Opinião

Encarando as coisas como elas são

70% das crianças e adolescentes do país apresentam dificuldades básicas em matemática

Há coisas na vida nem sempre fáceis de lidar.

Algumas delas envolvem a matemática, mas esta quase sempre é fácil explicar, conforme ilustrado a seguir.

Avaliações internacionais como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) mostram que mais de 70% das crianças e adolescentes do país apresentam dificuldades básicas em matemática. Este cenário situa o Brasil em cerca de três anos de atraso em relação à média dos estudantes de todos os países. Já a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) detalhou tais dados, mostrando que a média mundial de alunos no nível 2 de proficiência em matemática é de 69%. No Brasil, apenas 27% dos estudantes atingiram esse nível, evidenciando um grande descompasso que urge mudanças. Uma delas seria uma maior discussão de ideias nas mais diversas mídias.

Poucos sabem, mas uma das primeiras e mais importantes obras da matemática em língua portuguesa é o “Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria” (1567), de Pedro Nunes (tambem conhecido por Petrus Nonius, 1502 – 1578), médico e matemático português. Tal livro teve destaque nas navegações portuguesas por algumas razões muito relevantes.

Uma delas é que tal livro disseminou o sistema de numeração hindu-arábico (ou seja: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) e as notações algébricas utilizadas pelos matemáticos italianos Luca Pacioli (1445 - 1517) e Niccolo Tartaglia (1500 - 1557).

Enquanto outra ilustração, há uma detalhada exposição sobre regras básicas da matemática utilizando das quatro operações, bem como aplicações envolvendo a observação de uma estrela com um astrolábio, instrumento este fundamental para as navegações, e que tornou o livro de Nunes famoso. Por sinal, tal obra foi muito difundida no Brasil, em especial no Colégio dos Jesuítas da Bahia (1553 - 1759), instituição de ensino superior mais antiga das Américas com o curso de Teologia e Ciências Sagradas, e que tinha uma cátedra de matemática. Tal curso tinha atividade e influência, inclusive além-mar, sendo que a sua biblioteca tinha cerca de três mil livros!

Um último comentário, apenas para ficar em poucos exemplos, é que Nunes foi pioneiro na utilização da notação do uso do xis (shay em árabe) para coisa (com o significado de incógnita: ou seja, algo não conhecido). Para se determinar o valor da coisa (xis) envolvendo uma equação, ou ainda balança, termo este usado por Nunes mas emprestado das antigas tradições hindu-arábicas de solução de problemas, do tipo 3x + 10 = 5x + 6, alguns procedimentos precisam ser obedecidos.

Uma maneira visual sugere encarar tal conta com duas barras de mesmo tamanho. O xis é triplicado de um lado, acrescido de 10 unidades. E do outro lado da equação, o mesmo xis está quintuplicado, acrescido de 6 unidades.

Há uma pergunta envolvendo esta expressão, que pode ser descrita de algumas formas. Uma delas seria: o triplo de uma coisa, acrescido de 10 unidades, é igual ao quíntuplo da mesma coisa acrescido de seis unidades. Quanto vale tal coisa?

O termo álgebra é árabe, e significa restaurar. Seu significado está registrado no título do primeiro livro de álgebra do mundo (“Al-Kitab al-mukhta?ar fi ?isab al-jabr wa-l-muqabala”, ou “Livro de Compêndios de Cálculo e da Arte de Restauro e Balanceamento”), escrito pelo matemático, astrônomo, astrólogo e geógrafo persa Abu ‘Abd Allah Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi (conhecido como Al-Kharismi, c. 780 – c. 850) por volta de 830. Uma versão deste manuscrito foi publicada pelo matemático americano Louis Charles Karpinski (1878 - 1956) em 1915, com base na tradução feita pelo erudito e tradutor inglês Robert of Chester (? – c. 1150) do século XII.

Sendo um fiel seguidor dos procedimentos hindu-arábicos, Nunes sugeriu que, para se resolver uma equação do tipo 3x + 10 = 5x + 6, que se respeite algumas regras de restauro ou reunião (al-jabr) e balanceamento (wa-l-muqabala).

Em primeiro lugar, é preciso extrair dos dois lados da equação um mesmo termo – e sugere-se retirar o triplo da coisa (3x) tanto do lado esquerdo quanto do lado direito, tendo em mente que toda equação pode ser representada por uma balança de dois pratos.

Assim a expressão 3x + 10 = 5x + 6 passa a ser 3x - 3x + 10 = 5x - 3x + 6, equivalendo a 10 = 2x + 6, em termos de wa-l-muqabala.

Um segundo procedimento de wa-l-muqabala é necessário, pois é preciso saber o valor do restauro ou reunião (álgebra) do dobro de xis mais seis unidades, que é igual a dez unidades.

Extraindo seis unidades de ambos os lados da equação 10 = 2x + 6, ou seja 10 - 6 = 2x + 6 - 6, que resulta em 4 = 2x.

É facil perceber que se busca pelo valor da coisa que dobrada resulta em quatro. Seguindo a antiga tradição hindu-arábica, o correto seria proceder dividindo os dois lados da balança por dois, resultando em 4/2 = 2x/2, ou seja, o valor da coisa é: 2 = x.

Ao encarar o problema como se deve, tem-se a seguinte reposta a questão da determinação da coisa: trata-se do valor dois para xis, cujo triplo, somado de dez unidades, é igual ao quíntuplo dele acrescido de seis unidades. Nada a mais a fazer e dizer, após ter encarado tal coisa.

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Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia