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Que se vive na planta do pé
Estamos aqui, sábado, na coluna "Papo de Pai".
E daí me vem à mente "Crime e Castigo", de Fiodor Dostoiévski. Não é apenas um livro, é um tratado filosófico, sociólogo. É poesia!
Poderia ter vindo a história da Chapeuzinho Vermelho que Zazá leu pra mim ou as imagens do filme "Divertidamente" que assisti com Dodó. Ou poderia ter aparecido Gasparzinho, o fantasminha camarada. Mas foi "Crime e Castigo".
É que pai também lê e relê. Deve ser sintoma da quarentena.
Expurgo! Essa mania que os humanos têm de justificar seus crimes e suas maldades. Como podem ser tão criativos, né?
Raskólnikov, protagonista da trama, cometeu o crime perfeito, apesar de suspeito. Pensava que ao matar um ser desprezível, insignificante (no caso foram dois), estaria contribuindo para o avanço da humanidade.
E aqui abro um parêntese que só fecho ao final do texto. Nelson Rodrigues, no livro "Memórias - A menina sem estrela", confessa tudo. Seus medos, suas mesquinharias, suas perdas, seus lutos, sua busca por aprovação, suas mentiras, sua generosidade; era um franciscano. Confessa que foi o Raskólnikov de "Bebeto" Marinho, que morria de inveja do senhor riquinho; dos carros, mulheres, da careca lustrada, até mesmo de suas meias coloridas. Que sentia vontade de matá-lo! Matar uma barata por um bem maior. Pega nada, né? O fim justificando os meios.
Será que não agimos assim, nem tão secretamente, em graus diferentes? É que tem aquela coisa: cem coelhos nunca fizeram um cavalo. Nem um pônei. Nem um burro. Como cem presunções nunca fizeram uma prova. Mas existe o nosso travesseiro; sim, e ele tem dentes afiados e nos morde e nos impede de dormir.
E o personagem de Dostoiévski fica atormentado, febril, delirando, quer morrer, vai até a ponte, olha pra baixo, mira o rio, pensa em pular, dá meia volta, cai de cama, não consegue gastar a grana que ia usar pro início de sua carreira - a tal "causa nobre". Confessa a Sônia o crime que cometeu. No fim, acaba se entregando. Aceita sua cruz, aceita sua dor. E quando ajoelha aos pés de Sônia: chora, e chora jorrando lágrimas que lavam sua alma por completo.
Ninguém se salva sozinho nesse mundo. E foi lá, preso no campo de um presídio, na Sibéria, olhando pro rio, que "começa a viver". Sem mais dialéticas, sem mais dialéticas. Renasceu como Lázaro! E foi do amor de uma mulher. Não foi apenas a admissão da culpa, a pena, a vergonha, ou o que pensavam dele; não, ele estava "mortinho"! Não ligava mais para nada; não foi nada disso que salvou Raskólnikov. Foi o amor. Amor demais! Inexorável, infinito...
É o que falta no mundo. É o que pode salvar o mundo. Fecho o parêntese aberto no início do texto. É exatamente isso que me faz levantar às 3 da manha para ver se minhas filhas estão devidamente cobertas na noite congelante e enlutada. E eu estava tão confortável. Mas o universo não gira em torno do meu lindo e pensante e sensível umbigo, né? Na vida real não há trilha sonora para cada tombo; a gente nem tem tempo pra dar um trato no "look" pra cena final. Vai feio, vai se arrastando, mas vai.
O amor dorme em corpos pequenos, bem na minha frente. Eu os cubro com edredons de unicórnio e abençoo. Minhas filhas estão conectadas no aqui e agora. Como se tivessem jogado uma âncora no presente. E nem se zangam com a nuvem negra que estacionou sobre todos nós.
Em algumas horas a vida irá explodir pelo apartamento todo: quero estar pronto. Só através do outro posso descobrir quem sou. Meus olhos não se enxergam.
Porque a gente vai se abandonando com o tempo, vai morrendo tanto em vida, que quando chega a hora da morte: resta quase nada da gente para enterrar. E esta tem sido minha busca: me tornar humano. Uns querem ser Deus. Outros: diabo. E tem os Hércules, os Pans e os tals. Eu me contento em me tornar humano.