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Toda criança, um dia, mais cedo ou mais tarde, aprende a andar de bicicleta. Mesmo que ela não tenha uma bicicleta em casa, alguém, algum dia, vai ensiná-la a pedalar: seus pais, seus amigos ou seus vizinhos. Primeiro ela vai precisar das rodinhas auxiliares que são fixadas na roda traseira visando mais estabilidade e segurança, e depois, mais crescida, que nem o pássaro desajeitado que abandona a certeza do ninho e se arrisca no primeiro rasante, ela se lança ao desconhecido sobre duas rodas. Para ela é o máximo, o auge da sua independência.
Quando eu comecei a me interessar por bicicletas, uma amiga da minha irmã, que era mais nova do que eu, e já tinha uma bike!, se solidarizou com a minha situação e começou a me dar aulas. No primeiro dia, ficamos uma tarde inteira dando voltas no play do meu prédio, naquela bicicleta infantil com as tais rodinhas laterais. No dia seguinte, avançando no treinamento comigo, ela removeu uma das rodinhas da bicicleta e me fez repetir o mesmo trajeto do dia anterior, dessa vez em um nível mais elevado de complexidade e exigência. Não me recordo do terceiro dia, nem sei se ele, de fato, aconteceu. Muitas décadas depois, hoje sinto que acordei um dia já sabendo como andar de bicicleta. Deletei essa parte, não sei porquê. Para Wally Salomão, a memória é uma ilha de edição.
Eu fui ter uma bicicleta depois que todos os meus amigos já tinham. Eu já sabia como andar bem quando ganhei uma Monark Monareta azul-marinho de presente dos meus pais. Pra falar a verdade, eu até já havia desistido desse sonho. Não esperava mais ganhar uma, até que em um certo Natal, não me lembro bem de que ano, estávamos todos reunidos na sala da casa de minha avó para a ceia, quando vi meu pai entrar pela porta empurrando uma bicicleta. Eu já estava tão desencanado da ideia, achando que meu desejo de ter uma bicicleta nunca se realizaria, que demorei para acreditar quando ele disse: É sua!...
Parece que naquele momento tudo ficou em silêncio. Roberto Carlos ficou mudo na tevê, o tempo parou e eu fui, em slow motion, ao encontro da minha bicicleta, como naquele segundo que dura uma eternidade. Antes que eu pudesse acordar do choque e ir aproveitar a novidade com meus primos, meu pai, me ajudando a desfazer o laço de fita que ainda envolvia o guidon da bicicleta, completou: É sua e de sua irmã! E sorriu pra mim. Nem preciso dizer do misto de felicidade e frustração que tomou conta de mim naquela hora.
Meus pais tinham isso: se eu pedisse uma determinada quantia para comprar algo, eles também davam o mesmo valor para os meus dois irmãos mais novos. Sou o mais velho. Se me compravam uma calça jeans, compravam outra para minha irmã e outra para meu irmão (ou outra roupa que eles quisessem mais, porém no mesmo valor). Sempre dormimos no mesmo quarto, os três, compartilhando o espaço e os brinquedos, gerenciando por conta própria a fila do banheiro quando chegava a hora de acordar e ir para a escola. Estudávamos todos no mesmo lugar. Porque a escola era boa e porque era cômodo para os meus pais, obviamente.
Já adulto, quando pedi um dinheiro emprestado para dar entrada em um apartamento que eu queria comprar, eles depositaram o que puderam na minha conta e o mesmo valor nas contas dos dois também. Até porque sabiam que, no fim das contas, não se tratava de um empréstimo. Foi sempre assim. Acho que eles entendiam que, desse modo, estariam nos ensinando sobre igualdade, direitos, sobre saber dividir e compartilhar. Sei lá.
Mas, com o tempo, eu percebi que, ainda que eu não tivesse a bicicleta só para mim, com ampla liberdade para utilizá-la quando bem entendesse, porque, assim como o quarto, o banheiro e os brinquedos, eu teria que compartilhá-la com minha irmã (meu irmão mais novo, nessa época, ainda era muito pequeno para andar de bicicleta), na prática mesmo, eu até que conseguia conciliar facilmente as minhas saídas para pedalar com os interesses dela, que, sorte a minha, pouco pegava na bicicleta. Ela tinha um grupo de amigos que gostava mais de jogar bola: baleado, bobinho, vôlei e o handball, que ela descobriu na escola, mais tarde. Ela estava nessa fase, dos esportes. Eu queria ir pra rua, sentir o vento batendo no rosto.
Minha Monareta foi uma companheira inseparável em boa parte da minha infância. Os anos mais felizes. Quando eu me senti livre, de alguma maneira, pela primeira vez. Eu e meus amigos descobríamos caminhos, explorávamos territórios que só pedalando poderíamos alcançar. Certa vez, de férias na casa de uns primos no interior, atravessei a cidade de bicicleta para ir até a casa da minha avó, só porque bateu saudade. Outra época. Hoje, isso seria impensável. Íamos pra longe mesmo. Deixávamos nossos pais preocupados porque ganhávamos o mundo de bicicleta. Minha mãe teve que organizar uma rede de informantes pelo bairro, amigos e vizinhos que moravam por perto, para que ficassem de olho e dessem notícias quando eu passasse. Só assim ela ficava sabendo de mim.
Quem nunca andou de bicicleta? Quem nunca fez longas trilhas, subindo e descendo, carregando alguém na garupa? Quem nunca se machucou, nem que fosse “de leve”, apostando corrida de bike com os amigos? E quem não se lembra de ter vivido estas experiências e outras aventuras mais ? Quem nunca sonhou com uma bicicleta na infância?
Lembrar dos meus tempos de bicicleta me trouxe de volta a imagem de Paloma. A primeira vez que olhei para Paloma ela estava terminando de se maquiar, dentro do camarim. Eu conseguia observá-la por entre a porta do estúdio e a fresta da porta entreaberta do camarim, que ficava bem em frente. Ela me pareceu corresponder ao perfil da protagonista de um filme publicitário para uma conhecida rádio FM.
O roteiro do filme apresentava diversas situações do cotidiano de pessoas comuns, homens e mulheres de todas as idades, que, no filme, ocupavam os espaços da cidade de maneira descontraída ao som da tal rádio, a nossa cliente. Havia uma personagem, no entanto, que aparecia em todas as cenas, “costurando” a narrativa. Então, enquanto realiza o seu passeio de bike pela cidade, a protagonista interage com os outros personagens, em cenários diferentes, como a orla, a fachada de um restaurante, uma rua ou um ponto turístico.
Quando penso que não, Paloma já está no estúdio, pronta. Ela ajeita uma última mecha do seu cabelo que teimava em lhe cobrir a visão. Peço a ela que se dirija para a “marca”, em frente à câmera. Mesmo seguro de que ela se encaixava no briefing, precisaria ser testada para o papel. Este é o rito. Havia outras candidatas naquele dia que também passariam pelo mesmo processo seletivo.
Nos testes de elenco para filmes publicitários, em geral, muito mais do que talento dramático, o ator deve possuir uma certa fotogenia, funcionar para determinadas situações ou ângulos de câmera, “encarnando” o conceito que o produto ou a marca deseja transmitir ao seu público-alvo. A imagem, na maior parte das vezes, comunica mais do que a trama em si. Então, pedi que Paloma se movimentasse livremente em cena, pois eu faria algumas imagens dela a fim de verificar sua afinidade com a câmera, em planos abertos, médios e close-ups. Ao final de uma diária de testes extensa e cansativa, Paloma foi escolhida.
No dia da filmagem, chegamos à primeira locação bem cedo. Teríamos que filmar em muitos locais diferentes da cidade no mesmo dia, o que torna o processo complexo e lento. Normalmente, em uma diária de filmagem, o ritmo é intenso. Se há muitos deslocamentos entre locações, nem se fala. A equipe toda trabalha para tudo dar certo e cada detalhe inserido na decupagem da direção, na análise técnica de produção ou conversado em reunião, precisa ser produzido, viabilizado por todos os membros da equipe, cada qual em sua área, para que não haja atrasos ou erros. Não pode haver erros.
A primeira cena do roteiro foi também a primeira a ser montada para a gravação: a protagonista anda de bicicleta em um bonito gramado à beira-mar, cantarolando o jingle da rádio, feliz e sorridente, pois assim pede a Publicidade. Então, estabeleci na locação onde seria o set de gravação, discuti com o diretor de fotografia as posições de câmera, as lentes que seriam utilizadas. Enquanto isso, a atriz trocava de roupa no camarim improvisado na van de produção e os assistentes de arte já se encaminhavam para o cenário a fim de posicionar a bicicleta, o nosso principal objeto de cena, quase a coisa mais importante nesse filme, já que estaria presente em todas as sequências.
Depois que testamos a luz, o áudio e enquadramos a bicicleta no plano de câmera, pedi para chamar Paloma. Quando ela chegou, fui ao seu encontro no meio do set e comecei a lhe explicar como se daria a “ação”, de acordo com o que estava descrito no roteiro. À medida que eu falava e passava instruções, percebi que ela ia perdendo a cor. Em determinado ponto, começou a emudecer e transpirar excessivamente. Ela mal olhava para mim. Suas mãos tremiam quando ela tirava o cabelo da testa, enquanto eu lhe explicava como fazer a cena. Ela me pediu um tempo e voltou para a van.
Paloma não conseguiu me contar que não sabia andar de bicicleta e por isso não poderia fazer a cena. Não na frente de toda a equipe. Ela não gostava de bicicletas, tinha medo! Me confessou isso depois. E por não saber andar de bicicleta, ela sentiu que havia prejudicado o trabalho de todo o grupo, pois todos estavam trabalhando juntos, colaborativamente, com o mesmo objetivo, essas coisas. Paloma chorava quando eu a encontrei já trocando o figurino para ir embora. Ela até se desculpou por “jogar fora o nosso dia de trabalho”.
Paloma não sabia, no entanto, que o erro foi meu. Durante a pré-produção, e principalmente durante a fase de produção de elenco, eu não havia raciocinado como um produtor ou como um diretor de audiovisuais, que precisam se prevenir dos imprevistos ou das falhas de comunicação. Paloma não sabia que, ao testá-la para aquele papel, eu deveria ter perguntado se ela sabia andar de bicicleta, e até tê-la feito dar umas pedaladas no estúdio. Isso é o certo. É assim que se faz. Eu pensei que, como eu, todo mundo sabia andar de bicicleta.
Errei por não ter cogitado outras possibilidades além daquela a qual eu já estava familiarizado. Pedi desculpas a Paloma. Disse que ela fez tudo certo e que a falha foi minha mesmo. Eu havia comprometido o trabalho de toda a equipe e estava desperdiçando o tempo dela. Não pensei no que poderia dar errado, não fiz todas as perguntas possíveis na hora que deveria. Falhei como produtor e impactei o trabalho de uma série de pessoas envolvidas no processo como um todo: os criativos da agência, os produtores, os editores; atrasei a data de veiculação do filme, interferindo em sua programação comercial de veiculação. O efeito é em cadeia, por isso é preciso tanto rigor nas etapas. Diária cancelada e todos os pedidos de desculpa aceitos. Teríamos que começar tudo outra vez. Mas isso, naquele momento, para mim era a menor das preocupações.
Voltei para casa pensando em Paloma e com um vazio enorme no peito. Não estava preocupado com a gravação e tudo o que havia dado errado, o dia perdido. Enquanto eu voltava de carro, olhando pela janela as pessoas na orla, indo e vindo de bicicleta, me perguntei quantas aventuras a bordo de uma bike Paloma não viveu. Quantos namorados não levou na garupa, quantos arranhões deixaram de marcar em seu corpo a liberdade que é se lançar ao vento, irresponsavelmente, em cima de uma bicicleta. De quantas alegrias Paloma havia sido poupada pela vida, sem que ela se desse conta, só porque nunca aprendeu a andar de bicicleta? Tentei imaginar por onde andava Paloma quando alguém quis lhe ensinar a pedalar.
Cheguei em casa uma pessoa melhor. Conhecer Paloma me deixou com um sorriso na cara que nunca mais foi embora de mim.