Suzana Varjão

Pela janela (contemplando banalidades, porque hoje é domingo...)


Foto: Suzana Varjão

Longe, um latido. Não parece de solidão, sofrimento ou zanga. É um latido-riso, de cão pequeno, em momento de recreação. Buscando o dono da voz, os olhos percorrem as ruas limpas e os gramados bem aparados e pontilhados por plantas tropicais que circundam os prédios do bairro.

Em um dos playgrounds, um garotinho — cabelos em cachos, pernas em arco — persegue uma bola, seguido de perto por uma jovem negra, lenço na cabeça, vestido e sapatos brancos. No parque infantil da quadra, uma menina de sardas emite gritinhos sempre que o balanço alcança o ponto mais alto do movimento pendular, controlado, repetitivo.

Tarde fresca e luminosa na zona residencial de trânsito moderado de veículos, pessoas, emoções. Diferente daqueles dias pardacentos e quentes, feitos de folhas inertes nas árvores e céu coberto por nuvens, das quais escapa uma luz desbotada e difusa, que ativa os tons cinzas da mente e do coração.

Diferente também do vaivém empoeirado tatuado na memória: a arrelia da molecada contra o bêbado sujo e obsceno — os vira-latas perebentos atrás, numa zoadeira infernal; o corre-corre em busca da pipa libertada pelas  linhas temperadas com cola e vidro na disputa pela supremacia dos céus; os ruídos de tiro cerrando janelas e calando vassouras, martelos, berros.

Então, por que aquela sensação de ressaca, aquele aperto no peito, vontade de chorar sem razão?

Por detrás de pequenas lixeiras coloridas, fincadas no chão, divisa um  shih tzu marrom e branco, arrastando uma jovem de shorts curtos e rabo-de-cavalo comprido que tagarela ao celular, sob o olhar de cobiça de um rapaz que disputa o asfalto com um Toyota preto, empurrando um carrinho de supermercado cheio de latas amassadas.

O Toyota vence o zigue-zague, seguido por um sabe-se-lá-que-marca-de-carro vermelho e um Civic branco, que estanca na faixa de pedestres para permitir a travessia de uma mulher de meia idade, empurrando um carrinho de bebê com uma mão e puxando a guia de um filhote de boxer com a outra, enquanto...

***

O baque interrompe a contemplação de banalidades, deslocando-a uma vez mais da ambiência física, estável e previsível da "bolha" residencial para o território obscuro e instável do sobressalto e do medo, potencializado pelo ganido longo e agudo — parecendo mais choro que latido — que irrompe no ar.

Quando os ruídos pausam,  os olhos aflitos avistam um yorkshire minúsculo, olhos de gude, pelo cinza-prata e amarelo-dourado, usando uma coleira azul, de onde pende um ossinho de metal com uma inscrição — por certo, a gravação do nome do dono, impossível de ler, dada a distância.

O pesado caminhão de mudanças segue o curso, após a passagem pouco habilidosa por um dos vários quebra-molas colocados na área para prevenir acidentes, enquanto o yorkshire emite outro latido-lamento, dirigido a uma cadelinha da mesma raça, possivelmente no cio, que observa da janela espelhada de um primeiro andar...

 (porque hoje é domingo...)