Opinião

O que um tolo pode fazer

Até algumas décadas ensinava-se a extrair a raiz quadrada de um número na ponta do lápis

Há um delicioso e curto livrinho de matemática que faz um alerta em uma de suas primeiras páginas: “o que um tolo pode fazer, outro também pode”.  [1] Tal obra, um verdadeiro best seller com milhões de cópias ao redor do mundo durante décadas, é da lavra do físico e educador inglês Silvanus Phillips Thompson (1851 - 1916), publicada em 1910 anonimamente sob o singelo título “Calculus Made Easy” (ou “Cálculo Fácil”, numa tradução livre).

Além de uma apresentação não tradicional e um tanto filosófica da matemática, Thompson presenteia quem lê com comentários interessantes. Em algumas passagens, denomina alguns matemáticos de tolos espertos, ao proporem certas ideias que, de tão simples e algo ingênuas, podem chocar quem não está acostumado a lidar com sua linguagem própria, mais ou menos hermética e aparentemente confusa. Embora tal livro seja considerado antiquado e algo tradicionalmente orientado, pode ser visto ainda assim, intuitivo, ou seja, aberto a reflexões, além de claro e com algum humor.

Por exemplo, ao apresentar o problema clássico sobre um corredor que, ao percorrer todo um trajeto, precisa ultrapassar a metade, depois a metade da metade (1/4), em seguida a metade da metade da metade (1/8), e assim por diante, e inquirir sobre se tal corredor completaria o trajeto, (portanto, questionando qual seria a solução), Thompson respondeu que tal resposta “depende” – algo que arrepia qualquer professor(a) de matemática. Como seria possível então responder a um problema que apresenta dubiedade, ou mesmo incompletude no enunciado? Somente lendo para descobrir. [2] Há também interessantes problemas práticos que chamam a atenção do leitor. Embora centenário, o livro recebeu uma importante atualização pelo jornalista e divulgador de matemática americano Martin Gardner (1914 - 2010) em 1998.

Em linhas gerais, o cálculo trata do estudo de taxas e mudanças, o que é algo essencial de se compreender num mundo em constantes transformações. Costumeiramente, é ensinado nos últimos anos escolares e nos primeiros semestres universitários com os nomes de cálculo de derivadas e integrais. Consiste num corpo de conhecimentos elegante e extremamente útil desde sua formalização inicial, que recebeu importantes contribuições de diversos matemáticos e foi consolidado por mentes da lavra de Sir Isaac Newton (1642 - 1727), matemático, físico, alquimista, teólogo e astrônomo inglês, e de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 - 1716), matemático, diplomata, historiador, advogado, bibliotecário, político e filósofo alemão, ainda que de modo independente.

Até algumas décadas ensinava-se a extrair a raiz quadrada de um número na ponta do lápis, entre um ou outro(a) que não cochilava ou mesmo dormia em sala de aula. Hoje em dia, é bastante difícil encontrar, mesmo entre aqueles(as) mais propensos a facilidades com tais contas, obter tais resultados sem o uso de calculadoras ou mesmo computadores. Enquanto isto, livros de cálculo tornaram-se cada vez maiores e pesados, servindo de ótimos batentes de portas.

Particularmente, o cálculo consiste no tema de ensino que matemáticos profissionais amam odiar, ao menos àqueles que não apreciam seu enorme poder, riqueza e elegância. Apesar da diversidade de opções de livros de cálculo bem como cursos existentes, e com diversas estratégias de apresentação, a busca por um ensino satisfatório continua para audiências cada vez mais diversificadas e exigentes.

Certa feita, o físico americano e Prêmio Nobel de Física em 1965, Richard Phillips Feynman (1918 - 1988), deu a seguinte opinião sobre matemática numa entrevista intitulada “The Smartest Man In The World” (“O Homem Mais Inteligente do Mundo” numa tradução livre, em 1979): “não acredito na ideia de que existam pessoas peculiares capazes de entender matemática e o resto do mundo é normal. A matemática trata de uma descoberta humana e não é tão complicada pois qualquer um pode entendê-la. Certa vez, tive um livro de cálculo que dizia: “o que um tolo pode fazer, outro também pode.” O que conseguimos descobrir sobre a natureza pode parecer abstrato e ameaçador para alguém que não a estudou, mas foram tolos que a fizeram e, na próxima geração, todos irão entender. Há uma tendência à pomposidade em tudo isso, para torná-la cada vez mais hermética." [3]

O livro ao qual Feynman fez referência é o próprio livro de Thompson sobre cálculo, que ele recebeu do pai dele ainda criança, Melville Arthur Feynman (1890 - 1946), um humilde caixeiro-viajante. Sobre a tal célebre entrevista em que se atribuía ao filho suprema inteligência, sua mãe, Lucille Feynman (nascida Phillips, 1895 - 1991), redarguiu: “nosso Richie? O homem mais inteligente do mundo? Deus nos ajude!”

Brincadeiras à parte, qualquer um(a) consegue apreciar a beleza de uma flor, mas não são todos(as), infelizmente, que conseguem perceber certas ideias matemáticas, por mais simples e curiosas que sejam. Embora o progresso científico, muito dele baseado em avanços matemáticos, tenha trazido ao mundo conforto, lazer, mais alimentos, saúde e longevidade, ainda enfrentamos diversas dificuldades como a fome, guerras, fake news e desigualdade, qualidades da tolice e intolerância.

Em tempos de certa irracionalidade por parte de alguns, e de tolices por parte considerável da humanidade, talvez seja o momento de encarar o ensino de matemática considerando conexões emocionais. A emoção é essencial para um aprendizado real, ainda que no caso da matemática tal ensino ocorra de maneira pouco ortodoxa.

A humanidade desde sempre se rendeu ao belo. Em razão disto, o aprendizado matemático deveria realçar a beleza do raciocínio. Talvez, em razão de um ensino melhor, onde o racional possa ser mediado pelo emocional, a humanidade produza uma geração mais livre e menos tola. Até porque o que um tolo pode desfrutar, outro também pode.

Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia

  1. S. P. Thompson. Calculus Made Easy, Being a Very Simplest Introduction to those beautiful Methods of Reckoning Which Are Generally Called by the Terrifying Names of the Differential Calculus and the Integral Calculus (“Cálculo Fácil, uma Introdução Muito Simples aos Belos Métodos de Cálculo que Geralmente são Denominados pelos Terríveis Nomes de Cálculo Diferencial e Cálculo Integral”). Macmillan and Co., Ltd, London (1910) 178 p.
  2. Este trata-se do problema clássico do corredor chamado paradoxo da dicotomia, estabelecido pelo filósofo grego Zenão de Eléia (c. 490 a.C. – 430 a.C). Ao responder, Thompson ilustrou a incompletude do problema com o que chamou de piada: um professor de matemática coloca um aluno em um lado de uma sala vazia e uma linda aluna na parede oposta. Ao seu comando, o menino caminha metade da distância em direção à menina, espera um segundo, depois percorre metade do caminho e assim por diante, sempre parando um segundo antes de reiniciar o trajeto. A garota diz: “Ha, ha! Você nunca vai me alcançar!” O menino responde: “É verdade, mas posso chegar perto o suficiente para quaisquer propósitos práticos.”
  3. R. P. Feynman. “The Smartest Man In The World” (“O Homem Mais Inteligente do Mundo”). Omni Magazine 8, May (1979) 96-99.