Desta sexta-feira (27 de junho) até domingo (29), a cidade de Parintins, no coração da Amazônia, será palco do 58º Festival Folclórico de Parintins, com a disputa entre os bois-bumbás Caprichoso e Garantido.
Reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os bumbás celebram a cultura amazônica por meio da rivalidade simbólica, apresentando alegorias monumentais, toadas envolventes e encenações que exaltam lendas, rituais indígenas, identidade regional e temas socioambientais.
Este ano, o Boi Caprichoso apresenta o tema “É Tempo de Retomada”. A proposta celebrará a ancestralidade e a força do povo amazônida. A identidade visual traz a imagem de uma mulher indígena grávida segurando uma criança – símbolo de renovação e esperança.
Já o Boi Garantido aposta no tema “Boi do Povo, Boi do Povão”, que pretende levar à arena do Bumbódromo, dividido em subtemas, uma celebração da resistência, da ancestralidade e da força de seus povos, reafirmando a posição como o ‘Boi do povão”.
Os “Paikicés” (guerreiros, em munduruku) são os responsáveis pelo transporte das alegorias do Boi Caprichoso, cujo galpão está a cerca de 500 metros do Bumbódromo. O Boi Garantido, com galpão situado a aproximadamente 2,3 km do Bumbódromo, conta com o trabalho dos “Kaçauerés” (formigas, em nheengatu) para a missão.
O Garantido abre a festa nesta sexta-feira e encerra no sábado (28) e domingo (29); o Caprichoso faz o encerramento nesta sexta-feira (27) e abre nos dias 28 e 29, sábado e domingo.
No dia 26, o público é recepcionado no bumbódromo da ilha na Festa dos Visitantes.
Talentos nos bastidores
Entre as histórias de quem ajuda a construir o maior festival folclórico a céu aberto do mundo figura Wendy Delevingne que, aos 26 anos, é figurinista do Boi Garantido. Responsável pelas indumentárias do Amo do Boi, João Paulo Faria, ela conta sua trajetória com orgulho.
“Comecei a trabalhar com figurino no boi-bumbá Espalha Emoção, um dos bois do Festival do Mocambo do Arari, na zona rural de Parintins”, recorda. “Mas, mesmo antes de assinar como figurinista, já mexia com alguns acessórios para eventos da temporada. Acredito que isso é um dom que a gente carrega. Com o tempo, fui chamada para trabalhar em outros festivais, em outros municípios, até que em 2021 assinei com o Garantido”, detalha.
Wendy revela que suas primeiras referências foram artistas como Helerson da Maia, Fabson Rodriguez e Rafael Andrade: “Helerson da Maia já esteve fora do Brasil com seus trabalhos, e o tenho como forte referência. Aprecio também o trabalho do Fabson e do Rafael, mas hoje evito olhar os trabalhos deles porque quero manter uma certa distância. Afinal, são colegas de profissão”, explica.
Wendy relembra que o primeiro impacto do preconceito veio na escola. “É algo enraizado na nossa sociedade. Quando a gente tem um jeito mais delicado, mais afeminado, já sofre chacota. E eu sofri isso porque era uma criança retraída”, relata. “Com o tempo, passei a focar em mim e a viver bem comigo mesma. Hoje posso afirmar que me tornei a mulher que quis ser”, afirma.
“A arte é, sim, uma ferramenta de inclusão social, não só para o público LGBTQIAPN+, mas também para outros segmentos. A arte é inclusiva. Posso dizer que sou uma mulher trans que deu certo, não por ser melhor que outras mulheres trans, mas porque tive uma base familiar e, graças à arte e ao espaço no boi, alcancei um nível de respeito profissional”, reflete Wendy, sobre o papel da arte em sua vida.
Fruto das novas gerações, Elton Graça, de 24 anos, atua nos ateliês do Caprichoso como figurinista desde 2023. “Comecei como assistente em 2022. No ano seguinte desenvolvi um trabalho bonito e fui considerado ‘figurinista revelação’ na arena. Hoje estou aqui, graças a Deus”, resume.
“Hoje é mais aberto, sim, mais antenado com a criatividade da pessoa. Mas não quer dizer que seja fácil. Depende muito da entrega de cada artista – e em Parintins o que não falta é talento”, opina Elton, que é bissexual, avaliando que o contexto atual é mais receptivo ao talento, embora os desafios persistam.
“Não sofri absolutamente nada! Fui muito bem acolhido por todos. Agradeço ao ex-presidente Jender Lobato, que me deu a primeira oportunidade, e ao atual presidente Rossy Amoedo, que respeita todos os artistas do boi Caprichoso”, afirma.
“Se eu tivesse que homenagear alguém, seria o Rafael Andrade, com quem trabalhei como assistente. Aprendi tudo com ele. Também agradeço ao Kildery Ferreira, que me indicou para os primeiros trabalhos no boi, ao William Muniz, diretor de eventos, e ao Edwan Oliveira, do Conselho de Artes”, diz.
Waldir Santana, pioneiro na arte e na atitude, é nome imortalizado na história do Festival de Parintins. Foi Tuxaua da Originalidade, figurinista de itens individuais, coreógrafo, artista de Tribos, Pajé e membro do Conselho de Artes do Caprichoso.
Começou no Garantido nos anos 1980, migrou para o Caprichoso em 1986, voltou ao Garantido no início dos anos 1990 – onde foi Pajé por dois anos – e retornou ao Caprichoso, onde permaneceu por quase três décadas como Pajé. Deixou a arena em 2017, mas continua ativo no setor de figurinos.
“Naquela Parintins dos meus 15 anos, era muito difícil. Sentia a discriminação de perto. Eu era discreto, não me declarava gay, tinha namoradas e uma vida que não chamava atenção”, relembra. “Minha mãe me educou bem e aprendi a ter caráter, a me respeitar e respeitar os outros”, acrescenta.
“O meu talento era muito grande, e eu era muito novo. Fiz as pessoas me respeitarem pelo meu trabalho. Nunca fui desrespeitado nem no Garantido, nem no Caprichoso”, conta. “É claro que vi colegas sendo discriminados, mas me impus. Sempre ouvi um conselho precioso: estude! E foi o que fiz”, diz. “O artista gay Waldir Santana e o personagem Pajé caminharam juntos. E isso deu certo”, finaliza.