais hoje em dia) e dirigia-se para o exercício de seu ofício, em sala de aula. Acomodados na secretaria da escola, nós ficávamos, eu e meus irmãos, entretidos com os livros infanto-juvenis da estante, o nosso parque de diversões.

Li praticamente toda a Coleção Vagalume. Amava. Não era preciso me demorar na escolha de que livro ler. Todos me interessavam, eram capazes de capturar a minha atenção e a minha alma. Me recordo que havia neste local muitas mesas de madeira, organizadas uma atrás da outra, enfileiradas. Outra lógica na configuração do espaço. Hoje, verifico que prevalecem, neste tipo de ambiente, aquelas mesas grandes e redondas que tentam forçar uma interação entre os que ali estão. Eu escolhia a mesa que estivesse desocupada e, com ela só pra mim, me punha a divagar pelas historinhas. Ficava ali, na leitura, por horas.  Sempre sob o olhar cuidadoso e amoroso das colegas de minha mãe. Passei muitas tardes assim.

Outras tardes eram para explorar o conjunto habitacional em que eu morava, cheio de becos, entradas e saídas, árvores e esconderijos secretos. Ao redor do meu prédio, mais nove. Eu tinha amigos em todos eles. Nos reuníamos na quadra, onde jogávamos vôlei e futebol, no campo de terra, onde jogávamos baleado; nos corredores, pelas escadas, eram os jogos de tabuleiro: Detetive, Ludo, Banco Imobiliário, Scotland Yard. Nos corredores e pelas escadas eram também os beijos escondidos de criança.

Apesar de ter sido sempre popular entre os amigos e possuir até um certo espírito de liderança na proposição de atividades e brincadeiras inusitadas e criativas para as crianças daquela idade, eu tinha meus momentos de introspecção, que chegavam ao ápice quando eu resolvia sentar na máquina de escrever Olivetti de minha mãe. Ela era professora, como sabem, e, acredito que por isso, trazia muito papel ofício da escola para casa. Muito mesmo. Para mim era uma festa. Eu brincava de datilografar sem dó. Acho que essa liberdade de não ter que me preocupar com a limitação de recursos para produzir me fez tomar gosto pela coisa, naquele início. Comecei a escrever.

Eu me lembro bem que após uma curtíssima “fase poética”, eu comecei a escrever umas histórias com personagens fictícios e cenas dramáticas. Hoje me dou conta de que eram scripts, tais como os de um capítulo de novela (sim, era uma época na qual assistia-se muita televisão, muito mais que hoje com a chegada da internet, então era a referência que eu tinha). Saíram daquela Olivetti verde de minha mãe narrativas que eu ambientava no condomínio mesmo, para facilitar a “produção”. O elenco era formado pelos amigos, que não podiam se recusar a fazer os personagens senão saía briga e nunca mais eram convidados novamente. Todos sabiam. Já naquela idade eu era um diretor rigoroso. Pelo menos era o que corria pelos corredores.

O playground do meu prédio, o Visconde de Monte Alegre, foi a locação recordista para as encenações que eu inventava. O espaço era grande e iluminado, com janelas e vista, ideal para as cenas românticas. E tinha tomadas nas paredes, nas quais eu podia conectar a minha Sonata do Mickey, presente de Natal dos meus pais, e já pedido com este propósito, o de trilhar os meus devaneios. Isto porque além de escrever as “esquetes”, selecionar o elenco e dirigir, eu também fazia a sonoplastia.

Na minha sonata tocaram Roberto Carlos, Rita Lee, Nelson Gonçalves, Júlio Iglesias, Maria Bethânia, Elis, Richard Clayderman (pense!). No momento ensaiado com o elenco eu punha para tocar os long-plays emprestados dos meus pais, que sempre incentivaram a minha veia artística. Eu cresci ouvindo essa turma, escutando as músicas que meus pais escutavam. Até que um dia, um pouco mais crescido e com um gosto musical mais próximo de mim do que deles, pedi de presente o Fullgás, de Marina.

Assim que eu terminava de escrever os roteiros, descia as escadas do prédio com um maço de papel ofício nas mãos e saía distribuindo entre os que tiveram coragem de atender ao meu chamado e apareceram no play. Com o roteiro em mãos, os “atores” decoravam as suas falas ali na hora mesmo (não era nada muito extenso) e eu determinava as marcações de cena, dirigia as atuações e opinava sobre o figurino que cada um deveria usar.

Ainda não havia câmera. Nesta época era impensável para um cidadão comum, classe média “achatada”, possuir um equipamento de vídeo. Alguns anos depois é que surgiram no mercado filmadoras acessíveis. Aí meu pai pôde comprar uma JVC, mas eu já estava na faculdade, com pouco tempo para brincadeiras. Crescer dói.

Então, eu dirigia encenações que estavam mais próximas do teatro do que do cinema ou do audiovisual. Os meus amigos atuavam, não para as câmeras, mas para um público fictício, colocado à sua frente. Eu não pensava em câmera, enquadramentos, ponto de vista, iluminação. Nada disso. Eu apenas estabelecia, no playground do meu prédio, os cenários, onde estariam dispostos os elementos de cena e qual deveria ser a movimentação do ator durante a ação. Não pensava em close ups ou movimentos de câmera, mas pedia reações específicas àqueles atores amadores e intenções ao dizer as falas, a partir do que pedia o roteiro. E emoção, muita emoção. Aí é que complicava e o que era drama virava comédia.

E assim, quase sem sentir, na brincadeira mesmo, fui apurando, com o passar do tempo, determinadas características que, hoje sei, fazem parte do trabalho de um produtor audiovisual. Perdi a conta de quantas vezes reuni o grupo (meus amigos) para os ensaios, para a prova de figurinos, para as encenações “valendo”, assim como um produtor ou diretor de audiovisuais faz com sua equipe; não sei precisar agora, mas escutei compulsivamente todos os discos que meus pais tinham em casa a fim de compor as trilhas das “esquetes”, pensando em cada cena e no perfil de cada personagem, assim como fazem os “trilheiros” ou produtores de áudio, ampliando o meu repertório musical, mas “afinando” o ouvido também; idealizei cenários como os das grandes produções que, na minha brincadeira de criança, eram construídos na imaginação, apenas, mas que serviram para me estimular criativamente.

Decidi recuperar um tempo longínquo da minha vida, um tempo da brincadeira, do jogo lúdico, para me abrir e falar da minha caminhada e do meu encontro com o que eu faço da vida hoje em dia porque é justamente esta a minha ligação com a imagem e com a produção de conteúdos audiovisuais: o afeto. Tudo começou pelo afeto e é assim até hoje. Do meu playground eu passei a frequentar sets de filmagens como profissional até migrar para a universidade. Como em uma brincadeira “séria” (e, para mim, toda brincadeira é séria), acho que transformei a sala de aula em um set de filmagem.

No meu trabalho como educador audiovisual, procuro transferir para os meus estudantes a motivação e o dinamismo que são próprios deste fazer, sem esquecer o “material” humano e as relações e trocas sensíveis que surgem neste tipo de atividade. Por não saber fazer diferente, rompi com a estrutura tradicional da sala de aula e envolvi meus estudantes no processo de produzir e realizar de fato, de construir algo novo sempre a partir de suas próprias experiências e visões de mundo, de criar obras fílmicas que organizam artisticamente seus discursos, que exigem deles protagonismo e cooperação para criar, facilitando a compreensão do outro e naturalizando as diferenças. Esta é a minha cachaça.

As minhas brincadeiras de criança me “azeitaram” e me trouxeram até aqui. A experiência de produzir audiovisuais, para além de formar profissionais, como um  produtor ou um diretor de filmes, de séries ou comerciais de tevê, pode oferecer vivências que ajudam a despertar o sujeito que está ali por trás. Acredito que as experiências que eu vivi não sirvam para todo mundo, mas sigo firme e crente no poder do afeto como um veículo de acesso ao conhecimento e à produção de experiências transformadoras, no trabalho e na vida.

Sigo por aqui, nos próximos textos, derramando sobre o leitor as minhas experiências acumuladas em duas décadas de trabalho atrás das câmeras e mais uma dezena de anos como mediador do processo de construção de conhecimento do indivíduo por meio da produção audiovisual, na universidade, como professor. Desejo que, longe de afastar o leitor das minhas histórias acerca do trabalho de um realizador de filmes, o que ele faz ou o que ele deixa de fazer, que estes escritos possam revelar histórias de transformação que, de outro jeito, ficariam guardadas na minha memória e na de quem as viveu junto comigo. Espero que goste. E se ficar cansativo, não desista, vá até o fim.