Alberto Oliveira

Entenda por que está cada vez mais difícil levar alimentos para a mesa

...e a sinuca de bico em que meteram o Banco Central


A classe de mais baixa renda é a mais afetada pela alta nos preços dos alimentos
Imagem: Leonardo.AI

A cotação do dólar começou a dar saltos de canguru. O que se disse: "eu não como dólar". Como se a desvalorização do real (por que é disso que se trata), tivesse impacto zero sobre a economia.

O Comitê de Política Econômica do Banco Central puxou para o alto a taxa de juros básicos (Selic). O que se dizia: "é culpa do presidente do BC, que está jogando contra o desenvolvimento do País". 

Muda-se o titular da autoridade monetária e, em um passe de mágica, o que se diz? "É culpa da Faria Lima" (onde, no imaginário, reúnem-se endinheirados que desejam levar o Brasil à falência). 

O poder público gasta como se dinheiro caísse das nuvens. O que se diz: "não é gasto, é investimento". 

Mas, como inexiste almoço grátis, chegou a hora da colheita, após largo tempo de semeadura em terreno pedregoso. E a safra é indigesta: inflação devorando o orçamento das famílias e com voracidade maior quando se trata daquelas de baixa renda, mais vulneráveis ao aumento generalizado dos preços.

Vamos entender os diversos motivos que estão levando os pobres, mais uma vez, a ficar com a conta mais dolorosa, a começar pelo famigerado déficit fiscal -- em termos simples, quando o governo gasta mais do que arrecada.

Para cobrir o buraco nas contas públicas o governo recorre, basicamente, a 3 expedientes: ele pode se endividar (normalmente por meio da emissão de títulos públicos), elevar impostos ou recorrer à emissão monetária (na prática, aumentando a base monetária que circula na economia).

Cada uma dessas estratégias traz consequências distintas, mas todas podem, em maior ou menor grau, impactar os níveis de preços.

Emissão de títulos públicos - Ao emitir títulos para financiar o déficit, o governo atrai a poupança do setor privado. Se a demanda pelos títulos governamentais não for suficientemente alta, o governo precisará elevar as taxas de juros oferecidas para torná-los atrativos, incrementando, assim, o custo de financiamento da dívida.

Em alguns casos, se a situação não for manejada adequadamente, o setor privado encontra menor espaço para realizar investimentos produtivos, pois parte significativa dos recursos disponíveis se direciona aos títulos públicos.

Embora a alta de juros possa reduzir a pressão inflacionária no curto prazo (por desestimular o consumo e o investimento), no médio e longo prazo o crescimento dos gastos com juros agrava a fragilidade fiscal, alimentando expectativas de inflação futura – especialmente se houver dúvidas sobre a capacidade do governo de honrar suas obrigações sem recorrer à emissão de moeda.

Elevação de impostos - Quando o governo opta por cobrir parte do déficit elevando impostos, há um impacto imediato sobre preços e custos de produção.

Os produtores tendem a repassar o aumento da carga tributária ao consumidor final. Isso encarece os bens e serviços, podendo se refletir numa elevação geral de preços.

A alta de tributos costuma ter efeitos negativos sobre a competitividade interna, pois empresas locais reduzem investimentos ou se veem sobrecarregadas e perdem espaço diante de concorrentes estrangeiros.

Em resumo, há uma tendência de menor oferta ou menor capacidade de produção, o que, em um ambiente de demanda estável ou crescente, pressiona ainda mais os preços para cima.

Emissão de moeda - Esse método de financiar o gasto estatal gera pressão inflacionária quase imediata, pois mais dinheiro circulando na economia significa maior propensão ao consumo, enquanto a oferta de bens e serviços não acompanha instantaneamente esse incremento na demanda. Nesse cenário, os preços tendem a subir.

Por que os preços estão subindo tanto...

O aumento nos preços dos alimentos tem várias causas. Por exemplo:

Custos de produção mais elevados - Insumos agrícolas, como fertilizantes e defensivos, sofrem reajustes em meio a flutuações cambiais. Quando o real se desvaloriza frente ao dólar, as importações (incluindo fertilizantes, dos quais o Brasil é um grande dependente, e a farinha de trigo, que encorpa o pão de cada dia) ficam mais caras, o que se traduz em custo extra para os produtores rurais.

Viu, aí, que você, indiretamente, come dólar?

Demanda aquecida e auxílios governamentais - Durante fases de auxílio emergencial ou de outros programas de transferência de renda, observa-se um impulso adicional ao consumo. Caso esse incremento na demanda não seja acompanhado pelo aumento correspondente na oferta de produtos, o desequilíbrio gera inflação setorial. 

Instabilidade fiscal e efeitos cambiais - Quando a percepção de desequilíbrio fiscal aumenta, a tendência é de desvalorização cambial, uma vez que os investidores veem maior risco em manter recursos em moeda local.

O real mais fraco encarece as importações e pode tornar o Brasil um país ainda mais atraente para exportar, fazendo com que a oferta interna de determinados produtos diminua. Consequentemente, os preços sobem no mercado doméstico.

...e por que os pobres pagam a conta mais alta 

A pressão sobre os preços dos alimentos afeta todos os grupos sociais, mas o peso desse fenômeno varia de acordo com a renda.

Para as famílias de baixa renda, uma parcela maior do orçamento é direcionada à alimentação, enquanto famílias de renda mais alta tendem a gastar uma fração menor do seu total de recursos para comprar comida.

Em famílias em situação de vulnerabilidade, a alimentação pode representar metade ou mais de suas despesas mensais. Quando os preços sobem, elas não conseguem cortar gastos em outras áreas que já são, por si só, reduzidas – uma vez que, muitas vezes, não dispõem de plano de saúde, lazer ou orçamento para educação privada. Assim, o aumento de preço dos alimentos impacta diretamente sua capacidade de alimentação adequada.

Diante da elevação de preços, itens mais nutritivos, como proteínas de origem animal (carne, frango, peixes) e produtos frescos, tornam-se inacessíveis ou são consumidos em menor quantidade pelas famílias de menor poder aquisitivo.

O resultado pode ser a deterioração da qualidade da dieta e o aumento da insegurança alimentar. Em longo prazo, isso agrava indicadores de saúde, incluindo a desnutrição e outras deficiências nutricionais.

Com menor poder de compra, as famílias mais pobres reduzem o consumo de produtos e serviços locais. O comércio do bairro, o pequeno varejo de alimentos, o ambulante e diversos prestadores de serviços sentem o baque da retração do consumo. Isso cria um ciclo negativo para a economia de regiões mais periféricas, pois a renda local diminui e a circulação de dinheiro nesses espaços se retrai.

A alta dos alimentos pressiona a tomada de crédito por parte das famílias mais pobres, que passam a recorrer a empréstimos ou compras parceladas (inclusive no cartão de crédito) para suprir necessidades básicas. Como consequência, o endividamento cresce, e o risco de inadimplência também aumenta. Famílias passam a ficar mais suscetíveis a crises econômicas e a choques de renda, pois já operam no limite do seu orçamento.

Portanto, o encarecimento dos alimentos tende a aprofundar disparidades sociais, pois a parcela mais pobre da população não dispõe de margem de manobra para absorver o choque de preços ou substituir itens sem prejuízo à sua qualidade de vida.

A sinuca de bico em que meteram o BC

A taxa básica de juros, definida pelo Banco Central, é um dos principais instrumentos de política monetária. No Brasil, essa taxa é chamada de Selic. Ela influencia diversas variáveis macroeconômicas: custo do crédito, consumo, investimentos e até a atratividade de títulos públicos.

Em cenários de inflação alta, a prática ortodoxa é elevar a taxa de juros para conter o consumo e arrefecer o crescimento dos preços. Porém, num contexto em que o país enfrenta déficits fiscais constantes, o debate sobre reduzir a taxa de juros é sensível e complexo.

Vejamos os possíveis desdobramentos:

Pressões inflacionárias - Se o Banco Central decide baixar a taxa de juros num contexto inflacionário ainda não controlado, o crédito pode ficar mais barato, estimulando o consumo e os investimentos.

Em tese, essa política poderia ser benéfica para estimular o crescimento econômico. No entanto, se o problema central não for a falta de demanda, mas a existência de restrições de oferta ou expectativas de inflação elevadas, a redução de juros pode acentuar a alta de preços.

Com mais pessoas demandando bens e serviços num cenário em que a oferta permanece limitada ou incerta, o resultado tende a ser inflacionário.

Desvalorização cambial - Juros mais baixos no Brasil reduzem a atratividade dos títulos públicos aos investidores internacionais, pois o prêmio pelo investimento em moeda local fica menor. Com menor ingresso de dólares no país, a tendência é que o real perca valor frente às moedas fortes.

Uma desvalorização cambial encarece as importações e pode elevar custos de produção de setores que dependem de insumos importados.

Além disso, aumenta a pressão sobre os preços internos de bens e serviços cotados em dólar (como combustíveis e certos alimentos). Portanto, há um risco adicional de inflação via câmbio.

Agravamento do déficit - Juros mais baixos podem até aliviar momentaneamente o serviço da dívida para o governo, pois o custo de rolagem dos títulos públicos se reduz, teoricamente. Contudo, se essa redução de juros não for vista como crível ou sustentável pelos agentes (em especial, quando o déficit fiscal segue alto), o resultado pode ser o oposto: aumento de riscos no mercado de capitais, levando a exigências de prêmios maiores ao governo para conseguir se financiar.

Assim, mesmo com a queda da taxa Selic, o Tesouro pode precisar pagar juros mais altos em títulos de longo prazo, se os investidores projetarem aumento do endividamento e maiores riscos de calote.

Ou seja, o custo total para rolar a dívida pode não cair como se espera.

Perda de credibilidade do Banco Central - O principal ativo de uma autoridade monetária independente é a credibilidade na capacidade de manter a inflação dentro da meta e de proteger o valor da moeda. Se a redução de juros for percebida como imprudente, descolada dos fundamentos econômicos ou motivada por pressões políticas, a confiança do mercado e dos agentes pode ser abalada.

Uma vez que a credibilidade é perdida, torna-se difícil reconquistá-la sem medidas duras no futuro, muitas vezes acarretando elevações drásticas dos juros, com prejuízos significativos ao crescimento econômico e ao emprego.

Uma nota de rodapéUma instituição como o Banco Central também perde credibilidade quando decide usar as redes sociais como parque de diversões. É o que fez recentemente o BC, em postagens no X, opostas à seriedade que se espera de uma autoridade monetária.

Exemplos que o mundo deu

A correlação entre déficit público elevado, inflação e instabilidade econômica encontra respaldo em experiências de países que, em diferentes momentos históricos, enfrentaram consequências negativas em decorrência do endividamento insustentável.

Alguns exemplos ilustrativos:

Grécia (crise da dívida soberana) - A crise grega, que veio à tona a partir de 2009, foi desencadeada pela revelação de déficits fiscais muito maiores do que se divulgava. Com o aumento exponencial da dívida, a desconfiança dos mercados globais fez com que o país tivesse de pagar juros cada vez mais altos para refinanciar seu passivo.

O resultado foi uma crise econômica profunda, com aumento do desemprego, contração do PIB e severas medidas de austeridade impostas como condição para obtenção de pacotes de resgate da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional.

Embora a inflação não tenha sido o foco principal dessa crise (dadas as características específicas de uma economia inserida na zona do euro), o choque no poder de compra da população e a instabilidade econômica foram intensos.

Zimbabwe (hiperinflação) - Um dos casos mais dramáticos de hiperinflação no mundo moderno se deu no Zimbabwe, entre 2007 e 2009, onde o governo recorreu à impressão maciça de moeda para cobrir seus gastos.

O desequilíbrio fiscal e a falta de credibilidade na política monetária resultaram em um episódio inflacionário catastrófico, em que os preços se multiplicavam em ritmo vertiginoso e a moeda local se tornou virtualmente inútil. Embora seja um caso extremo, ilustra como a monetização de déficits pode precipitar um colapso econômico.

Venezuela (desequilíbrio fiscal e colapso econômico) - Outro exemplo recente é a Venezuela, que, em face de sucessivos déficits fiscais e políticas estatais que comprometeram a produção nacional, enfrentou um surto hiperinflacionário na última década.

As contas públicas se deterioraram devido à dependência extrema das receitas do petróleo e, com a queda nos preços do barril no mercado internacional, o governo viu suas receitas despencarem. A reação foi financiar os gastos imprimindo moeda, gerando uma espiral inflacionária que devastou o poder aquisitivo da população.

Argentina (histórico de déficits e inflação crônica) - A Argentina exibe, há décadas, um padrão de desequilíbrios fiscais recorrentes, combinado com desvalorizações cambiais frequentes e inflação elevada.

A dificuldade em controlar o gasto público e a frequente necessidade de emitir moeda para cobrir o rombo no orçamento resultam em episódios recorrentes de inflação alta ou hiperinflação, especialmente nas décadas de 1980 e 1990.

Ainda hoje o país lida com índices de inflação muito acima da média mundial, demonstrando como um histórico prolongado de desequilíbrio fiscal pode se transformar em um problema crônico.

Em todos esses casos, o componente central do desequilíbrio econômico é o déficit fiscal contínuo e a forma ineficiente de lidar com ele.

Seja pela monetização da dívida, seja pela elevação dos impostos, seja pela falta de credibilidade junto a investidores, o setor público ao operar com déficits tem o poder de causar distúrbios inflacionários, instabilidade cambial, queda no poder aquisitivo e, em casos extremos, crises de confiança sistêmicas.