Max Bittencourt

Como o rock de Kurt Cobain uniu duas cidades no oeste da Bahia

Para lá do Javi, o pôr-do-sol é cor-de-rosa e o céu tem muito mais estrelas


Foto: Rose Robin/Wikimedia Commons

Em 2015, descobri o Oeste. Fui de mala e cuia para “um fim de mundo”, atrás do sonho de contribuir com a interiorização do ensino superior gratuito e de qualidade no estado da Bahia, e no país como um todo, consequentemente, um projeto priorizado pelas gestões do PT, nos governos Lula e Dilma, que, de fato, me motivaram para esta jornada pelo interior do Brasil, com o objetivo de, como professor em uma universidade federal, ir ao encontro de uma população que até aquele momento era privada deste acesso, e promover, junto com ela, experiências criativas e colaborativas de aprendizado em torno da produção de conteúdos e produtos audiovisuais.

Confesso que nem sempre me emociono com a política do nosso país, infelizmente ela me dá poucos motivos para isso, mas quando a presidenta Dilma, no discurso de posse do seu segundo mandato, em 2014, mencionou que a partir dali o Brasil trabalharia para se tornar a “pátria educadora”, marejei. Primeiro porque pressenti (e aí me permito expôr aqui o meu ponto de vista) que ali se iniciava sua derrocada. A despeito de todas as análises políticas e econômicas que apontavam esse ou aquele fator como justificativa para um golpe de estado, que começava a ser articulado no centro do poder àquela altura e que meses depois viria a eclodir, Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar o cargo mais importante da república, havia “cutucado a onça com vara curta”, tocado em um tema nevrálgico, desde sempre delicado no nosso país: a Educação.

Historicamente, universidades e escolas públicas, docentes e estudantes organizados são o alvo preferencial de ataques por parte da força reacionária que sempre existiu no país e que começava a reaparecer, aqui e ali, inclusive bem perto da presidenta. O que esta mulher intencionava fazer, em seu segundo mandato, era começar a mover a estrutura social vigente de uma maneira que a médio e longo prazos tiraria muita coisa do lugar, que modificaria os processos e relações já estabelecidos e cristalizados há muitas décadas, e que se mostrava extremamente ameaçador para essas “forças”, que são as mesmas que não apreciam nenhum tipo de mudança ou transformação, e sim a manutenção do mesmo. Isto porque, para os donos do poder e do dinheiro, a Educação sempre foi percebida como uma grande ameaça, pois é capaz de dar voz e liberdade ao sujeito, e isso incomoda àqueles que acreditam na imobilidade social: quem nasce pobre e ignorante, morre pobre e ignorante. A gente que é professor sabe que não é bem assim.

Os representantes da velha política brasileira ficaram de orelha em pé. O que esperar de um povo bem informado e questionador, que não engole fácil o arsenal de fake news e o discurso sedutor da grande mídia, para a qual interessa manter o gigante adormecido? O que seria de uma sociedade cujo povo tem consciência do seu próprio poder e reclama por ele? Todo poder emana do povo, é o que diz a Constituição de 1988. Não, os engravatados homens brancos e estreitos da envernizada elite brasileira não poderiam permitir. E não permitiram.

A Educação sempre foi resistência e transformação, e no Brasil pré-golpe ela estava, novamente, diante de uma ameaça de estagnação, assim como todas as iniciativas do governo que visavam, até então, a melhorar a vida do cidadão comum, desprovido de privilégios e até de seus direitos mais básicos, a duras penas garantidos por uma série de medidas que, apesar de não resolverem por completo os problemas sociais, representavam um alento e um fio de esperança para muita gente; direitos garantidos também por uma Constituição que, após o golpe sentiríamos mais fortemente, passou a ser apenas mais um livro na estante como outro qualquer.

Ainda tocado por aquele discurso de posse revolucionário e corajoso, eu, que vinha de longos anos ensinando na iniciativa privada - e acho que para quem conhece essa realidade sabe o que quero dizer -, tomei fôlego novamente, peguei ar! Assim que surgiu um concurso público para docente em uma universidade interiorizada (o primeiro e único concurso que prestei), me lancei com uma força e uma vontade enorme, que as pessoas à minha volta não conseguiram entender o porquê de tanto entusiasmo. Para elas, só alguém muito descompensado poderia deixar a cidade grande, os cinemas, a praia, o shopping center para ir viver longe de tudo e perto de nada (?). E a saudade das pessoas queridas, como é que faz? Fui criticado. Até hoje sou.

Assumo que por um curto período de tempo, antes de participar do processo seletivo, eu também fui acometido por esses pensamentos, mas um lado meu, nômade e aventureiro, me dizia que era aquilo mesmo que eu deveria fazer. Eu realmente acreditava, e continuo acreditando, com mais convicção a cada dia, que a saída para todas as coisas está na formação crítica do sujeito, na educação e na informação contra a alienação. O Brasil de hoje, 2020, ratifica a minha crença. Mas este é um outro assunto.

Ao contrário do escancarado sofrimento solidário das pessoas que desejavam me demover do meu propósito, eu até queria mesmo me afastar um pouco de um grande centro e ter mais tempo para ler os meus livros empoeirados na estante, alguns ainda no plástico, e ver todos os filmes que eu ainda não tinha conseguido ver porque a vida corrida da “metrópole” não deixava. Além da sala de aula, este também é o meu trabalho: ler, escrever ... e ver filmes. E deu muito certo porque, graças à minha rotina mais suave, pude ler bastante e estudar para um doutorado que eu já desejava cursar antes mesmo de prestar o concurso. Além do mais, eu queria comida mais orgânica, trânsito mais leve e pessoas mais “normais”.

Enchi de malas e livros o carro e parti, em janeiro de 2016, para a minha nova vida. No caminho até lá (são mais de doze horas de viagem), minha playlist do Radiohead trilhava cenas da minha vida que eu recuperava da memória e achava que, direta ou indiretamente, poderiam ter me levado até ali. Entre escolhas e acasos, lá estava eu, amarradão. As paisagens ao longo do caminho iam se movendo pela janela, mudando de cor e de fisionomia, denunciando onde era sertão, onde era cerrado; o dia indo embora, a lua laranja surgindo enorme e querendo brilhar mais do que o Sol. No Oeste, para lá do Javi, o pôr-do-sol é cor-de-rosa e o céu tem muito mais estrelas. Sobre o futuro, quem sabe?

Na minha chegada, encontro uma paisagem desoladora. A cidadezinha de 40 mil habitantes, onde eu iria morar para dar aulas no campus local da universidade, enfrentava, depois de vinte anos, uma enchente que forçou a saída de muitos moradores das áreas mais baixas, próximas às margens do Rio Corrente, para os bairros mais altos, pois a água invadiu tudo: entrou pelas portas das casas, afogou a escadaria da igreja e a rampa da biblioteca municipal, na praça principal. Os moradores trocaram suas motos e bicicletas por barcos e caiaques, nos quais iam recolhendo as pessoas e animais ilhados pela grande inundação das ruas do centro. Eu só havia visto aquilo nas imagens do Jornal Nacional.

O Oeste, quente e seco, me recebia com água em abundância. Para quem crê, a água é por onde corre o sentimento, o afeto. E para mim, aquilo foi um sinal. Não de que eu deveria juntar meus trapos e voltar correndo para minha vida organizada, onde tudo estava em seu devido lugar, mas um sinal de que havia muito para ser feito ali mesmo. Entendi que a nossa chegada (assim como eu, outros colegas estavam chegando na cidade com a mesma finalidade) daria um novo fôlego àquele lugar, que há muitas décadas havia sido abandonado pelo progresso. A chegada de professores, técnicos e estudantes, vindos de todas as partes do Brasil, certamente transformaria a pequena cidade em um novo pólo de cultura e conhecimento no extremo oeste baiano, com a chegada da universidade.

Entrei no campus no dia seguinte a fim de mostrar trabalho. Logo reuni, em torno de um projeto de extensão, um grupo de estudantes que tinha mais afinidade com o audiovisual e estruturamos um núcleo de produção cuja proposta era produzir vídeos acadêmicos, e também institucionais para alguns clientes locais, a fim de aproximar o estudante das práticas profissionais de realização audiovisual. Para inaugurar o projeto, o grupo decidiu produzir um videoclipe como peça de divulgação do núcleo audiovisual que estava prestes a nascer.

E naquele cenário pós enchente e pré “impeachment” começamos o processo criativo do clipe. Como primeira ação do núcleo, marcamos uma reunião para definição da música a ser trabalhada. Nela, os participantes resolveram que o espírito do grupo era rock and roll e, apesar de estarmos na terra do forró, do sertanejo e da sofrência, precisávamos gritar, pois tinha, sim, um grito preso na garganta. Sem dúvida era hora de “quebrar tudo”. O grupo teve uns dias para pesquisar repertório e num próximo encontro, em um microsystem em cima da mesa de reunião, apresentaram Smells Like Teen Spirit, do Nirvana.

A locação principal seria a passarela de pedestres sobre o Rio Corrente, que une as cidades gêmeas de Santa Maria da Vitória e São Félix do Coribe. Essa foi uma das primeiras decisões do grupo, já que a estrutura moderna é um cartão postal do local e representa muito a relação entre as cidades e as pessoas de lá. Quando iniciamos o processo de roteirização do videoclipe, a fim de definirmos as ações e quais seriam os enquadramentos e movimentos de câmera, e o processo de pré-produção em si, nos demos conta de que estávamos em um centro acadêmico e não em uma produtora de vídeos, portanto não havia orçamento para produzir. Para além das câmeras DSLR e alguns poucos equipamentos e acessórios dos quais dispunha a universidade, não tínhamos recursos para viabilizar nenhuma ideia que não fosse simples e “sem custo”. 

Criativos nós somos e sabemos, mas descobri na reunião seguinte que éramos também malucos megalomaníacos. Estávamos todos em volta da mesa discutindo qual seria a ação a ser gravada, o que o clipe iria mostrar ao espectador. A ideia inicial era posicionar alguns jovens na passarela, todos com atitudes que transmitissem liberdade e transgressão, assim como o rock, performando para as câmeras. De repente, alguém se levanta e diz que tem como conseguir um drone para usar na gravação. Do outro lado da sala, alguém diz que os jovens do roteiro, na verdade, poderiam ser músicos de uma banda que estariam “fazendo um som” no alto da passarela para toda cidade ouvir, e que ele teria como conseguir os instrumentos: microfones, guitarra, baixo, bateria… A coisa foi ganhando outra dimensão.

Neste processo criativo e colaborativo, uns se dedicavam à produção de objetos de cena, contactando pessoas da cidade ou colaboradores que pudessem ajudar nesse sentido; outros se dedicavam à escolha dos “atores” de acordo com o perfil da banda fictícia que pretendíamos montar para a cena; uma estudante tinha uma prima na cidade vizinha que era maquiadora, a outra conhecia alguém que poderia ajudar com a produção de figurinos, pois era proprietária de uma loja de roupas. Havia muitos operadores de câmera no grupo, então não tivemos problemas com isso: eles mesmos entraram em acordo e decidiram quem faria a operação das câmeras e quem ficaria na produção de set. Eu fiquei encarregado de ir até as prefeituras das duas cidades e pedir autorização para gravar na passarela, bem como solicitar sua interdição por alguns períodos na manhã de gravação, o que foi suficiente para alterar a rotina das duas cidades.

No dia da gravação, às cinco da manhã, os equipamentos começaram a chegar no set, os atores já estavam trocando de roupa e sendo maquiados. A equipe de câmera começou a posicionar os equipamentos, a partir do que tinha sido definido na reunião. O proprietário do drone chegou logo em seguida (sim, ele topou emprestar seu equipamento recém adquirido) e nos reunimos com ele para entender como aquilo funcionava e passar instruções acerca dos movimentos que ele deveria desempenhar. Tudo sempre a partir do que havia sido decupado e planejado anteriormente em reunião.

Duas horas depois, assim que tudo ficou pronto, começamos a gravar. As caixas de som espalhavam o rock de Kurt Cobain para as duas cidades e os atores, paramentados, encarnavam estrelas da música. O drone sobrevoava a cena dando rasantes por entre as gigantescas vigas de ferro da passarela, em movimentos arrepiantes. Quem estava fora de cena ou quem passava por perto no momento parou para assistir, impressionado com aquela novidade. Aquilo nunca havia acontecido antes naquele lugar. Guardas municipais se aproximaram para saber o que estava acontecendo ali e nós apresentamos o alvará concedido pela prefeitura dias antes. Tudo dentro do esperado.

Com a assinatura “Loucamente criativo e experimental” o clipe foi exibido para a comunidade no dia do lançamento do núcleo de produção audiovisual do campus da universidade e foi uma peça publicitária eficaz porque conseguiu, através do seu conceito, traduzir a proposta de atuação do projeto de extensão, cujo destaque estava na produção acadêmica de experiências criativas a partir da perspectiva do próprio estudante, do seu ponto de vista sobre a realidade, e pondo-o em contato com o dia-a-dia da produção audiovisual.

No vídeo: Navi
Música: 
Smells Like Teen Spirit, de Dave Grohl, Kurt Cobain, Krist Novoselic

Se esta experiência foi significativa para os estudantes, que depois desse evento passaram a utilizar a linguagem audiovisual como uma das principais ferramentas de expressão, tanto acadêmica quanto pessoal, haja vista o grande número de trabalhos videográficos que são realizados no campus hoje em dia, foi sobretudo importante para mim porque, a partir de toda a movimentação gerada na cidade em função da produção do videoclipe, um simples trabalho acadêmico realizado por estudantes da universidade, entendi que as pequenas iniciativas são poderosas, podem “mover” as estruturas e promover grandes transformações. E este foi mais um motivo que me fez ir ficando...