Com o voto da ministra Cármen Lúcia, Jair Bolsonaro foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelos atentados cometidos contra o estado democrático de direito no País. Antes mesmo do último votante, Cristiano Zanin, a maioria necessária à responsabilização foi formada, restando agora o cumprimento das severas penas imputadas ao ex-presidente da República (27 anos e três meses de prisão) e aos sete outros réus sentenciados (ver quadro no final do texto).
Diferentemente do quarto dia de julgamento, foi uma sessão plena de coerência, consistência, leveza e desconstruções, a partir mesmo do simbolismo emanado do voto decisivo de Cármen Lúcia – uma mulher, que Bolsonaro considera pertencente ao gênero “fraco”. Num 11 de setembro emblemático, além de condená-lo, derrubou, em conjunto com Zanin, todos os argumentos da defesa, encampados anteriormente pelo porta-voz dos réus, Luiz Fux.
Brasil que dói. Numa fala de abertura esteticamente bela e carregada de significado, a ministra produziu um libelo em favor da democracia. Ponderando a dificuldade de todo processo penal, sob o ponto de vista humano, arguiu a complexidade e ineditismo da ação em curso, “porque o que nela pulsa é o Brasil que me dói. É um encontro do Brasil com seu passado, presente e futuro", numa alusão a atos de rupturas, “que impedem a maturação democrática desse País”.
Citando trecho do livro “História de um crime”, do escritor francês Victor Hugo, Cármen Lúcia traçou um paralelo revelador entre um episódio relacionado ao golpe de estado perpetrado por Napoleão III e um vinculado ao ora tentado no Brasil. Em síntese, um emissário entrega a seu interlocutor uma minuta de golpe, ponderando tratar-se de “golpe para o bem”, ao que o interlocutor retruca: “O mal feito para o bem continua sendo mal”.
Desmontagem. Firmada a posição, a ministra passou à desmontagem dos argumentos da defesa, iniciando pelas preliminares que sustentariam o pedido de anulação do processo, feito por Fux. Rejeitando a alegação de cerceamento de defesa, garantiu que todos os advogados tiveram acesso às provas, informando que o relator chegara a apresentar tabela, orientando o disposto no conteúdo – no que foi seguida por Cristiano Zanin.
O ministro assinalou que o fato de o material ser amplo não configura cerceamento de defesa, reiterando a organização dos documentos e acrescentando que foram enviados em tempo hábil, por link. E se valeu da experiência como advogado para desmistificar a dificuldade alegada, de examinar as provas: “Eu me lembro de ter trabalhado com arquivos de 100 terabytes, sem disponibilização de link, dentro de sala cofre da Polícia Federal”.
Competência. Sobre o julgamento em si, Cármen Lúcia foi enfática ao lembrar que os envolvidos na trama golpista não poderiam questionar os limites legais para os crimes contra o estado democrático de direito, uma vez que quatro dos oito réus da ação penal em curso haviam assinado a lei que embasa a denúncia (Jair Bolsonaro, Anderson Torres, Braga Netto e Augusto Heleno).
A competência da primeira turma do STF para julgar os conspiradores foi também enfatizada por Cristiano Zanin, lembrando que já havia sido assentida em quase mil e quinhentas ações na corte – 140 das quais transitadas em julgado. Já na análise do mérito, o ministro fez um cotejamento preciso entre tipos penais, premissas teóricas e provas sobre os atos preparatórios e executórios do plano golpista – o que expôs as incoerências da defesa pretensamente “científica” de Fux.
Metáfora. Ainda em relação ao mérito, é importante destacar o entendimento de Cármen Lúcia, de que há “provas cabais” nos autos sobre a formação e atuação de uma organização criminosa liderada por Bolsonaro, com o intuito de “sequestrar a alma da República” – mesma posição de Zanin, que identificou no apanhado de provas a ação continuada de um grupo estável, com coordenação, financiamento e divisão clara de tarefas – mais uma pá de cal na defesa de Fux.
Protagonizando um dos pontos altos do desmantelamento dos argumentos da defesa, e aludindo nitidamente à metodologia de Fux, de “esquartejar” os atos preparatórios e executórios do golpe, o ministro Flávio Dino usou o recurso da metáfora para desmascarar o propósito do porta-voz da defesa dos réus na corte: um boi é dividido em pedaços, e a cada um é perguntado: “você é um boi?”, ao que os pedaços respondem não, “levando à conclusão falseada de que nunca houve boi”.
Enfim, o 11 de setembro de 2025 se perpetuará como um dia histórico. Com rigor e lisura, o Supremo Tribunal Federal deu uma resposta (técnica e ética) à altura dos graves crimes cometidos contra a democracia brasileira. Apesar de vermos brotar, das mais insuspeitas gretas, operadores das trevas, o Brasil continua valendo a pena, como disse a ministra Cármen Lúcia, por estarmos “conseguindo manter o estado democrático de direito”. Comemoremos, pois!
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Suzana Varjão é jornalista e escritora.