Entrevistas / Livros

Autores falam sobre cultura africana e combate ao racismo

Eles lançam livros nessa sexta-feira (27 de setembro), na Fundação Cultural Palmares, em Brasília.

Elisa Larkin Nascimento, Valéria Lima e Boaz Mavoungou, respectivamente, guardiã do legado de Abdias Nascimento e autores dos livros “Mãe da liberdade: a trajetória da Ialorixá Hilda Jitolu” e “O Paradoxo africano: entre riquezas e miséria” são vozes repletas de reflexões sobre resistência, identidade e a força transformadora da cultura negra.

Os livros serão lançados nessa sexta-feira (27 de setembro), na Fundação Cultural Palmares, em Brasília.

Eles falam sobre o papel da cultura na luta antirracista, o combate ao racismo e a riqueza cultural, histórica e econômica da África.

Elisa Larkin: O papel da cultura é fundamental na luta antirracista
Foto: Divulgação

Elisa Larkin Nascimento é pesquisadora e guardiã do legado de Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento oferece uma análise profunda sobre a interseção entre cultura e resistência antirracista. Suas reflexões sobre o Festac 77, o maior festival de cultura negra da história, revelam o poder da cultura como uma arma fundamental da luta pela autonomia e contra as tentativas de silenciamento. 

O esforço de calar Abdias durante o festival, segundo Elisa, demonstra o quanto a cultura negra, quando organizada, é vista como ameaça. A cultura não apenas resiste — ela desafia, subverte e cria espaços nos quais as narrativas impostas perdem força. Ao traçar paralelos com os movimentos negros contemporâneos, destaca que, assim como nos anos 70, o racismo se reinventa para deslegitimar as demandas por igualdade, agora sob o pretexto do "identitarismo." 

Essas reflexões evidenciam o papel central da cultura como ferramenta de transformação e poder se revela de maneira incontestável. As palavras de Elisa reforçam que lembrar é resistir, e que a memória de lutas passadas se conecta às batalhas de hoje, criando um ciclo contínuo de fortalecimento da identidade negra. Leia o pingue-pongue com Elisa Larkin.

P – Sua experiência à frente da reedição de “Sitiado em Lagos” traz uma perspectiva sobre o cerco político e diplomático que Abdias enfrentou. Como essas pressões reforçam a necessidade de se reconhecer o papel da cultura na luta antirracista?

R – O fato de o regime se empenhar tanto em calar a voz do Abdias no festival de cultura já aponta para o quanto ela é importante para a luta antirracista. A cultura já é alvo de todo um aparelho repressivo que a direita empunha. Mas, especificamente quanto à cultura negra, existe uma virilidade, vamos dizer, um peso dessa repressão muito maior, pela carga de racismo. Então, o papel da cultura e da memória é fundamental na luta antirracista, porque, enquanto o povo não tiver a consciência e o domínio das suas próprias narrativas, da sua própria história, vai continuar sendo subjugado pelas narrativas impostas. Isso é uma coisa que o Abdias sempre apontou, sempre sublinhou.

P – Você acredita que há paralelos entre os desafios enfrentados por Abdias na década de 70 e os enfrentados pelos movimentos culturais negros atuais, tanto no Brasil quanto nos demais países da diáspora africana? 

R – Sim, há paralelos muito nítidos entre os desafios enfrentados pelos movimentos da década de 70 e os enfrentados pelos movimentos negros atuais. Eu não separo movimentos culturais de movimentos políticos, pois, nesse caso, política e cultura são praticamente uma só coisa. Em grande parte, os desafios enfrentados estão diretamente relacionados a essa questão. A memória, o patrimônio e o legado cultural negro ainda são questões políticas pouco reconhecidas como frentes legítimas de atuação política, inclusive por alguns setores da esquerda. 

Hoje, enfrentamos a acusação de “identitarismo”, que se tornou a nova forma, a linguagem atualizada, de minimizar a necessidade de buscar soluções para as desigualdades sociais. E essas desigualdades, tanto sociais quanto econômicas, precisam de soluções que considerem a personalidade, a humanidade, a expressão e a dignidade desses sujeitos, que devem ser o foco das políticas socioeconômicas capazes de combater objetivamente tais desigualdades. 

A dificuldade, ou até mesmo o impedimento, de muitos setores políticos em reconhecer essa especificidade na luta por melhores condições de vida para as populações discriminadas é o mesmo desafio que os movimentos negros enfrentavam na década de 70. 

P – Como a Fundação Cultural Palmares, junto a outras instituições, pode colaborar na difusão dessas histórias, especialmente em um momento de crescente consciência sobre as heranças coloniais e as lutas por justiça racial? 

R – A Fundação Palmares, dentro de suas possibilidades, pode colaborar para a difusão dessas histórias junto a outras instituições, tanto governamentais quanto nãogovernamentais, principalmente na visibilização dessas memórias e desse patrimônio como uma questão de reparação. É fundamental que o conceito de reparação seja ressaltado nas iniciativas de divulgação e publicização desses desafios.

Ao organizar iniciativas como a Roda de Conversa Abdias Nascimento, a Fundação também desempenha um papel importante no fortalecimento das instituições do movimento negro, em uma perspectiva de aquilombamento. O aquilombamento envolve, essencialmente, a ênfase na ancestralidade, que sempre foi uma característica marcante dos quilombos ao longo da história. 

Ao promover essas discussões e trazer essas memórias tanto para as instituições quanto, na medida do possível, para a sociedade, a Palmares contribui significativamente para uma maior conscientização. 

P – De que modo a cultura negra, desde o teatro até a música, tem funcionado como meio para desmascarar essas ficções e resgatar a identidade afro-brasileira, funcionando pilar da resistência política e cultural? 

R – A cultura negra tem um alcance muito amplo, especialmente a cultura popular, como o carnaval, o samba e a capoeira. Esse alcance vai além da própria população negra e permeia a consciência geral no Brasil. É aquela clássica situação em que, ao encontrar um brasileiro no exterior, a primeira coisa que fazem é batucar em uma caixa de fósforos ou na mesa. Ou seja, o que define a cultura brasileira quase sempre são referências da cultura africana, de origem africana, da cultura negra. 

Com esse grande alcance, a cultura negra consegue desmascarar ficções e trazer uma identidade afro-brasileira mais digna para audiências maiores. No entanto, isso só acontece plenamente quando essa cultura caminha lado a lado com uma consciência formada pela resistência intelectual, ou seja, com informações, estudo e conhecimento da história. Sem esse conhecimento, por exemplo, temos casos como o filme recente sobre a Revolta dos Malês, algo que poucas pessoas conheciam. Essas referências, como Zumbi dos Palmares, precisam ser aprofundadas por meio do estudo para que, ao serem difundidas para um público mais amplo, possam exercer um papel significativo na resistência política e cultural. 

É muito importante evitar cair nas armadilhas que fazem com que, em vez de criarmos marcos na história, acabemos criando marcas para venda. A cultura pode ser explorada de uma maneira que não conduza à resistência política, nem ao resgate de uma identidade verdadeiramente dignificada. Ela precisa se direcionar para linguagens e impactos diferenciados, evitando a superficialidade da bolha mercadológica. 

Valéria Lima: O combate ao racismo é uma responsabilidade coletiva
Foto: Divulgação

Valéria Lima mergulha na trajetória de sua avó, Mãe Hilda Jitolu, em uma narrativa que transcende a biografia tradicional e destaca a força das mulheres negras no candomblé e na luta contra o racismo. Autora de “Mãe da liberdade: a trajetória da yalorixá Hilda Jitolu”, Valéria revela uma história profundamente enraizada em ancestralidade e resistência, unindo memória familiar e rigor acadêmico. 

Ela nos lembra que, desde o período da escravidão, as lideranças religiosas de matriz africana, como Mãe Hilda, desempenharam papéis essenciais na preservação das tradições e na criação de espaços de poder para as mulheres negras. O candomblé, sempre um bastião de resistência, proporciona às mulheres negras um lugar de protagonismo e força, algo que Mãe Hilda incorporou em sua liderança no Ilê Aiyê. 

Neste diálogo, o trabalho de Valéria emerge como uma contribuição indispensável para a preservação de histórias que, muitas vezes marginalizadas, formam a base da identidade afro-brasileira. Ao documentar a vida de Mãe Hilda, Valéria constrói uma ponte entre passado e presente, fortalecendo a memória oral e garantindo que essas narrativas continuem a inspirar gerações futuras. Leia, abaixo, as perguntas e respostas.

P – Ao resgatar a trajetória de Mãe Hilda Jitolu, uma figura central no candomblé e no Ilê Aiyê, como você enxerga o papel das mulheres negras na preservação das tradições de matriz africana no Brasil? De que maneira essa responsabilidade de liderança religiosa se entrelaça com a luta contra o racismo e a opressão de gênero? 

R – As mulheres negras desempenham um papel central tanto no combate ao racismo quanto na preservação das religiões de matriz africana. Desde o período da escravidão, com as irmandades, essa visão coletiva que as mulheres negras desenvolveram foi determinante para a compreensão da história que temos hoje. 

As irmandades foram centrais nesse processo, e as lideranças religiosas de matriz africana passaram a ocupar esses espaços, não apenas preservando as religiões, mantendo as tradições e as práticas religiosas, mas também criando estratégias e reinventando caminhos para combater o racismo e garantir direitos para todos nós. 

Mãe Hilda é uma figura fundamental nesse contexto, tanto na preservação das religiões de matriz africana na Bahia e no Brasil quanto em sua atuação no primeiro bloco afro do Brasil. Embora ela não tenha idealizado o Ilê Aiyê, foi Mãe Hilda quem o acolheu e tornou possível sua existência. Sua participação foi determinante para que o bloco se concretizasse. 

Resgatar essa história é, na verdade, o melhor que podemos fazer. Manter essas narrativas vivas e garantir que as próximas gerações as conheçam é fundamental para nós, que fazemos parte do movimento negro e acreditamos nessa proposta e nessa configuração. Meu trabalho segue essa direção, reconhecendo a importância dessas lideranças, não apenas para minha comunidade, mas para todo o Brasil. 

P – Seu livro reflete uma densa pesquisa histórica, mas também uma profunda ligação afetiva com a biografada, sua avó. Como foi o processo de conciliar a perspectiva acadêmica com a pessoal na construção dessa narrativa, e de que forma você acredita que esse equilíbrio enriqueceu o entendimento sobre a resistência cultural das comunidades afro-brasileiras? 

R – Ao longo da pesquisa, busquei manter um certo distanciamento, apesar de fazer parte da família. Tentei, na medida do possível, garantir esse afastamento, para preservar uma neutralidade científica, um respeito acadêmico, por assim dizer. Embora eu não acredite na total imparcialidade científica ou acadêmica, acredito que quem somos reflete muito nas nossas pesquisas. No entanto, fiz o esforço de manter essa distância justamente para valorizar ainda mais essa história. 

Tive a oportunidade, pela primeira vez, de ver a saída do Ilê Aiyê de frente, e isso mudou minha percepção. Quando se nasce em um ambiente como esse, quando você é criada nesse contexto e tem como referências familiares pessoas como Mãinha e vovô – figuras que são grandes referências políticas e culturais para quem vê de fora –, é natural que seja difícil enxergar tudo isso quando se está por dentro. Porém, ao me permitir enxergar, compreendi que, de fato, exerço um certo privilégio em comparação com outras pessoas negras deste país, por ter nascido nesse ambiente familiar, por ter acesso a essas histórias e por ter essas pessoas como minhas principais referências de vida. 

Ao longo da pesquisa, mantive isso muito presente. De certa forma, tentei deixar claro na pesquisa o quanto essas pessoas são importantes para mim, mas, ao mesmo tempo, elas são minha família. Respeitei todos os ritos da pesquisa e todos os critérios acadêmicos, para garantir que o trabalho fosse verdadeiramente qualificado, atendendo às exigências da academia, sem perder de vista meu lugar como membro da família e minha relação tanto com a biografada quanto com os informantes, que são meus familiares.

No livro, abordo esse aspecto. Explico que, apesar de minhas fontes serem familiares, elas me revelaram coisas que não eram tão familiares assim. Não é porque nasci nessa família que eu sabia de todos os detalhes da vida da minha avó. Foi a pesquisa que me proporcionou a oportunidade de costurar essa "colcha de retalhos" e, assim, construir essa história, que hoje, dez anos após sua escrita, está se tornando pública. 

P – O candomblé, frequentemente alvo de racismo religioso, é um espaço onde muitas mulheres negras encontram força e poder para resistir. Como você analisa o impacto do racismo na manutenção e na disseminação dessas tradições no Brasil contemporâneo, e qual foi o papel de Mãe Hilda na construção de espaços de resistência e liberdade? 

R – O racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira. Infelizmente, em nenhum lugar deste país, em nenhuma cidade, vivemos em uma sociedade sem racismo. Ele se manifesta de várias formas. Nos últimos anos, o racismo religioso tem sido mais evidenciado. O que posso afirmar é que mulheres como Mãe Hilda, Mãe Estela, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, e Mãe Menininha do Gantois, todas essas lideranças lutaram, cada uma à sua maneira, para combater o racismo religioso, para mostrar às pessoas que o candomblé é uma religião e que vivemos em um país laico. No entanto, apesar de termos tantas mulheres como elas, e muitas outras pessoas, lutando por igualdade em todos os aspectos, pela liberdade de culto e pela liberdade religiosa, ainda não é suficiente. 

Acredito que é missão de todos nós, de todas as pessoas negras, combater o racismo. Cada um encontrará seu caminho, assim como essas lideranças, que são referências para nós justamente por se posicionarem em suas épocas. Essa missão, porém, deveria ser ampliada. É uma responsabilidade que precisa ser coletiva. Se todos nós não nos posicionarmos contra o racismo e não o combatermos — esse racismo brasileiro, que se reinventa todos os dias — não avançaremos. 

P – Durante a elaboração de "Mãe da Liberdade", você se deparou com lacunas e desafios na documentação histórica da vida de Mãe Hilda e da sua comunidade. Quais foram os maiores desafios enfrentados nessa pesquisa e como você lidou com a ausência de registros formais em uma história que, como muitas outras, foi mantida viva principalmente pela oralidade? 

R – Acredito que o maior desafio foi justamente construir uma pesquisa profunda e extensa, abordando a vida de uma líder em sua totalidade, desde o nascimento até sua morte, e fazê-lo através da oralidade. O que foi necessário, de fato, foi entrelaçar as diferentes narrativas que ouvi para transcrever a história e apresentá-la da melhor forma possível. Quando você ouve várias pessoas contando a mesma história, é possível identificar quais pontos realmente fazem sentido e descartar o que não faz, o que é resultado das falhas naturais da memória. 

Tive muita dificuldade em acessar documentos da família. Não consegui alcançar gerações anteriores, como era o plano inicial, pois existe um descuido, um desrespeito com a história das pessoas negras neste país. Isso tornou a construção dessa pesquisa extremamente desafiadora. Por isso, costumo dizer que foi como costurar uma colcha de retalhos, com cada pedaço sendo diferente do outro, ou montar um quebra-cabeça muito difícil, daqueles com peças bem pequenas, porque, de fato, a história vai se perdendo com o tempo. 

Acredito que o nosso maior desafio hoje é preservar a história das pessoas negras, já que enfrentamos um apagamento que é muito consciente. Existe um plano estratégico, por parte da branquitude, para que nossas histórias não sejam conhecidas, porque, se não temos referências, torna-se muito mais difícil seguir em frente, muito mais difícil acreditar em um futuro melhor do que o que vivemos hoje. 

Boaz Mavoungou: O Ocidente obscurece a riqueza cultural, histórica e econômica da África
Foto: Divulgação

Boaz Mavoungou pseudônimo de Mario Shazzard, nos convida a uma reflexão sobre o continente africano, um espaço onde riquezas e desigualdades coexistem em uma complexa dança. Seus escritos, caracterizados por uma crítica afiada, desvendam as contradições de um continente que, apesar de ser um dos mais ricos em recursos naturais, ainda carrega as marcas da exploração colonial. 

Em “O paradoxo africano: entre riquezas e miséria”, Mavoungou destrincha as relações desiguais que perpetuam a pobreza, desnudando as estruturas coloniais e a xenocracia que mantêm milhões à margem. Sua análise vai além da superfície, celebrando a resiliência de um povo que nunca se curvou, transformando opressão em força criativa. A cultura africana, para ele, é uma ferramenta viva de subversão, que molda futuros ao romper com narrativas coloniais. 

A conversa com Mavoungou não apenas revela o poder de suas reflexões, como também reforça a importância de intelectuais que, como ele, reinterpretam o passado para reescrever o presente. As culturas africanas continuam a desafiar as estruturas hegemônicas, criando histórias que celebram a pluralidade e a resistência de um povo em movimento. Leia trechos da conversa:

P – No livro “O paradoxo africano”, você faz uma crítica incisiva à xenocracia ocidental. De que maneira acredita que a narrativa dominante do Ocidente ainda influencia a forma como o mundo enxerga a África e como os africanos se veem?  

R – A narrativa dominante do Ocidente continua a influenciar profundamente a percepção global sobre a África, assim como a maneira pela qual os próprios africanos se veem. O Ocidente tradicionalmente perpetuou uma visão da África centrada na pobreza, em conflitos, no subdesenvolvimento e na dependência. Essas imagens predominam na maioria dos meios de comunicação, na literatura e no entretenimento ocidental, obscurecendo a complexidade e a riqueza cultural, histórica e econômica do continente.  

A história africana, em grande parte contada por estudiosos ocidentais, frequentemente marginaliza ou distorce a contribuição do continente para a civilização global. A consequência do monopólio midiático dessa monocultura globalista é um distúrbio de identidade em várias camadas etárias da população africana, apesar do esforço interno e diaspórico de resgatar a identidade originária cultural e civilizacional da África. 

Hoje em dia, essas narrativas dominantes vêm sendo cada vez mais desafiadas por intelectuais, artistas e líderes africanos, que estão reformulando a visão de seu continente. Eles buscam recontar a história africana sob uma perspectiva autêntica e ressaltar as conquistas e potencialidades que o discurso dominante ocidental frequentemente minimiza. 

P – Ao explorar o contraste entre as vastas riquezas naturais da África e a persistente pobreza, como você enxerga o papel da cooperação internacional e dos países africanos na construção de um futuro mais justo para o continente? Quais iniciativas recentes você destacaria como exemplos de transformação? 

R – A cooperação internacional deveria ser baseada em parcerias igualitárias e benefícios mútuos. Para potencializar a eficiência dessa cooperação, a transferência de tecnologia, investimentos em infraestruturas sustentáveis e a criação de condições favoráveis ao comércio justo e à industrialização local são vitais. A cooperação Sul-Sul, ou seja, entre países africanos e outras nações em desenvolvimento, também tem mostrado potencial, ao não repetir os erros das dinâmicas coloniais de dependência e exploração.   

Mas, é preciso entender que o sistema que tornou o continente o maior provedor de matérias-primas, que alimenta a indústria ocidental, condenando os africanos a consumir importações onerosas, para sustentar a polarização económica globalista, talvez não esteja preparado para aceitar tranquilamente essa emancipação histórica. 

P – Sua obra celebra a resiliência das comunidades africanas, mas também apresenta as dificuldades que elas enfrentam. Como você, pessoalmente, encontra equilíbrio entre a crítica às injustiças e a esperança de um futuro melhor? Em sua opinião, como a arte e a cultura na África e no Brasil podem ser agentes de transformação social e resistência?  R – Alcançar o equilíbrio entre a crítica às injustiças e a esperança de um futuro melhor é um exercício constante de reflexão e compromisso. Pessoalmente, acredito que reconhecer as dificuldades e desigualdades que as comunidades africanas e afrodiaspóricas enfrentam é fundamental para gerar consciência e mobilização.  

O processo de crítica é necessário para expor os erros, denunciar as estruturas de opressão e, mais importante, para provocar mudanças, pois o primeiro passo para encontrar uma solução é mensurar o problema.  

Enquanto isso, há uma grande esperança, alimentada pela celebração das histórias de superação, das tradições preservadas, das inovações culturais e da união das comunidades em torno de sua identidade e suas lutas. A esperança também se encontra nos movimentos que vêm surgindo em todo o continente africano e nas comunidades afro-brasileiras, desafiando narrativas opressivas e construindo novas realidades. 

A arte e a cultura, são meio de expressão cuja eficácia não precisa mais ser comprovada em termos de transformação das perspectivas gerais de uma sociedade. Essas duas forças são excelentes para o resgate da identidade e da memória de um povo. Elas servem também como instrumentos de protesto e resistência. Vemos isso em manifestações culturais como o rap e o samba no Brasil, que frequentemente abordam temas de injustiça social, e nas várias expressões artísticas que emergem das lutas africanas por independência e autodeterminação.

São excelentes veículos de educação e conscientização, pois através da arte e da cultura, é possível educar as novas gerações sobre as lutas passadas e presentes, ao mesmo tempo em que se promove uma consciência crítica sobre o papel que a história colonial e suas repercussões ainda desempenham nas realidades atuais. Não iremos esquecer que elas erguem pontes e solidariedade, ajudando a fortalecer laços entre África e sua diáspora, promovendo um intercâmbio cultural que enriquece ambos os lados, enquanto expõe a luta comum por justiça e igualdade. 

Meu objetivo é celebrar a força e grandeza civilizacional das nossas raízes, enquanto critico o que ainda precisa mudar. Juntando as energias positivas, seremos capazes de mover sociedades inteiras em direção a um mundo mais equitativo, um mundo cujo inimigo é a desigualdade. 

P – Como autor que transita entre diferentes culturas e realidades, tanto africanas quanto brasileiras, de que maneira as lutas e conquistas dos países da diáspora africana pelo mundo podem contribuir para a emancipação e o fortalecimento das nações africanas? E como você vê esse processo em comparação com as lutas históricas e contemporânea no Brasil? 

R – A diáspora africana tem desempenhado um papel vital na promoção e defesa da identidade africana, tanto no nível local quanto internacional. Há século que afrodescendentes têm resistido às tentativas de apagamento cultural e têm reafirmado sua herança africana, por meio de movimentos de orgulho racial, como o pan-africanismo e o movimento da negritude. Essa conscientização global é crucial para desafiar as narrativas negativas sobre a África e expor as injustiças históricas e contemporâneas que continuam a impactar o continente.  

A diáspora pode contribuir para essa emancipação amplificando as vozes africanas nos fóruns internacionais, e promovendo debates sobre desenvolvimento sustentável, justiça social e reparações históricas. Se adicionarmos a estas lutas a troca de conhecimento e recursos, empoderamento político e soberania econômica, e se compartilharmos nossas lutas históricas e contemporâneas, podemos criar um círculo virtuoso de colaboração, empoderamento e emancipação, tanto cultural quanto econômico. 

A diáspora africana, incluindo a população afrodescendente no Brasil, é uma ponte vital