O 1º de Maio deixa de ser uma data de coesão social para se tornar um rito vazio
Ilustração: Sora IA
O Dia do Trabalhador deixou de ser palco de grandes mobilizações, greves gerais e discursos inflamados, que marcavam a agenda política nacional. No Brasil, especialmente a partir da redemocratização, o 1º de Maio simbolizava a força coletiva da classe trabalhadora e a centralidade do trabalho na construção do país. No entanto, nas últimas décadas -- e de forma ainda mais aguda nos anos recentes -- o que se vê é um esvaziamento progressivo. As comemorações tornaram-se meramente protocolares ou simbólicas, ignoradas pela maioria da população.
Para além de casual, o fenômeno é sintoma de transformações profundas no mundo do trabalho, na organização sindical e na própria percepção dos trabalhadores sobre o papel de suas representações.
A transformação do mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas é marcada pela perversidade de um tripé formado por precarização, informalidade e desproteção social. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, mostram, por exemplo, que mais de 39 milhões de brasileiros estão na informalidade — o que representa cerca de 39% da força de trabalho ocupada.
Além disso, a última reforma trabalhista -- sob a promessa de modernizar e dinamizar o mercado -- fragilizou direitos históricos e enfraqueceu a capacidade de negociação coletiva. Multiplicaram-se, a partir dela, contratos intermitentes, a pejotização e o avanço de modelos como o “microempreendedor individual” (MEI), novas formas de vínculo laboral que escapam da lógica tradicional de proteção.
O surgimento do trabalho por aplicativos adiciona outra camada de complexidade. Essa massa crescente de trabalhadores autônomos, frequentemente invisibilizados nas estatísticas oficiais, ajuda a entender por que a data do 1º de Maio perdeu ressonância: ela já não fala diretamente à realidade de milhões de brasileiros.
A queda da representatividade sindical também é um dos pilares do esvaziamento do Dia do Trabalhador. Até 2017, os sindicatos contavam com a contribuição sindical obrigatória, que sustentava financeiramente as estruturas das centrais. Com o fim desse repasse automático, a arrecadação despencou -- entre 2017 e 2022, houve uma redução superior a 90% na receita sindical.
O distanciamento entre sindicatos e trabalhadores ganhou contornos ainda mais dramáticos com a revelação de um esquema de fraude institucionalizada praticada por entidades sindicais e associações de fachada, que incluíam descontos não autorizados na folha de pagamento de aposentados e pensionistas do INSS.
Essa quebra financeira impactou diretamente a capacidade de mobilização e organização das centrais. O que antes eram grandes eventos de massa, com pautas claras e poder de barganha, hoje se convertem em transmissões online, atos modestos ou manifestações dispersas e esvaziadas. Além disso, a multiplicação de sindicatos e a ausência de uma representatividade nacional coesa contribuíram para a fragmentação da base trabalhadora.
De acordo com investigações da Polícia Federal, essas entidades cadastravam-se irregularmente como representantes sindicais ou associativas, direcionando contribuições compulsórias a milhões de beneficiários, muitas vezes sem seu consentimento ou sequer conhecimento.
A prática, que ganhou força nos últimos dois anos, atinge em cheio uma população já vulnerável e representa um atentado ético ao princípio basilar do sindicalismo: a defesa do trabalhador. Quando estruturas que deveriam proteger passam a explorar, o resultado é o completo colapso da confiança pública -- e um reforço perigoso da narrativa de que sindicatos são meros instrumentos de autopreservação, distantes da realidade concreta da classe trabalhadora.
Em vez de atuarem como mediadores legítimos entre capital e trabalho, esses sindicatos transformaram-se em máquinas burocráticas focadas na arrecadação a qualquer custo, mesmo que isso significasse ludibriar os próprios beneficiários da Previdência Social. O dano simbólico é incalculável, ferindo de morte, inclusive, o movimento sindical sério e comprometido com a defesa dos direitos de trabalhadores.
Muitos destes já não se enxergam representados pelas estruturas sindicais, que ainda operam sob uma lógica verticalizada, pouco conectada com as novas dinâmicas de um mundo onde o trabalho assalariado, estável, com carteira assinada e laços de pertencimento -- ideal que moldou o 1º de Maio durante décadas -- está em processo de colapso. A era do pós-fordismo, a financeirização da economia e as novas tecnologias criaram um cenário em que a noção de “classe trabalhadora” homogênea perde força.
A individualização da experiência laboral, promovida pelo discurso do empreendedorismo, tem contribuído para uma despolitização do trabalho. Em vez de sujeitos coletivos, vê-se uma multidão de indivíduos em busca de sobrevivência num mercado volátil, onde o sucesso é entendido como resultado exclusivo do esforço pessoal.
Nesse contexto, o 1º de Maio deixa de ser uma data de coesão social para se tornar um rito vazio. Como celebrar o trabalho quando a precariedade se tornou regra e a estabilidade virou exceção?
Outro fator relevante é o enfraquecimento da pauta trabalhista na agenda pública. As eleições presidenciais de 2022, por exemplo, foram marcadas por debates sobre segurança, economia e combate à fome -- mas pouco se falou sobre os direitos dos trabalhadores ou a regulação do trabalho digital.
Mesmo partidos historicamente ligados ao sindicalismo, como o PT, têm enfrentado dificuldades para renovar sua base sindical e dialogar com os novos contingentes de trabalhadores informais e autônomos. A pauta trabalhista parece ter ficado para trás, soterrada por outras urgências e por uma política cada vez mais voltada à lógica do consumo e da performance individual.
Apesar do cenário adverso, há sinais de que o 1º de Maio pode ser reconfigurado. Novas formas de organização de trabalhadores -- como os movimentos de entregadores por aplicativo -- mostram que ainda há espaço para a mobilização, desde que ela fale a linguagem do presente.
Coletivos horizontais, iniciativas de economia solidária, cooperativas de trabalhadores e redes digitais de apoio mútuo são exemplos de formas alternativas de luta que podem revitalizar o sentido político do Dia do Trabalhador. O desafio está em reconstruir a identidade coletiva em um mundo cada vez mais fragmentado.
Além disso, há um papel a ser cumprido pelas instituições públicas, que podem fomentar políticas de proteção ao trabalhador do século XXI, promover o diálogo social e recuperar a centralidade do trabalho digno como valor constitucional.
O esvaziamento das comemorações do Dia do Trabalhador é, em última análise, reflexo do esvaziamento da própria ideia de trabalho como projeto coletivo. Não se trata apenas da perda de um feriado simbólico, mas de uma erosão profunda das estruturas que sustentaram o pacto social nas sociedades industriais.
Para que o 1º de Maio volte a mobilizar, será necessário muito mais do que palanques e discursos: será preciso escutar os trabalhadores reais, em suas múltiplas formas de existência, e construir novos sentidos de pertencimento e solidariedade.
A reinvenção do 1º de Maio talvez não passe pelos velhos sindicatos, mas pelas ruas, aplicativos e redes onde os trabalhadores de hoje se organizam — ainda que de maneira fragmentada, precária e silenciosa. O desafio está em transformar esse silêncio em voz, e essa voz em ação política concreta.