Chegou ao fim nesta sexta-feira (10 de dezembro), o julgamento de quatro réus acusados por 242 mortes no incêndio da Boate Kiss, que ocorreu em 27 de janeiro de 2013.
Ao todo, foram ouvidas 12 vítimas, 16 testemunhas e um informante. O júri, composto por seis homens e uma mulher, chegou a um veredito após dez dias de depoimentos.
Depois da deliberação do júri, o juiz Orlando Faccini Neto leu o veredito. "A sentença é longa, é pública, mas não vou ler inteira", disse. Ele afirmou que todos foram condenados.
As penas variaram de 18 a 22 anos de prisão e os acusados chegaram a ter a prisão decretada, o que acabou revertido por força de um habeas corpus.
Veja quem são os condenados pelo caso da Boate Kiss e quais são as penas:
-- Elissandro Callegaro Spohr (sócio-proprietário do local): condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão
-- Mauro Londero Hoffmann (sócio-proprietário do local): condenado a 19 anos e 6 meses de reclusão
-- Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira): condenado a 18 anos de reclusão
-- Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor do grupo): condenado a 18 anos de reclusão
"Foram mais de 240 mortes. E a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias, multiplica-as", disse o magistrado ao ler a sentença.
"No caso de perda de entes, como no presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado. De maneira que arriscar o esquecimento desses dramas pessoais, gerados pela prática de um crime, implicaria justamente no oposto, numa demonstração de que a ordem jurídica não compreende a vítima, o sujeito violado, seus familiares, com o devido respeito e consideração", acrescentou.
A condenação e a estipulação das penas também levou em consideração as circunstâncias em que as mortes aconteceram em meio ao incêndio na casa noturna.
"Quem num exercício altruísta por um minuto buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor, o padecimento das pessoas, que na luta pela sua sobrevivência recebiam todavia a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura: o horror, o horror", apontou o juiz do caso.
Este caso, com mais de 19 mil páginas, é considerado o maior e o mais longo da Justiça do Rio Grande do Sul. O Ministério Público pedia a condenação de todos os acusados por homicídio doloso (quando o acusado tem a intenção ou assume o risco de morte).
A sustentação foi feita pelos promotores David Medina da Silva e Lúcia Helena Callegari, e pelo assistente de acusação Pedro Barcellos, representando as vítimas. Já os advogados dos acusados pediram absolvição ou pelo menos alterar a pena de dolo para culpa.
Os quatro réus respondiam por homicídio simples, consumado 242 vezes (total de vítimas) e tentado outras 636 (número de sobreviventes).
O incêndio na Boate Kiss começou durante o show da banda Gurizada Fandangueira, quando Santos disparou um artefato pirotécnico, atingindo parte do teto do prédio, que era coberto por uma espuma e pegou fogo rapidamente.
Além do incêndio que provocou a morte de muitos jovens naquela noite, outra parte das vítimas morreu após inalar a fumaça tóxica liberada com a queima da espuma de proteção acústica no teto.
Segundo a perícia e relatos de sobreviventes, não havia ventilação adequada ou extintores de incêndio apropriados no local.
Em liberdade
O juiz Orlando Faccini Neto, responsável por presidir o júri sobre o incêndio da Boate Kiss, chegou a decretar a prisão dos quatro réus. Um habeas corpus concedido pela 1.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, porém, suspendeu a medida. Agora, o colegiado de desembargadores gaúchos deverá analisar o caso.
O habeas corpus foi dado inicialmente a Elissandro Spohr, o Kiko, que era sócio da boate que pegou fogo em janeiro de 2013. Depois, ele foi concedido aos demais réus do julgamento – Mauro Londero Hoffmann, outro sócio do estabelecimento e único que não estava no local na noite do incêndio, Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, e Luciano Bonilha Leão, roadie do grupo musical.
Cabe recurso a instâncias superiores. A pena pode vir a ser anulada, de acordo com a previsão legal, se os magistrados entenderem que a posição dos jurados foi de encontro a provas do processo. Há ainda discussão em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o cumprimento imediato de condenações definidas pelo Tribunal do Júri.
“A condenação por dolo eventual é inédita no Brasil para esse tipo de crime e, a partir de agora, temos um marco para que todos saibam que as boates para nossos jovens e os lugares para reunião de público têm de ser seguros para que as pessoas se divirtam e voltem para suas casas com vida”, destacou o promotor David Medina da Silva, um dos que atuaram no júri.
O homicídio culposo é aquele praticado sem intenção. Já o doloso, diz o Código Penal, é aquele em que se reconhece que o autor quis ou assumiu o risco de causar a morte.
Para o professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Fabiano Clementel, “isso traz uma nova jurisprudência a respeito de situações semelhantes como esta, em que um sócio de uma boate, por exemplo, acaba sendo imputado pela prática de homicídio por dolo eventual”.
Ainda segundo o criminalista, a falta de responsabilização do poder público – como as autoridades responsáveis pelas fiscalizações da casa noturna – também é uma marca desse julgamento. Segundo ele, “a mensagem que se pode passar para a sociedade, e isso a defesa tentou fazer, é que o poder público acaba se empoderando sobre a iniciativa privada e se imiscuindo de suas responsabilidades”.