Comportamento

Estudo: religiosidade sem fanatismo reduz violência

Relação é constatada principalmente na violência doméstica

Foto: Pixabay/Creative Commons
A religiosidade reduz o consumo e a dependência do álcool

De maneira geral, pessoas religiosas têm menos chance de perpetuar a violência. Essa é uma das conclusões da tese de doutorado Relação entre espiritualidade/religiosidade e violência: investigação em uma amostra populacional brasileira, defendida em março de 2020 por Juliane Piasseschi de Bernardin Gonçalves no Instituto de Psiquiatria (IPq) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). O trabalho também apontou, por outro lado, que indivíduos muito fervorosos tendem a praticar e sofrer mais agressões.

Os resultados encontrados pela pesquisadora também apontam que o consumo de bebidas alcoólicas atua como um mediador dessa relação. A partir do momento em que a religiosidade reduz o consumo e a dependência do álcool, ela também diminui os índices de violência, principalmente a doméstica.

“Foi o primeiro trabalho em que avaliamos o padrão de violência e religiosidade de forma mais abrangente”, relata Juliane. “Depois, trabalhamos para compreender como ela se dá em adultos, principalmente nas faixas etárias mais altas, acima dos 24 anos. Esses dados são inéditos no Brasil.”

Juliane desenhou o seu estudo com o objetivo de investigar se a religiosidade/espiritualidade estaria associada à diminuição da violência e se ela seria um fator importante (que os pesquisadores atribuíram como uma espécie de mediador) entre vítimas de abuso infantil e violência na vida adulta.

Embora haja uma ampla gama de evidências mostrando o efeito benéfico da religiosidade sobre a violência em adolescentes, estudos nacionais com a população em geral são escassos. Homero Vallada, psiquiatra e professor do Departamento de Psiquiatria (IPq) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, diz que dados desta relação geralmente são encontrados na literatura internacional.

“Podemos imaginar uma curva em “U”, ou seja, quando as pessoas não têm nenhuma religiosidade ou espiritualidade, elas sofrem ou praticam mais violência. A partir do momento que elas começam a ter um contato maior com o sagrado, essa taxa diminui”, explica. Mas o que mais chamou a atenção no trabalho, na avaliação dele, foi que os indivíduos muito fervorosos tendem a sofrer ou a praticar mais agressões. “Quando o processo vira fanatismo, você vira um tipo de padrão ouro. Tudo o que distancia de você é heresia.”

Segundo a Organização Mundial da Saúde, estima-se que mais de 1,3 milhão de pessoas morram a cada ano em decorrência da violência, considerada a quarta causa de morte entre pessoas de 15 a 44 anos.

Para realizar a tese de doutorado, Juliane utilizou o banco de dados construído a partir da Segunda Pesquisa Nacional Brasileira de Álcool e Drogas, realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad/Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Trata-se de um levantamento domiciliar, de representatividade nacional, sobre os padrões de consumo de álcool, tabaco e drogas ilícitas na população brasileira.

Feito entre novembro de 2011 e março de 2012 com 4.607 brasileiros com 14 anos ou mais, existiam, no questionário entregue aos voluntários, perguntas sobre religiosidade (filiação religiosa e importância da religião), violência (envolvimento em brigas, violência doméstica e detenção policial), depressão, apoio social e dependência de álcool.

A primeira hipótese levantada pela pesquisadora – e que já havia sido identificada em publicações internacionais – era a de que religiosidade teria um papel protetor (direto e indireto) para a violência por meio do álcool. O papel direto também é conhecido como “teoria do controle social”. De forma geral, esse é um conceito empregado para designar os mecanismos que estabelecem a ordem social, disciplinando a sociedade e submetendo os indivíduos a determinados padrões sociais e princípios morais.

“A partir do momento que você está envolvido em um grupo religioso com hábitos saudáveis, você internaliza essa prática”, explica Juliane. “A religiosidade funcionaria como uma sanção natural: se você fizer o mal, será punido”, sugere.

Já o papel indireto foi colocado como hipótese pela pesquisadora porque, em algumas publicações, foi relatado que o álcool é um fator determinante. Por isso, Juliane fez a seguinte pergunta: “Já que a religiosidade reduz o consumo de álcool, ela poderia também reduzir a violência?”.

Religiosidade é aqui entendida como um sistema de práticas de crenças e rituais que o ser humano se utiliza para alcançar o seu sagrado. Já a espiritualidade é vista como uma forma mais pessoal de alcançar esse sagrado, ou seja, sem a necessidade de pertencer ou seguir uma doutrina específica.

Resultados

No banco de dados, as proporções de homens e mulheres distribuíram-se de forma semelhante. A idade média da amostra total foi de 35,8 anos e o tempo médio de educação formal foi de 8,8 anos. A maioria das pessoas (57%) vivia com companheiro e a amostra era formada por pretos, pardos (44%) e brancos (40%).

A violência doméstica foi a categoria de comportamento agressivo mais prevalente (8%), seguido por envolvimento em brigas (3%) e prisões policiais (1%).

A população total da amostra apresentou elevados níveis de apoio social (71%). Em relação à saúde mental, depressão foi a condição mais prevalente (25%) e dependência de álcool foi diagnosticada em menos de 10% dos entrevistados.

Mais de 90% dos participantes tinham afiliação religiosa e 80,9% a consideraram “muito importante para suas vidas”. Ter afiliação religiosa associou-se significativamente a desfechos menos violentos, enquanto a importância atribuída à religião esteve associada apenas a menos brigas.

A afiliação religiosa também apresentou associação com menos brigas e detenção policial, mas não com menos violência doméstica. Por outro lado, a importância da religião também foi significativamente associada a menos envolvimento em brigas.

A afiliação religiosa entre adolescentes foi inversamente associada a comportamentos violentos em todas as análises realizadas, perdendo significância quando dependência de álcool foi adicionada. Na faixa etária de 19 a 30 anos, pertencer a um grupo foi inversamente associado à detenção policial. Na faixa etária entre 31 a 59 anos, apenas a importância da religião foi associada a menor envolvimento em brigas.

A afiliação religiosa foi totalmente mediada por dependência do álcool em relação ao seu efeito na violência doméstica. No entanto, afiliação religiosa foi parcialmente mediado pela dependência de álcool no envolvimento em brigas e detenção policial e a importância da religião foi parcialmente mediada pela dependência de álcool no envolvimento em lutas.

Essa primeira parte do estudo deu origem ao artigo “The effect of religiosity on violence: results from a brazilian population-based representative survey of 4.607 individuals”, publicado em agosto de 2020 na revista científica Plos One.

Jovens e violência 

O segundo bloco de análise foi realizado para tentar compreender se a religiosidade na vida adulta e violência na infância estão, de alguma forma, vinculadas. As medidas foram violência psicológica (humilhação, xingamentos etc.) e física (bater, machucar).

Parte dos participantes (22%) sofreu alguma agressão dos pais, 19% assistiram seus pais se ameaçarem, 12% presenciaram alguma agressão entre eles e 13% vivenciaram algum tipo de bullying na escola. Quanto a sofrer violência e ser vítima dela na vida adulta, percebe-se que qualquer evento adverso na infância teve associação significativa com sofrer agressão física posteriormente.

Os resultados mostraram o que o senso comum já apontava.  Geralmente, os pais que têm religião e que dão importância a isso tendem a não agredir os filhos. Os eventos adversos na infância relacionaram-se diretamente com perpetuação de violência e vitimização de violência na vida adulta.

A religiosidade, por sua vez, associou-se inversamente com os eventos adversos na infância, indicando que os indivíduos mais religiosos sofreram menos violência na infância. Porém, a religiosidade não apresentou evidências de mediação entre violência sofrida na infância e violência perpetuada ou sofrida na vida adulta.

Rotina clínica

Juliane é formada em Fisioterapia e, durante os atendimentos, percebeu que muitos pacientes traziam assuntos relativos à espiritualidade e religiosidade para as sessões. “Quando estamos passando por um problema de saúde – ou quando uma pessoa próxima está doente -, é normal nos aproximarmos ainda mais dessa dimensão.

Essa percepção motivou a cientista a entender, do ponto de vista científico, qual é o papel do terapeuta nesses casos. “O objetivo maior foi ajudar esse paciente a usar a religiosidade da melhor forma possível. As publicações mostram que, quando um médico ouve o paciente, o tratamento flui melhor.”

A associação entre religiosidade e espiritualidade é uma das linhas de pesquisa de Vallada. “A psiquiatria negligenciou por muito tempo essa associação. Somente há 20 anos começaram a aparecer estudos sobre o tema”, conta.

Para os próximos estudos, Juliane indica a realização de estudos longitudinais, aqueles que seguem a mesma pessoa por um determinado período de tempo. “Será possível analisar o comportamento dessa dimensão religiosa e quais as relações com os desfechos de violência, de álcool e drogas, enfim, com os desfechos naturais na vida do ser humano.”