Opinião

Matemática gelada e refrescante

É curioso perceber que, ao derreter, cubos de gelo diminuem de tamanho e ficam com bordas arredondadas


Foto: Pixabay/Creative Commons

A matemática se manifesta de tantas e curiosas formas no dia a dia que nem sempre é notada. Um modo bastante refrescante de percebê-la é por meio da ingestão de qualquer líquido que tenha gelo. Para simplificar, vamos considerar um simples copo de água com gelo, mas poderia ser qualquer outra bebida.

É curioso perceber que, ao derreter, cubos de gelo diminuem de tamanho e ficam com bordas arredondadas num copo d’água. Ou seja, suas arestas e quinas desaparecem, tornando a fronteira (ou interface) entre as duas fases (água e gelo) cada vez mais suave.

Um dos pioneiros na correta elaboração e análise deste problema foi o físico e matemático austro-esloveno Jozef Stefan (1835 – 1893), nascido numa humilde vila do então Império Austríaco.

Extraordinário professor e pesquisador com ao menos 73 artigos de enorme folego em diversos ramos do conhecimento, e de família de etnia eslovena, publicou em 1889 um trabalho científico sobre dissolução enquanto vice-presidente da Academia Austríaca de Ciências, que na época havia sido fundada como Academia Imperial de Ciências, com sede em Viena.[1]

Tal artigo apresenta consideráveis dificuldades de análise, pois além de ser um problema de difusão de matéria, envolve uma transição de fase entre gelo (sólido) e água (líquido) que leva em conta transferência de calor numa fronteira móvel.

Dito de outra forma, à medida que o calor da água é transferido para o gelo (que apresenta temperatura menor), o gelo derrete e muda de fase, passando a ser líquido, e a fronteira se move. Eventualmente, com o equilíbrio térmico, o gelo desaparece – assim como sua fronteira.

A equação que rege o resfriamento, base da moderna teoria termodinâmica e que explica por exemplo como o café esfria, foi definida anonimamente em 1701.[2] Tempos depois, descobriu-se que tal trabalho foi da lavra de Sir Isaac Newton (1642 – 1727), matemático, físico, alquimista, teólogo e astrônomo inglês.

Em linguagem moderna, tal artigo dizia que “a taxa de mudança de temperatura de um corpo é proporcional à diferença de temperatura entre o corpo e sua vizinhança”.

O termo mais importante desta sentença refere-se a taxa, um conceito até então revolucionário e misterioso que explica, entre outras coisas, o resfriamento do cafezinho, e que partiu do próprio Newton ao elaborar uma ferramenta matemática chamada cálculo, mais precisamente o cálculo de derivadas.

A taxa do resfriamento do cafezinho (assim como de qualquer outro objeto aquecido) corresponde a variação da temperatura dividida pelo intervalo de tempo observado. Já as equações que regem a difusão foram estabelecidas pelo médico alemão Adolf Eugen Fick (1829 – 1901) em 1855.[3]

Voltando ao trabalho de Stefan, foram apresentadas duas equações fundamentais. Uma descreve a difusão do calor da água no estado líquido para o gelo, este bem mais frio. Ao encolher, o gelo faz com que a região da água se expanda, movendo a fronteira. Outra fórmula rastreia a mudança na interface entre água e gelo à medida que o processo de fusão ocorre.

A ciência progride com o avanço do conhecimento e a contribuição de novas gerações. Em 2021, os matemáticos Alessio Figalli (n. 1984, italiano) e Joaquim Serra (n. 1986, espanhol), ambos do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, junto com Xavier Ros Oton (n. 1988, espanhol), da Universidade de Barcelona, analisaram o problema de Stefan dando atenção à fronteira, considerando-a não lisa e sim rugosa.

Existe então um problema curioso na fronteira entre água e gelo, onde regiões algo pontiagudas e relativamente pequenas ao olho nu, denominadas singularidades, são cercadas de água em temperatura relativamente mais quente.

A troca de calor e matéria entre uma região pontiaguda de gelo, logo uma singularidade, e sua região líquida mais próxima, obedece ao seguinte regramento – no ponto exato de uma singularidade gelada, a temperatura é zero grau centígrado ou ainda Celsius, escala esta inventada pelo físico e astrônomo sueco Anders Celsius (1701 - 1744) em 1742.[4] Mas, à medida que se afasta das regiões pontiagudas de gelo em suas bordas, grosso modo, a temperatura da água aumenta muito rapidamente, por exemplo de uma unidade de temperatura numa dada distância. Ao se afastar duas unidades desta distância, a temperatura aumentara aproximadamente de quatro vezes.

Em linhas gerais, uma descoberta importante da área garante que, por mais que as arestas e quinas de um cubo por exemplo de gelo estejam afiadas, elas se suavizam muito rapidamente ao serem mergulhadas em qualquer bebida. Os detalhes técnicos de trabalhos literalmente na fronteira do conhecimento nem sempre são fáceis de serem digeridos, ou ainda, ingeridos! No entanto, é salutar que a ciência em geral, e a matemática em particular, lida muito bem com problemas da natureza, além de propor outros, completamente novos.

Para arejar, numa pausa ou outra de algum estudo, cientistas e matemáticos também precisam de algum líquido gelado e refrescante - como qualquer ser humano.

1. J. Stefan. “Über einige Probleme der Theorie der Wärmeleitung” (“Sobre Alguns Problemas da Teoria da Condução de Calor”). Sitz.-Ber. K. Akad. Wiss., math 98 (1889) 473 – 484 (em Alemão).

2. Anonymous. “Scala Graduum Caloris. Calorum Descriptiones & Signa” (“Uma Escala de Graus de Calor: Descrições e Padrões de Calor”). Phil. Trans. 22 (1701) 824 – 829 (em Latim).

3. A. Fick. “Ueber Diffusion” (“Sobre Difusão”). Ann. Phys. 170 (1855) 59-86 (em Alemão).

4. A. Celsius. “Observationer om Twänne beständiga Grader på en Thermometer” (“Observações sobre dois Graus estáveis num Termômetro”), Kungliga Svenska Vetenskapsakademiens Handlingar 3 (1742) 171 – 180 (em Latim).

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Marcio Luis Ferreira Nascimento é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia