Salvador representada pelo pintor inglês Augustus Earle (1793-1838), vendo-se o Theatro São João
São Salvador da Bahia de Todos os Santos, fundada em 29 de março de 1549 por Thomé de Sousa, primeiro Governador-Geral do Brasil, para ser a primeira capital da grande colônia portuguesa na América, nasceu cidade.
Não foi uma vila nem um povoado. Antes disso, havia, sim, uma pequena vila para as bandas do que hoje chamamos de Graça, em que conviviam portugueses, que aqui aportaram com Diogo Álvares Correia, o náufrago mais conhecido como Caramuru, e indígenas da tribo dos Tupinambás.
Havia, também, outra pequena povoação, mais para o litoral da Barra, ocupada pelos remanescentes do grupo que veio com Francisco Pereira Coutinho, único donatário que a Capitania da Bahia teve, e por indígenas, afinal eles estavam espalhados em aldeias por todo o território.
A Capitania da Bahia passou a ser a primeira Capitania Real e a sede do Governo Geral, deveria ser em uma cidade. Salvador nasceu grandiosa como a tarefa do Governo Geral de não permitir exageros e desmandos dos donatários das capitanias hereditárias, bem como de promover e gerenciar a ocupação e o povoamento do Brasil.
Não podemos esquecer que a Coroa Portuguesa tinha inimigos que buscavam ocupar a colônia americana, entre eles, os espanhóis, os franceses e os holandeses. Então, a escolha do sítio para erguer a cidade precisava ser bem pensada, o local deveria ter a possibilidade de defesa e proteção, além de ser elevado, para que se pudesse visualizar à distância uma ameaça. Imaginemos a nossa mata fechada, a presença de aldeias indígenas em um território desconhecido, animais silvestres, tudo poderia representar perigo.
Aqui, eu vou fazer uma observação sobre o que se diz que os homens que construíram Salvador eram degredados, bandidos, marginais. Pensem comigo, atravessar o Oceano Atlântico, com uma missão de implantar um sistema político-administrativo, com bandidos seria uma missão suicida. Acredito que boa parte desses degredados devia impostos e foi obrigada a pagá-los prestando serviços no Brasil.
Miguel de Arruda, Mestre das Obras Régias, foi o autor da traça de Salvador, e incumbiu o mestre de obras Luís Dias de implantá-la, conforme as instruções constantes na Carta Régia assinada por D. João III.
No Regimento de Thomé de Sousa, além da determinação da criação de uma cidade-fortaleza, mencionam-se as traças (desenhos em planta baixa) e amostras (desenhos em elevação) concebidas por Miguel de Arruda e entregues a Luís Dias, para servir de base à execução da tarefa.
Salvador foi, então, construída conforme um plano predefinido, que permitia a adequação às particularidades do sítio escolhido a consolidação do modelo de cidade em dois níveis, pois, essa tradição de construção de cidades em sítios elevados veio com os portugueses e acabou adaptando-se e multiplicando fundações no ambiente americano.
Assim, escolheu-se erguer a cidade onde houvesse um porto seguro para as embarcações, o que caracterizaria a cidade baixa, e uma fortaleza, onde se fixariam os colonos, o governo e os religiosos, que seria a cidade alta.
A nossa mancha matriz, o marco inicial, então, corresponde ao trecho entre a Praça Municipal e a Praça Castro Alves. Esse trecho ficava entre as portas da cidade, e tinha como defesa a encosta íngreme e de mata fechada e o rio das Tripas (hoje canalizado por baixo da Avenida J. J. Seabra) com uma área pantanosa. Se havia portas, então, havia muralhas, inicialmente feitas de madeira, depois de adobe ou de pedra.
Salvador, século XVI - Fonte: adaptado do CEAB/UFBA (1998)
Rapidamente foram erguidos os edifícios importantes: a Casa de Câmara e Cadeia, onde os vereadores se reuniam, e se mantinha os prisioneiros; o Palácio do Governo Geral. Esses edifícios marcavam a praça do poder, por isso chamada de municipal, o lugar em que eram lidas as notícias reais, as ordens do governador e da Câmara e que abrigou, por um tempo, o pelouro para açoite dos que eram condenados.
Foram erguidas também as residências dos colonos, primeiramente, pequenas construções que seriam ampliadas para sobrados de vários pavimentos.
Além deles, os religiosos da Companhia de Jesus, comandados pelo padre Manoel da Nóbrega, ergueram a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, uma pequena construção de taipa e coberta de palha (no mesmo lugar onde hoje se encontra a de mesmo nome).
Fora dos muros, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia se instalou e construiu seu hospital, inserido no plano inicial e próximo à praça municipal.
Se acessarmos o mapa de Salvador veremos que o traçado dessa parte da cidade não sofreu muitas alterações e dá para a imaginarmos com portas e muralhas.
Na cidade baixa, uma pequena faixa de terra abaixo da encosta coberta por densa mata, uma pequena estrutura portuária, baterias com canhões para defesa da ribeira, alojamentos dos soldados (barracões ou tendas), alojamentos para os escravos (quarentena), armazéns, e a Ermida de Nossa Senhora da Conceição da Praia, pequenina construção de taipa.
Com toda certeza, a cidade e suas construções não foram erguidas apenas com o trabalho dos colonos. A presença dos indígenas sempre foi marcante desde o início da cidade. E eles eram responsáveis, também, por trazer gêneros alimentícios como, frutas, a mandioca e seus derivados, e os provenientes da caça e da pesca.
A troca de experiências fez o colono transmitir os ofícios para os indígenas e, logo depois, para os africanos. Os primeiros escravos africanos chegariam em 1550, destinados à lavoura da cana-de-açúcar nos engenhos do Recôncavo, e para as capitanias de Sergipe e de Pernambuco.
Sabemos que rapidamente os portugueses se misturavam, pois, a miscigenação era uma forma de dominação também, portanto, desde o começo da nossa cidade encontramos a contribuição desses povos, eles estão presentes em cada pedra que pavimenta as ruas do Centro Histórico, em cada parede erguida nos sobrados coloniais, na arte dos altares, retábulos e forros das nossas igrejas. Eles são a nossa história, nossa cultura e nosso modo de ser.
Muitos soteropolitanos nunca visitaram o Centro Histórico, mas, mesmo para os amantes da nossa história, eu faço um pedido: visitem a Praça Municipal, pela manhã, quando o sol está mais ameno, encostem na balaustrada e observem, apenas observem.
Apurem o olhar e vejam como foi fantástica a escolha que os portugueses fizeram, como divisamos o movimento da Baía de Todos os Santos, naveguem pela imaginação e sintam o cheiro da mata, o som das águas que desciam pela encosta, o canto dos pássaros, o colorido dos cocares dos índios.
No dia 29 de março festejamos o aniversário da nossa casa, que começou pequenina, quase nada, e se tornou a menina dos olhos de escritores, poetas e cancioneiros. Salve, Salvador!
Pois bem, esse texto inaugura a coluna "Cartas de Salvador", sobre a história urbana de Salvador, nosso patrimônio. E vai trazer temas sobre o patrimônio material e imaterial soteropolitano. Por isso, não podemos parar por aqui, vamos adiante, garanto que iremos entender, com a história de Salvador, os porquês de muitos dos nossos problemas atuais, e que eles não são tão atuais! Entenderemos, também, a riqueza da nossa diversidade cultural que nos faz ímpar.
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Para saber mais
CARVALHO, M. do R.; CARVALHO, A. M. (Org.). Índios e caboclos: a história contada. Salvador: EDUFBA, 2012.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Fundação Gregório de Mattos. Evolução física de Salvador. Edição especial. Salvador: Pallotti, 1998.