Opinião

Quando a política racial vira ornamento

É hora de reposicionar a luta

Foto: Ilustração SeaArt IA
Rever estratégias não significa recuar; significa avançar

No Brasil, na Bahia e em especial em Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano, assistimos a um paradoxo que tem se tornado regra no Brasil: secretarias, conferências, marcos legais e discursos de igualdade racial convivem com decisões políticas que caminham no sentido oposto. Quando a maior rede municipal de ensino do país adota a Bíblia como material didático ignorando a laicidade, a pluralidade religiosa e a própria história afro-baiana evidencia-se que a política racial brasileira se tornou, na prática, um ornamento institucional: visível, fotogênico, mas incapaz de impedir retrocessos.

Não se trata de um problema isolado. O país mantém estruturas oficialmente dedicadas ao combate ao racismo, mas que funcionam como jarros na mesa de gestores: podem ser exibidas ou retiradas a qualquer momento, conforme a conveniência política. Em Salvador, isso se materializa em pastas esvaziadas, incapazes de influenciar a formulação educacional; em Brasília, repete-se quando, mesmo após declarações de compromisso com a diversidade, e após uma chacina em massa no Rio de Janeiro que chocou o país  e mundo pelo nível de letalidade, o governo federal volta a nomear um homem branco para o STF. Não se trata de atacar indivíduos trata-se de reconhecer que o modelo institucional que criamos para a igualdade racial está exaurido.

O velho modelo não conversa com a nova realidade

Durante anos, nossas ferramentas de luta foram essenciais: marchas, conferências, cotas, fóruns, conselhos. Elas abriram caminhos para milhões de pessoas negras, ampliaram o acesso à educação e tensionaram a narrativa da “democracia racial”.

Mas o racismo, como sempre, se atualizou. E nós continuamos operando com instrumentos pensados para outro tempo.

Hoje, a desigualdade racial está profundamente articulada a novas formas de exclusão: a economia de aplicativos, a informalidade como regra, a violência policial de alta letalidade, a desinformação digital e a intolerância religiosa que avança velozmente. Como mostram pesquisas recentes, mais de 80% das pessoas negras declaram já ter sofrido discriminação e a maioria relata múltiplos motivos de exclusão combinados. Ainda assim, nossas políticas públicas seguem incapazes de alterar a base da pirâmide social ou a composição real dos espaços de poder.

O mundo endurece; a África avança

A África deixou de ser referência simbólica e passou a ser novamente nossa grande produtora de modelo.

No cenário internacional, governos têm restringido debates raciais, cortado verbas e alimentado discursos anti-diversidade. Contudo, o continente africano aponta outra direção: movimentos, intelectuais e centros de pesquisa vêm produzindo epistemologias próprias de justiça racial, ética de dados, políticas de reparação e aprofundamento democrático. A África deixou de ser referência simbólica e passou a ser novamente nossa grande produtora de modelo.

O contraste com o Brasil é revelador. Aqui, ainda tratamos a pauta racial como setor isolado, e não como eixo estruturante de Estado, economia e democracia.

É hora de reposicionar a luta

Há quem veja essas críticas como desrespeito à trajetória das gerações que abriram caminho. Não é. A luta negra nos trouxe até aqui, mas não pode nos manter presos ao mesmo repertório.

Rever estratégias não significa recuar; significa avançar.

Precisamos:

-- De orçamento obrigatório e robusto para políticas raciais, não de ações decorativas

-- De conselhos paritários com poder vinculante, e não meramente consultivo

-- De políticas que enfrentem o racismo digital, o desemprego qualificado e a precarização econômica que afeta majoritariamente pessoas negras

-- De reparação econômica concreta, e não apenas simbólica

-- Do movimento negro como protagonista institucional, e não como figurante

Salvador como metáfora do Brasil

No Brasil, a luta racial segue sendo invisibilizada, frequentemente tratada como exagero ou fragilidade identitária.

A situação da capital baiana é sintomática: numa cidade afrodescendente, a pauta afro é tratada como perfumaria, enquanto decisões que ferem a pluralidade religiosa e a igualdade avançam com naturalidade. Não por falta de órgãos, mas por falta de poder. E poder não se materializa com slogans, mas com orçamento, autoridade e capacidade de veto.

No Brasil, a luta racial segue sendo invisibilizada, frequentemente tratada como exagero ou fragilidade identitária. Mas nada disso apaga o fato central: o racismo não retrocedeu mudou de forma. Se não mudarmos também nossas ferramentas, continuaremos celebrando estruturas que não transformam vidas.

Não é pessimismo. É urgência.

E urgência, na luta negra, sempre foi sinônimo de esperança. Esperança radical de que podemos, sim, disputar o país real e não apenas o país simbólico.

__________

Luciane Reis é mestra em desenvolvimento e gestão pela Faculdade de Administração da UFBA. Especialista em políticas públicas raciais, justiça econômica racial - Ceo do Instituto Mercafro