Gina Marocci

Como a Semana Santa era celebrada na Salvador colonial

As cerimônias da Semana Santa são as mais importantes do calendário litúrgico da Igreja Católica. Elas são a culminância da Quaresma, período de 40 dias nos quais os católicos devem fazer penitências, jejuns e se voltar mais à oração como preparação para a Páscoa. Essa celebração tem relação com a Páscoa judaica, a Pessach, em que se celebra a saída do Egito rumo à Terra Prometida.

Há relatos de que nos primeiros anos logo após a morte e ressurreição de Jesus havia comemorações do sábado de aleluia e do domingo da ressurreição, contudo foi a partir do Concílio de Niceia (325 d.C.) que as igrejas definiram que a Páscoa Cristã seria celebrada no domingo que segue à lua cheia após o equinócio da Primavera no hemisfério norte. Ficou decidido, também, que as celebrações ocorreriam por uma semana, do Domingo de Ramos ao Domingo da Ressurreição.

Cada dia da semana faz referência a um acontecimento narrado nos Evangelhos. Os dias mais importantes são: o domingo de ramos, que celebra a chegada de Jesus em Jerusalém para as comemorações da Pessach; a quinta-feira, o dia da última ceia de Cristo com seus apóstolos; a sexta-feira da crucificação e morte dele; o sábado, que é da vigília pascal e, finalmente, o domingo da ressurreição. Vamos lembrar algumas procissões que ocorriam em Salvador, algumas que deixaram de existir e outros costumes.

Como a Quaresma é uma preparação para a Páscoa, no século XVII, em Portugal, havia na terça-feira de Carnaval a adoração das 40 horas ao Santíssimo Sacramento, sob a responsabilidade dos jesuítas, cerimônia que estes religiosos trouxeram para o Brasil e a realizaram em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Não se sabe quando ela deixou de acontecer, mas acredita-se que tenha sido com a expulsão dos jesuítas no século XVIII.

Na primeira quarta-feira da Quaresma ocorria a Procissão de Cinza ou da Penitência, cuja responsabilidade era da Ordem Terceira de São Francisco. Esta antiga procissão era um verdadeiro espetáculo teatral que transformava as ruas por onde passava em palcos e instrumentos de catequese do povo.

A dramaticidade barroca se manifestava nas figuras trajadas representando personagens bíblicas. Uma árvore frondosa com os frutos proibidos era ladeada por Adão e Eva vestidos de peles e um anjo, com uma espada, pronto para os expulsar do paraíso.

Depois vinham um homem vestido como a morte, a cruz e dois anjos e 7 figuras vestidas de saco, que representavam penitentes. Começava, então, o desfile de andores dos 5 mártires franciscanos do Marrocos, rondados por um homem que representava um mouro, ou, então o satanás. Depois, vinha uma figura com a balança na mão representando a justiça divina, e 20 andores bem ornados fechavam a procissão, dentre eles o de Jesus com a cruz nas costas, de São Francisco e de Nossa Senhora da Conceição.

Das janelas dos sobrados jogavam-se flores sobre os andores e, sendo noite, punham-se velas acesas dentro de mangas de vidro nos peitoris das janelas.

Aqui em Salvador havia severas críticas dos estrangeiros sobre o comportamento do povo e do clero. Além das risadas e chacotas que eram ouvidas, o comportamento dos padres e religiosos, que riam e trocavam olhares e sinais com as mulheres nas sacadas, não passava despercebido.

Esta procissão deixou de acontecer ainda na primeira metade do século XIX, mas ainda ocorre em cidades mineiras e portuguesas, mas sem as figuras e encenações dramáticas.

Para o final da Quaresma, no domingo de ramos, início da Semana Santa, havia a Procissão do Triunfo da Cruz de Cristo e Senhor Nosso, organizada pela Ordem Terceira de São Domingos. Apesar de ter acontecido por pouco tempo, a Procissão do Triunfo era muito luxuosa pelas vestes das personagens bíblicas e pelos andores ricamente ornamentados. Também era um grande espetáculo que seguia pelas ruas do centro histórico, com figuras do Antigo Testamento e andores de santos relacionados com a ordem dominicana e com Jesus crucificado e Nossa Senhora do Rosário. O último ano da saída dessa procissão em Salvador foi 1830.

No início da noite da quinta-feira santa saía a Procissão do Fogaréu (em alguns lugares ela ocorria à meia-noite da quarta-feira), espetáculo de grande dramaticidade devido às personagens e suas vestes. A responsabilidade da organização dela, tanto em Portugal como no Brasil, era da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia.

Dentro do conjunto da Misericórdia, a Irmandade armava a santa ceia com figuras de cera em tamanho natural, o que atraía muita gente que ficava sensibilizada ao ver os apóstolos em volta de Jesus.

As pessoas vestiam-se de preto, despojavam-se das joias e enfeites e as mulheres cobriam as cabeças, e esperavam a saída da procissão da Igreja da Misericórdia. A bandeira da Misericórdia, ladeada por homens levando tocheiros, abria a procissão, que tinha fachos, penitentes (encapuzados, que se flagelavam), painéis representando os passos da Paixão de Cristo e os soldados que iam à procura de Jesus para prendê-lo.

Havia, também, o farricoco, todo vestido e encapuzado de roxo ou de preto e tocava trombeta.


Participantes de uma procissão (Debret, c. 1830)

Ao término da procissão, a Irmandade da Misericórdia oferecia uma ceia com extensa mesa com empadas, pastéis, tortas, doces variados e vinhos.

O último ano da procissão em Salvador foi em 1872, mas ela ainda acontece em várias cidades pelo Brasil e aqui, na Bahia, o IPAC reconheceu a Procissão do Fogaréu da cidade de Serrinha como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado em 2019.

A Procissão do Enterro do Senhor ocorria na sexta-feira santa, após as 15 horas (ainda é assim). Ela era responsabilidade da Irmandade da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e também tinha um forte apelo imagético. Ao todo eram 9 andores, que retratavam todo o sofrimento de Jesus e de Maria, e saíam nesta ordem: Cristo no horto; preso na coluna (flagelado); da cana verde (açoitado); ecce homo (eis o homem, coroado de espinhos); o Senhor dos passos; o crucificado; o esquife com o corpo de Cristo; Nossa Senhora da Soledade (ao pé da cruz com o sudário nas mãos). As ordens terceiras também participavam e algumas figuras bíblicas como as três Marias (De Betânia, de Cléofas e Salomé) e a mulher da Verônica (da verdadeira face) faziam parte do cortejo.

Há alguns relatos de confusões, empurra-empurra e discussões entre os membros das irmandades (coisa feia!), mas também de abusos perpetrados por pessoas que acompanhavam a procissão.

O Sábado de Aleluia tem duas festividades: a religiosa e a profana. A religiosa ocorre dentro das igrejas com a vigília e, depois, a bênção do fogo e a procissão do Círio Pascal e a proclamação da Páscoa. Na noite do sábado, a figura central dos festejos profanos é o Judas Iscariotes, traidor de Cristo.

Não se sabe quando a Malhação ou Queima do Judas começou a ocorrer, mas foram os portugueses que a trouxeram para o Brasil. Era um momento de catarse (e ainda é para algumas pessoas), para liberar raiva e dar muitas risadas. Armava-se o palanque, tinha música, doces e refrescos e, à meia-noite, lia-se o testamento de Judas em versos jocosos.


Queima do Judas no Rio de Janeiro (Debret, 1839)

Desde o século XVI também acontece em Portugal, no Sábado de Aleluia, o Enterro do Bacalhau. Ele iniciou com uma revolta pelo fato de que, apesar da proibição do se comer carne de animais de sangue quente durante a Quaresma, os abastados tinham permissão de comê-la, caso comprassem os documentos relativos à Contrarreforma.

Assim, a maioria da população se alimentava nos 40 dias da Quaresma com o bacalhau, o peixe mais acessível. Como forma de protesto, o povo lia o testamento e fazia o enterro do pobre do bacalhau. Aí me meio aquela expressão: Para quem é, bacalhau basta! Ela vem de longes tempos e está ligada ao uso do peixe mais barato, então, servir bacalhau a alguém seria considerá-lo totalmente desclassificado. Mas, hoje não tem bacalhau barato!

Voltando ao nosso Sábado de Aleluia, bem, depois da farra da queima do Judas, que acabava mais de meia-noite, tinha gente que já se achegava às portas das igrejas para esperar a Missa do Domingo de Páscoa.

As missas aconteciam pela manhã bem cedo, então, na hora de abrir as portas das igrejas era uma confusão total, era um empurrando o outro, gente se acotovelando e correndo para pegar um assento bom. Vixe, eu vou ficando por aqui porque já contei muita história. Então, como a Páscoa é uma festa que significa renovação, desejo ardentemente que tenhamos dias melhores, com muita paz!

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Para saber mais

CAMPOS, J. da S. Procissões Tradicionais da Bahia. 2 ed. Salvador: Secretaria Estadual de Cultura, Conselho Estadual de Cultura, Coleção Memória da Bahia, N. 8, 2001.

SILVA, M. B. N. da. Bahia, a corte da América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 2010.