Opinião

Julgamento expõe as vísceras de um podre poder

No segundo dia de julgamento dos acusados de conspirar contra o Estado Democrático de Direito, assistiu-se a um jogo de descolamento e permanência dos aliados em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que, com a ajuda de seu próprio corpo de defesa, saiu mais exposto e enfraquecido do que o imaginado, nessa fase da ação penal.

A sustentação dos advogados dos réus foi, em geral, estrategicamente dividida em dois blocos: o primeiro, centrado no rito processual, arguindo falhas e vícios, como cerceamento de defesa; o segundo, no mérito em si das acusações – um, visando anular, pura e simplesmente, o processo; outro, negar a participação de seus clientes nos atos antidemocráticos.

Mas nesse bailado quase ensaiado houve dissonâncias. A principal delas, entre as defesas de Bolsonaro e Paulo Sérgio Nogueira. O advogado do ex-ministro da Defesa não se limitou a arguir a inocência de seu cliente – garantiu que ele atuou para demover o então presidente da República do intento golpista, confirmando, portanto, seu protagonismo na conspiração.

Para sustentar o argumento, o bacharel usou elementos da própria peça de acusação – entre eles, depoimentos do então comandante do Exército, Freire Gomes, que teria garantido não ter sido pressionado por Paulo Sérgio Nogueira a aderir ao GLO (Garantia de Lei e da Ordem), um dos instrumentos planejados para concretizar o golpe de estado. 

Por se contrapor aos planos de ruptura institucional, Paulo Sérgio Nogueira teria sido “enxovalhado”, chamado de “frouxo e melancia”, e sofrido ataques virtuais, tanto quanto o general Freire Gomes, que se recusou a participar da trama. Uma defesa que, na prática, funcionou como acusação a Bolsonaro.

Acusação, aliás, fortalecida, contraditoriamente, por seu próprio corpo de defesa. 

Seguindo a estratégia geral de abrir o guarda-chuva (anular processo), e, para o caso de o objeto não funcionar, munir o cliente, concomitantemente, de capas, galochas, ou o que fosse possível para protegê-lo da chuva (defesa do mérito), a defesa se atrapalhou, se contradisse, e acabou por fortalecer a acusação.

Na primeira parte da sustentação oral, alegando cerceamento de defesa, o advogado de Bolsonaro questionou o volume de documentos enviados (70 terabytes), em curto espaço de tempo, o que teria impedido o devido acesso ao conteúdo, dizendo, textualmente, não conhecer a íntegra do processo. 

Posteriormente, na intervenção sobre o mérito, o mesmo advogado negou a existência do plano de golpe, garantindo não haver provas... Como se pode negar a existência de provas não examinadas? Pode-se supor que a contradição tenha sido proposital, para reforçar a tese do cerceamento de defesa. Mas a argumentação seguinte não a sustentou – ou sustenta.

Ainda examinando o conteúdo do processo acusatório, o advogado passou a defender a tese de que “planejamento não é execução”, e de que “não se pode punir ato preparatório”. Admitiu, portanto, o planejamento de uma operação que visava interromper o processo democrático, e que incluía sequestro e assassinato de pessoas. 

Nesse primeiro round, ficou nítido o elo mais resistente da corrente golpista: Braga Neto e Bolsonaro, com peças de defesa quase idênticas, centradas na desqualificação do delator e na tese do cerceamento de defesa. Haverá outros, mas esse foi suficiente para expor as vísceras podres de uma corrente político-ideológica que ameaça a democracia no Brasil – e no mundo.

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Suzana Varjão é escritora e jornalista