Opinião

Queimado de vidro

Tecnicamente, é possível sim comer vidro

São muitas as particularidades de cada canto do Brasil. Um exemplo se trata da deliciosa guloseima doce denominada bala, feita de açúcar, que na Bahia tambem é chamada de queimado.

Etimologicamente, bala provem do francês balle, com o significado de trouxa ou pacote. Na Bahia, o uso do termo queimado já diz algo sobre o modo de preparo deste açucarado produto, que não necessariamente precisava ser embalado. Basta apenas aquecer o açúcar até antes de queimar numa panela, e após derreter, resfriá-lo rapidamente.

A agradável palavra açúcar tem sua origem no árabe “as-sukkar”, que por sua vez provém do sânscrito “çarkara” e do persa antigo “shakar”, a significar “areia” ou “grão de areia”, dado seu aspecto cristalino. Tambem conhecido na antiguidade como “sal doce”, açúcares são feitos de átomos de carbono, hidrogênio e oxigênio, organizados em distancias regulares arranjadas de tal forma que macroscopicamente resultam em cristais.

Os queimados estão relacionados ainda à história brasileira desde os tempos coloniais, particularmente aos primeiros engenhos de açúcar, uma das principais mercadorias de exportação desde os mais velhos dias brasileiros. São parte de um subproduto pouco citado do sumo da cana, a adoçar o duro dia a dia das desumanas condições de escravizados a labutar entre sangue, suor e lágrimas em gigantescos engenhos e canaviais. Nestes, não se colhiam somente vidas, moíam espíritos e se destilavam almas. Havia algo a mais do que isso.

O processo de destilação da cana-de-açúcar pode ser visto como um dos primeiros procedimentos de engenharia química do novo continente, embora a sociedade açucareira que se constituiu na época não ensejou maior desenvolvimento tecnológico. De fato, as técnicas introduzidas na fabricação do açúcar perduraram praticamente inalteradas por séculos, impedindo a mobilidade social e o desenvolvimento industrial brasileiro, sendo o país ainda hoje o maior produtor mundial.

Ao chegar da lavoura, a cana era moída e prensada em engenhos mecânicos de diversos tipos, movido por força humana, tração animal ou energia hidráulica, transformada em caldo. Posteriormente, em grosso modo, a garapa era aquecida em caldeiras com tachos de barro ou ainda de cobre, muitas das vezes aproveitando do próprio bagaço para aquecimento. Um melaço era despejado num molde cônico relativamente grande de barro, da altura de um braço, com um furo na extremidade arredondada, onde o material purgava e cristalizava, formando o que se dizia ser um pão de açúcar (a semelhança do icônico penhasco carioca com este formato teria dado origem ao seu nome). Por fim, após retirados dos moldes, os açúcares resultantes eram secos até completar a cristalização para serem despachados por navios.

Não foi apenas a cachaça a única a servir de papel econômico e social enquanto bebida popular nos tristes trópicos coloniais: diversos doces, entre eles melaços, rapaduras e mesmo queimados, ajudavam a fornecer energia e adocicar grande parte do amargor das condições de vida e trabalho de uma sociedade oprimida por castigos e violências.

Tecnicamente, é possível sim comer vidro, pois em linhas gerais, qualquer substância líquida, ao ser resfriada rapidamente sem cristalizar, torna-se vítrea. Assim são feitos os vidros de janelas, seguindo uma receita antiquíssima, que remonta as primeiras civilizações, ao misturarem areia da praia (basicamente dióxido de silício, um cristal cuja forma remonta a origem do nome açúcar em algumas línguas) e cinzas (que contém, entre outros, carbonatos e mesmo nitratos como de sódio e potássio) numa enorme fogueira que atinja um pouco mais de 1000oC. Se muito intensa, tal fogueira pode inclusive vitrificar a areia da praia misturada com tais cinzas.

O historiador romano Plínio, o Velho (Gaius Plinius Secundus, c. 23 - 79 d.C.) chegou a citar na sua famosa obra “História Natural” que mercadores, possivelmente fenícios, ao utilizarem blocos de nitrato de sódio para formar uma lareira acesa na praia, a intensidade do calor foi suficiente para derreter os ingredientes junto com a areia, formando assim vidros. Mais precisamente, ele escreveu que “a história é que um navio carregado de trona (Na2CO3×2NaHCO3×3H2O), estando atracado neste local (Akko, atual Acre, próximo da foz do rio Belus e do Monte Carmelo), os mercadores, enquanto prepararam sua refeição à beira-mar, não encontrando pedras à mão para sustentar seus caldeirões empregaram para esse fim alguns pedaços de trona que haviam retirado do recipiente. Ao ser submetido à ação do fogo, em combinação com a areia da praia, eles viram placas transparentes que fluíam de um líquido até então desconhecido e solidificava: esta, diz-se, foi a origem do vidro.”

Há vidros naturais chamados de obsidianas, que nada mais são do que lava vulcânica rapidamente resfriada, muitos destes que serviam como pontas de lanças para furar e cortar carnes na aurora da humanidade. O efeito do resfriamento rápido visa não permitir que seus átomos se reorganizem de forma ordenada, promovendo assim uma estrutura atômica sem forma, não-cristalina, ou seja, vítrea. Por sinal, há vidros até na lua! Durante a missão Apolo 17, em 1972, foram trazidas algumas contas milimétricas de vidro alaranjado pelos astronautas, cujo mistério de sua origem apenas recentemente começou a ser desvendado. Para algumas delas, o mais certo é que foram produzidas após a erupção de lavas vulcânicas que solidificaram quase que instantaneamente no vácuo lunar há milhares ou mesmo milhões de anos.

Diversas técnicas foram elaboradas ao longo dos séculos ao redor do mundo, visando produzir vasilhames, contas e lâminas, entre diversos outros formatos e aplicações. Um vidro bastante fácil de fazer, em qualquer cozinha, é o queimado de açúcar, bastando aquecer o mesmo em fogo baixo até derreter (sem queimar), e resfriá-lo rapidamente fora da panela, despejando-o numa superfície qualquer que não esteja aquecida. Em algumas receitas acrescenta-se água ao açúcar antes de aquecer, mas isto não é necessário, pois a temperatura de fusão do açúcar é por volta de 70oC, algo factível de se obter num simples fogão.

Vidros açucarados assim são comestíveis. Outra aplicação bastante conhecida são os chamados vidros cenográficos, a maioria também feitos de açúcar, e servem para mimetizar vidros comerciais em cenas teatrais ou cinematográficas, pois não costumar cortar nem ferir com gravidade quando quebrados.

O grande cantor, ator e compositor brasileiro Clementino Rodrigues (1921 - 2020), mais conhecido como Riachão, costumava andar com uma flanelinha no ombro e com os bolsos cheios de queimados, a oferecer gentilmente a quem se interessasse quando a prosa fosse boa. Ele compôs por volta de 1964 a conhecida canção “Cada Macaco no Seu Galho”, gravada pela primeira vez por Gilberto Passos Gil Moreira (n. 1942) e Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (n. 1942) em 1972 quando do retorno deles do exílio devido ao golpe militar, tornando-se um enorme sucesso. Chôchuá!

Ouça
Gilberto Gil - Cada Macaco No Seu Galho

Cada Macaco no Seu Galho
Riachão 

Chô, chuá, cada macaco no seu galho
Chô, chuá, eu não me canso de falar
Chô, chuá, o meu galho é na Bahia
Chô, chuá, o seu é em outro lugar

Não se aborreça
Moço da cabeça grande
Você vem não sei de onde
Fique aqui, não vai pra lá
Esse negócio da mãe preta ser leiteira
Já encheu sua mamadeira
Vá mamar noutro lugar

In: EXPRESSO 2222. Cada Macaco no Seu Galho. [S.I.]. Philips, 1972. 1 disco LP, Faixa 1 (4 min 25 s).

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Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e pesquisador do SENAI-CIMATEC