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Os casos de pensão são infindáveis. Numa pensão dos Barris morei com mais dois no quarto. Dona de pensão é assim: enquanto der mais uma cama é porque cabe mais um hóspede, e a mesinha de estudo tinha que ficar no meio do quarto.
Um dos meus colegas de quarto era “Castro Alves”, cujos cabelos lembravam o grande poeta baiano, e que passava a noite a cometer poemas. O pior é que ele acordava a gente à meia-noite, uma hora da manhã: “Rapaz, veja esse agora, não tá bonito?” Declamava em voz alta, a gente dizia “tá lindo” e voltava a dormir. Dia seguinte, 6 horas da manhã, arrumando pra ir pro colégio, era abordado por “Castro Alves”: “Depois daquele, ainda escrevi mais três. Quer ouvir?”
Ainda nos Barris, estudando, por volta de meia-noite ouço batidas seguidas na porta da pensão: “Correioô, Correioô”. Pensei logo: carteiro a essa hora deve ser alguma coisa urgente, alguma morte. Desci a chata escadaria de madeira em caracol, perto de desabar, e fui abrir a porta: “Porra, é você, Jaldo?” “É, sim, é que esqueci a chave e se eu dissesse que era eu ninguém vinha abrir”.
Na pensão da Rua Gabriel Soares, 33, em Salvador, administrada por minha mãe, Dona Cleonice, um hóspede que se mudou deixou lá no quintal uma maromba de ferro, com que se exercitava. Com o tempo, restou apenas uma das bolas de ferro, que o pessoal logo aproveitou para dar trote nos calouros. A bola era coberta por um chapéu de palha e se dizia ao hóspede recém-chegado: “Todo novato aqui na pensão tem que passar por esse batismo: você vai chutar esse chapéu de palha com toda força, pode ser uma bicuda mesmo, mas tem que ser descalço”. E o coitado do novato ia lá e enchia o pé no “chapéu”.
Tive um colega que enchia as portas do guarda-roupa com fórmulas de química, “pra ver toda hora”. Outro acordava às 6 da manhã e, ainda sentado na cama, passava uns cinco minutos repetindo as fórmulas estudadas na noite anterior.
O barulho do carro DKW-Vemag subindo a Ladeira dos Aflitos era tanto que chegava a cortar a conversa da turma na esquina. As portas do DKW abriam ao contrário, da frente para trás, ganhando o apelido de “DêChaVê”, referindo-se ao uso dessas portas por mulheres vestindo saias. Um amigo me conta que tinha uma mulher boa na Barra que voltava do trabalho às 17 horas num DKW-Vemag ou Vemaguete. A galera já ia antes para a porta do prédio só para ver ela saltar e pegar o lance.
Estava chegando o mês de junho e com ele chegavam de férias as professoras do interior, umas primas de minha mãe que traziam algumas amigas. Aqueles dias eram de festa no 33. Praia do Porto da Barra todo dia e de tarde passear na Avenida Sete de Setembro e Rua Chile, fazer compras nas lojas Mesbla, Sloper ou Duas Américas. Nos fins de semana eram os bailes do Clube Comercial, na Avenida Sete de Setembro, no Fantoches da Euterpe, na Rua Democratas, ou no Clube Sergipano, na Boca do Rio.
No velho casarão as professoras ocupavam uns dois ou três quartos no térreo, onde ficava também nossa família, e no primeiro andar ficavam os estudantes. “Chiquinho, você já sabe beijar?” Com uns 11 ou 12 anos, garanti que sabia e uma das professoras, sentada na cama, me ofereceu a boca por alguns segundos. Foi muita emoção e ela me tirou logo do quarto quando olhou pra meu short de pano.
Um dia, umas cinco professoras pegaram o ônibus para o Porto da Barra e já no Corredor da Vitória uma comentou baixinho com a outra: “Tô com o xibiu pegando fogo, não sei o que é”. E a outra: “Eu também, o pior é que não posso nem coçar”. Quando olharam pra trás, tinha outra amiga sentada e remexendo as pernas, a cara aflita. Decidiram saltar do ônibus e pegar outro de volta à pensão, todas com o xibiu em chamas. Ao tirarem a roupa, a terrível descoberta: em cada maiô tinha uma folha de urtiga bem no forro, estrategicamente colocada por meu irmão Cleomar quando viu os maiôs secando no quintal.