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O processo de realização de uma peça audiovisual não é o mesmo em um programa de TV ou em um longa-metragem de ficção, assim como não é a mesma coisa produzir um reality show e produzir um documentário. São coisas diferentes. Cada formato de programa pede um processo de “confecção” particular, que possui fases, etapas, condições de trabalho e até profissionais específicos, em muitos casos.
A produção de um audiovisual obedece a alguns prazos e determinações que vão se impondo no decorrer do processo, mas, sobretudo, são as próprias regras do campo específico em que essa realização se dá que influenciam o passo a passo da produção.
Em geral, as produções televisivas ou publicitárias já possuem um orçamento estabelecido, então todas as decisões criativas são tomadas tendo em vista a verba do projeto. O programa já possui um formato, uma duração, patrocinadores etc. Então, a equipe técnica “entra em produção”, ou seja, parte para providenciar todas as questões práticas que irão viabilizar a realização do programa: escalação de elenco, construção dos cenários, pesquisa de figurinos, produção de efeitos especiais etc.
No caso dos longas-metragens, o processo pode começar pela produção executiva, que prospecta a verba para produzir um determinado roteiro; este aporte financeiro pode vir por meio de editais, leis de incentivo ou de patrocínios diretos. Com o orçamento garantido, ou boa parte dele, os produtores já conseguem iniciar os trabalhos. Geralmente, neste início, o diretor encontra-se com o elenco para leituras de mesa e ensaios.
Já um filme documentário pode começar seu processo de produção na captação de imagens sobre um determinado contexto, assunto ou personagem, ou na coleta de documentos e fotografias históricas, para que, posteriormente sejam definidas as questões orçamentárias. Isso é muito comum no cinema independente, por exemplo. Não há um modelo, uma fórmula, um caminho obrigatório. Certamente, o porte da produção determina os caminhos de sua realização.
Mesmo entre obras de um mesmo gênero ou formato há variações em seus processos particulares de construção. Se o empenho é para criar um filme baseado em representações da realidade, ou seja, um formato próximo ao que o senso comum conhece como documentário, então, pode se utilizar, por exemplo, as estratégias do cinema-direto como abordagem, como mise en scène, mas pode-se também lançar mão de uma colagem visual, um mural com imagens fixas e em movimento, animadas através de efeitos de pós-produção, como uma outra possibilidade de construção da narrativa daquele filme. Nada impede. São variadas as formas de enunciação no documentário, que pode até se entrelaçar com a ficção em muitos momentos. E vice-versa.
Essa tendência à multiplicidade de possibilidades para a construção da narrativa audiovisual é facilmente verificável não somente no documentário, quando utiliza recursos como imagens de arquivo, trechos ficcionais, voz over, entrevistas, reconstituições e efeitos de pós-produção, mas em praticamente todas as outras modalidades de programas (ou produtos, ou obras) cinematográficos e audiovisuais.
É possível identificar, desde os primeiros tempos da cinematografia, em produções como Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, por exemplo, que a utilização dos mais variados recursos e artifícios de composição, como trucagens e efeitos especiais são dominantes neste universo desde sempre.
Em outra dimensão, os cineastas sempre foram atraídos também, não somente pelo hibridismo inerente ao processo de “feitura” da imagem, por sua ambigüidade intrínseca, ontológica, ao se colocar como um reflexo das coisas do mundo. Assim como sempre foi difícil para o espectador não se entregar ao fascínio provocado pela imagem em movimento como uma forma de expressão, de enunciação e de produção de sentidos.
O fato é que os realizadores, seja na ficção ou no documentário, sempre utilizaram todos os recursos de que dispunham (criativos, técnicos e instrumentais) para realizar seus filmes, e as características do programa e sua linguagem (seu formato) determinam, sobremaneira, o modelo de produção a ser adotado pela equipe.
Também importa compreender e atender às expectativas de público, e o perfil do target é analisado e levado em consideração na elaboração da peça audiovisual. Se o campo da produção for a TV, principalmente, pois a busca pelos índices de audiência pode interferir no conteúdo da obra, em seu formato e até na sua ordem de entrada na grade de programação da emissora. Os diretores de programas de TV trabalham com um olho na cena e o outro nos números do ibope.
Então, se é preciso produzir um programa de variedades para a TV, além de pensar no telespectador e nos patrocinadores, é necessário definir um cronograma de produção, um planejamento de gravações, o roteiro do programa; é preciso testar e selecionar os apresentadores, construir os cenários ou escolher a locação na qual o programa será gravado e por aí vai.
Se o programa é um jornalístico, no entanto, o editor-chefe deve, entre outras coisas, editar as reportagens feitas pelas equipes de jornalismo, criando um roteiro para o telejornal, cujo discurso deve reforçar os interesses da emissora, respeitando sua “linha editorial”. Sempre há uma. Isso também é linguagem.
Já no caso do cinema narrativo ou da telenovela, que são produtos de ficção, os produtores têm outras preocupações: a elaboração de um roteiro dramático que deverá ser encenado e sua decupagem, a escalação do elenco de atores profissionais, a produção dos figurinos e dos cenários, os ensaios de luz, os ensaios com o elenco, os testes de captação sonora, a direção de cena (mise en scène), etc.
São todos, ou quase todos, elementos presentes em uma produção encenada, programada, ficcional, que é diferente de um formato como o documentário, que, em suas asserções sobre o “real”, conta com a participação de não atores e, de modo geral, abre-se à indeterminação e ao improviso no transcorrer da tomada, por exemplo.
Eu sempre me senti mais confortável no campo da ficção, pois esse tinha sido o meu começo no audiovisual. Planejar, ensaiar, decupar para depois filmar. Eu transitei nesse tipo de produção, a ficcional, durante muitos anos: fui produtor de elenco e assistente de direção de programas de teledramaturgia, de curtas e longas-metragens e também de filmes publicitários. Todos esses formatos estão muito mais próximos do universo da ficção, pois requerem muitos preparativos para o grande dia, que é o dia da gravação.
Nos projetos ficcionais, o diretor de cena se concentra na composição da imagem do plano de câmera e ensaia os atores; o fotógrafo pode estudar o posicionamento dos refletores em função do “clima” a ser criado na cena; o técnico de som é orientado a respeito de onde instalar o microfone, que já tem seu lugar previsto em algum ponto escondido do cenário ou no figurino do ator.
Tudo definido no cronograma de produção e no orçamento, pensado e planejado por uma equipe que pode ter trinta, quarenta ou cinqüenta integrantes, a depender do projeto, divididos em equipes: a equipe da Arte, a equipe da Fotografia, a equipe do Som Direto, etc. Fazer ficção no cinema ou na televisão é um grande acontecimento.
Não que na produção documentária não exista pré-produção e, em muitos casos, também não haja um grande aparato técnico e muita gente criativa para lá e para cá em torno do diretor, em função do trabalho, que é coletivizado e colaborativo por natureza. Mas acontece que no documentário, para que seja possível fazer registros do “real”, não é necessário, obrigatoriamente, uma grande engrenagem técnica ou artística. Em muitas situações, este formato de produção admite imagens mais precárias e tomadas pouco iluminadas, por exemplo.
O sentido de “fragmento de realidade” concede ao documentário esta “licença”. É como se a imagem em baixa resolução, “amadora”, com problemas de foco ou enquadramento, muitas vezes, conferisse ao filme, pelo espectador, um estatuto de “verdade”, de documento mesmo, porque afasta a ideia de encenação, de disfarce das aparências, de composição da imagem, de uma verdade construída.
Pois bem. É aqui que eu quero chegar, enfim. Esse choque de realidades, entre a produção ficcional e a documentária, eu tive quando comecei a dirigir um programa de televisão que se assemelhava muito às ideias cinemanovistas, que tinham no cinema-direto uma grande influência: a câmera na mão, o embate direto entre o diretor e o mundo histórico (as pessoas filmadas em seus contextos), a sincronização entre som e imagem, orçamento bastante limitado e muito, mas muito improviso mesmo.
No primeiro dia de gravação deste programa - era um programa de viagens e de cultura regional, viajávamos muito; a equipe era pequena, seis pessoas - tudo transcorreu normalmente. Eu precisaria gravar umas “cabeças” com a apresentadora e fazer algumas passagens dela por alguns pontos da localidade para utilizar como inserts no programa. Cada edição abordava as curiosidades de alguma cidade do interior do Estado da Bahia. Como eu vinha de uma “escola ficcional”, já cheguei na primeira cidadezinha escolhendo as locações e definindo as posições de câmera, defini os enquadramentos, a ação da apresentadora dentro do quadro e começamos a gravar. Foi assim durante todo o dia.
À noite, no hotel, depois do jantar, toda a equipe se reuniu em um dos quartos para revisar o material bruto. Era muito gostoso fazer isso depois de um dia inteiro de gravações, sob o sol. Apesar do cansaço, aquele era o momento de avaliarmos o trabalho feito durante o dia e corrigir problemas dali pra frente. Muitas ideias de pautas para programas seguintes surgiram dessas reuniões.
Eu estava satisfeito porque aquilo tudo não me parecia tão distante e diferente do que eu já havia feito até então, nos programas de ficção. Fui dormir tranquilo e com a sensação de dever cumprido, pois as imagens mostraram-se bem realizadas e nelas era possível observar a personagem se deslocando pelo quadro, interagindo o personagem e com o ambiente, enquanto falava seu texto para a câmera. Tudo de acordo com o planejado.
Na diária seguinte iríamos de van até uma outra localidade, entrevistar um determinado personagem. Esses personagens da vida real eram pesquisados por uma produtora que chegava à localidade um dia antes do restante da equipe, que só chegava depois, direto para gravar. Um reflexo das limitações impostas pelo orçamento restrito de produção.
Por conta disso, em muitas situações, as pré-entrevistas eram feitas superficialmente e, em muitos casos, nem eram feitas com antecedência. Não era incompetência da produtora, pelo contrário. Ela fazia muito além do que era sua função, a fim de garantir as pautas. Eram as imposições colocadas pelo projeto, como equipe reduzida e restrições de verba para produzir bem. Normalmente, chegávamos ao local para fazer imagens e captar depoimentos, mas antes tínhamos que encontrar alguém que tivesse uma boa história para contar. Nem sempre era fácil, mas as pautas sempre aconteciam.
Encontramos com o personagem daquele dia em uma cabana feita de estacas de madeira e coberta com palhas de coqueiro, que ficava em um terreno coberto de vegetação e nada mais. Antes de começarmos a gravar a entrevista propriamente dita, a apresentadora andou com o convidado pelo espaço e fizemos algumas imagens deste momento, a fim de contextualizar a situação, mostrar para o telespectador onde a conversa acontecia. Coisa simples e básica. Até aqui tudo bem.
Entretanto, quando começamos a estabelecer o plano de câmera para a entrevista, olhamos para o relógio e já eram 17 horas. Ou seja, a luz natural estava acabando. O Sol estava se pondo e a noite cairia rapidamente. Não tínhamos uma Ordem do Dia para nos guiar naquela tarde de gravações, um documento de produção que faz uma estimativa da duração da diária de trabalho, assim como faz uma previsão do tempo destinado a cada cena, a partir do número de planos que serão gravados.
Por outro lado, como elaborar uma Ordem do Dia se, naquelas condições (impostas pelo formato do programa), não sabíamos ao certo o que encontraríamos na locação, nem como seria o rendimento do personagem para a câmera, nem se a entrevista seria interessante e se transcorreria normalmente, sem contratempos maiores, etc? Não era um projeto de ficção, no qual todas essas questões são levantadas e consideradas na hora de estabelecer o planejamento de gravações, pois existe um roteiro, ou seja, é possível mensurar a dimensão da diária...
Não tínhamos equipamentos de iluminação, apenas um sun gun já sem bateria e sem pontos de energia por perto. Com a noite caindo, e para não perder a pauta e nem o entrevistado, posicionamos a van de produção de frente para a “cena” e acendemos os faróis contra os personagens. Só assim foi possível gravar a pauta e aproveitar o material. Nada de refletores, rebatedores, gelatinas. Estes são itens de uma produção com um certo orçamento e nós não tínhamos quase nenhum. Era uma coisa “Glauber”: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.
Em outra situação, começamos a gravar numa cadeia de corais de uma praia até que a maré subiu de repente e não pudemos concluir a gravação. Foi preciso voltar à mesma praia, dias depois, com a água no mesmo nível, para completar o trabalho. Caso a produção investigasse com antecedência a Tábua de Marés, como seria o correto, ficaria sabendo quais eram os melhores horários para gravar naquele local. E eu não teria um aparelho celular danificado porque estava em um bolso da bermuda, quando notei que a maré havia subido até quase a cintura.
A minha participação neste projeto não me afastou da linguagem documentária e de sua abertura para o acontecimento, para a indeterminação do transcorrer da tomada. Ao invés de ser dominado pelo formato, resolvi buscar aprender, a partir de um exercício constante desse formato audiovisual.
A partir daí, realizei um documentário sobre o processo criativo em torno da produção audiovisual, no qual os imprevistos de gravação, na medida do possível, foram incorporados à narrativa fílmica. Em outro documentário, um projeto mais recente, em fase de produção, analiso a mise en scène no cinema documentário e seus arranjos na narrativa, a partir da utilização de elementos e recursos oferecidos pela linguagem cinematográfica e audiovisual, e, sobretudo, e pela intensidade do encontro entre cineasta e pessoas filmadas, levando-se em consideração as circunstâncias da tomada, a partir da expressão de seus corpos “atuantes”, dentro e fora de cena, no plano da imagem.
E quanto mais a gente aprende com as experiências, mais a gente compreende que está só começando.