Alberto Oliveira

Como dar um tiro no pé e irritar clientes

A Havaianas resolveu meter o pé direito (e o esquerdo também) em um atoleiro

Em um país politicamente polarizado, decisões de comunicação deixam de ser neutras, mesmo quando não há conteúdo político explícito. É nesse ambiente que a mais recente peça publicitária da Havaianas, protagonizada pela atriz Fernanda Torres, passa a operar sob um regime de leitura ampliada, no qual símbolos, rostos e estilos são imediatamente filtrados por percepções ideológicas.

"Desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito", diz a atriz no início da peça publicitária, tendo como pano de fundo, logo atrás de sua cabeça, filas de sandálias na cor vermelha, associada no Brasil à esquerda.

O resultado deveria ser previsível, para os responsáveis pelo posicionamento de uma marca tão poderosa, em um país dividido politicamente, em que virtualmente metade dos eleitores tem exatamente o pé direito cravado em um dos lados do espectro político.

Fernanda Torres é vista por parcelas relevantes da sociedade como associada a um campo cultural e político específico, ligado à elite intelectual urbana e a valores progressistas. Ao escalar uma porta-voz com esse perfil, a Havaianas desloca automaticamente o eixo da comunicação do produto para a identidade simbólica da mensageira. O resultado é a ativação de rejeições prévias que não se originam na peça publicitária, mas no contexto social que a cerca.

Não importa o que o texto do anúncio tenha proposto, porque muitos consumidores captam primeiro quem está falando, e só depois o que está sendo dito. Neste tipo de ambiente, a avaliação que o público faz sobre quem está na tela pode antepor-se à mensagem sobre o produto, deslocando o foco da comunicação para suposições sobre valores e posicionamentos de quem aparece nela.

O slogan da marca -- "todo mundo usa, todo mundo ama" -- parece agora no mínimo inadequado, aos olhos de parte considerável da população. Nem todos usarão a partir de agora, muitos deixarão de amá-la.

Historicamente, a força da Havaianas sempre esteve na neutralidade aspiracional. A marca construiu valor ao representar um Brasil cotidiano, informal e agregador, capaz de atravessar classes sociais, regiões e visões de mundo sem exigir alinhamento ideológico ("todo mundo usa").

Em um cenário de polarização, essa neutralidade não é apenas uma virtude criativa, mas um ativo econômico. Ao romper com esse princípio, mesmo que de forma involuntária, a campanha expõe a marca a leituras políticas que fragmentam sua base de consumidores.

Esse tipo de colisão simbólica pode produzir boicotes clássicos, organizados e declarados, como o que se abateu sobre a Havaianas; o efeito mais comum, no entanto, é o boicote difuso e silencioso. Parte do público, ao se sentir simbolicamente excluída ou provocada, não reage com protestos públicos, mas com escolhas de consumo alternativas. Reduz-se a preferência espontânea, cai a lembrança positiva e abre-se espaço para concorrentes percebidos como mais neutros (como fica o "todo mundo ama"?). Para uma marca de consumo de massa, esse afastamento gradual pode ser mais danoso do que uma crise pontual.

As perdas potenciais de valor de marca, nesse contexto, manifestam-se em diferentes camadas. Há, primeiro, a erosão desse valor, que é intangível e vai além das características físicas do produto. Quando a marca deixa de ser percebida como um território comum e passa a ser associada a um segmento específico, perde-se amplitude simbólica, um dos pilares que sustentam o valor intangível.

Em termos financeiros, boicotes em larga escala, ainda que silenciosos, tendem a pressionar vendas no médio prazo, elevar custos de comunicação para recompor imagem e reduzir a eficiência de campanhas futuras, já que mensagens passam a enfrentar resistência prévia.

Há também impacto sobre a precificação e o poder de negociação. Marcas fortes sustentam margens porque são desejadas por muitos e rejeitadas por poucos. Quando a rejeição cresce, mesmo sem barulho, o poder de cobrar mais enfraquece. 

Além disso, quando um produto de consumo de massa é percebido como mais adequado a grupos específicos, varejistas e canais de distribuição podem se tornar mais reticentes em destacá-lo, por medo de repercussões em suas próprias clientelas. Esse efeito de contágio reputacional tende a aparecer principalmente em redes sociais com perfis conservadores ou em segmentos demográficos nos quais o público já demonstra forte sensibilidade a leituras simbólicas de alinhamento cultural ou ideológico.

Outro ponto crítico é o custo de oportunidade. Ao investir em uma comunicação que gera ruído político, a Havaianas desperdiça capital criativo e financeiro que poderia estar reforçando atributos consensuais do produto, como conforto, design, brasilidade e informalidade. Em um mercado competitivo, cada campanha que não consolida esses atributos representa espaço aberto para concorrentes avançarem.

Por fim, há o risco reputacional de longo prazo. Marcas populares dependem de repetição de códigos e coerência histórica. Quando uma campanha rompe esses códigos sem uma estratégia clara de reposicionamento, cria-se instabilidade identitária, reduzindo a confiança do consumidor na previsibilidade da marca, um fator-chave para escolhas de compra recorrentes.

Em síntese, a peça publicitária colide com a polarização brasileira não pelo que diz, mas pelo que simboliza. Ao ignorar o contexto político como variável estratégica, a Havaianas expõe um ativo construído ao longo de décadas a riscos desnecessários. Em ambientes polarizados, marcas de massa precisam decidir: ou atuam como espaço de encontro, ou se tornam um marcador de pertencimento.

A Havaianas encontra-se com os dois pés enfiados em um atoleiro. Pode-se imaginar um custo alto para retirá-los de lá.