Gina Marocci

Histórias (de beleza e dor) que a Praça da Piedade esconde - Parte 1

Uma história que começa na primeira metade do século XVII

Quem passa rapidamente pela Praça da Piedade, por certo não se dá conta de quanta história esse espaço pode contar. Afinal, ele é uma pequena ilha verde em meio ao trânsito denso e confuso das vias que o delimitam, mas esse espaço cravado no centro antigo de Salvador é ornado por exemplares arquitetônicos de várias épocas e que também nos ajudam a contar a história do lugar.

Uma história que começa na primeira metade do século XVII, quando estruturas de defesa da cidade foram erguidas fora dos seus muros, tanto pelos holandeses, que aqui se mantiveram por cerca de um ano (1624-1625), como pelos portugueses que necessitavam proteger a cidade de novas invasões, como a de 1638.

No mapa abaixo, analisado pelo professor Mário Mendonça de Oliveira, um dos maiores estudiosos da engenharia militar, estão registradas as estruturas de defesa, dentre elas as que nomeamos.

Em azul marcamos o caminho que sai da porta da cidade e segue para o sul, passa pelo mosteiro e vai até dois possíveis elementos de defesa: um baluarte, na região da atual Piedade; e trincheiras também próximas a essa região.


Planta das Fortificações de Salvador, cerca de 1638

Na segunda metade do século XVII vieram para a Bahia missionários franceses da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, que se instalaram em um terreno doado para a construção do Hospício de Nossa Senhora da Piedade, concluído na década de 1680.

Parece-nos estranho falar em hospício, pois nos vem logo a ideia de um lugar para tratamento de pessoas com distúrbios mentais, mas um hospício é um alojamento, e um lugar de acolhimento de viajantes e de pessoas pobres.

Em 1705, o Hospício foi entregue aos frades capuchinhos italianos, que fizeram várias reformas e ampliações entre 1709 e 1717.

O mapa abaixo, datado de 1715, indica o largo defronte ao pequeno Hospício da Piedade (Q). Podemos perceber que a região entre São Bento e a Piedade está com quarteirões bem definidos, já aparece a Igreja de São Pedro Velho (P), a que foi demolida no início do século XX.

Entre a Piedade e o forte de São Pedro, já haviam se estruturado algumas ruas dos bairros de São Raimundo e das Mercês (Z). A Porta de São Bento está indicada com a letra N.


Trecho da planta de Massé (1715)

No início do século XIX a igreja e o convento foram reformados segundo o projeto dos frades Ambrósio e Arcanjo, ambos italianos, que elegeram o Neoclássico como linguagem arquitetônica e artísitica. A cúpula foi construída nessa época e é revestida com azulejos italianos.

Diferentemente das outras igrejas de Salvador, a torre sineira foi construída aos fundos da lateral direita. Os seis altares laterais têm painéis pintados pelo soteropolitano José Teófilo de Jesus, um dos mais importantes pintores sacros da Bahia.

Na pintura do alemão Johann Moritz Rugendas, que esteve no Brasil entre 1822 e 1825, vemos o novo templo e o largo à sua frente, apenas um grande terreiro, sem cuidado e sem forma.

 


Cópia do quadro de Rugendas (1835), José Teófilo de Jesus e painel da Sagrada Família

A praça abrigou até o início do século XIX a forca utilizada em alguns momentos para cumprimento de sentenças de morte. Assim aconteceu com os conjurados da Revolta dos Alfaiates (1798-1799).

Casas invadidas, pessoas torturadas e pelos manifestos colados nos muros da cidade, 699 pessoas estavam envolvidas com os líderes dessa insurreição, mas apenas 49 foram presas, em sua maioria gente simples: alfaiates, sapateiros, soldados.

Os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas e os alfaiates João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos Santos receberam a pena capital.


O enforcamento dos conjurados no largo da Piedade (8/11/1799)

No mapa de Carlos Weyll (185-) vemos o largo da Piedade e no seu entorno quarteirões bem definidos.

Em vermelho vemos uma grande rua que se tornaria um trecho da Avenida Sete de Setembro, mas antes dela recebia nomes diferentes em cada pedaço. Assim, da esquerda para a direita, temos as ruas de São Bento, de São Pedro, do Rosário e das Mercês, portanto, cada trecho recebia o nome da edificação mais importante e, neste caso, igrejas e conventos.

Em azul, a Rua da Lapa (mais uma denominação em função de um convento) e em amarelo, a Rua Direita da Piedade. Em 1856, a Companhia do Queimado inaugurou o chafariz da Cabocla (hoje, no Largo dos Aflitos) para oferta de água potável.

Na ilustração de 1880 vemos o chafariz com os postes de iluminação e gradil de proteção e a praça parece não ter tratamento paisagístico. Já no cartão postal colorizado, datado de 1905, podemos perceber que a praça recebeu arborização, bancos e canteiros definidos.


Trecho do mapa de Weyll, fotografia da praça com o chafariz da Cabocla

No início do século XX foram realizadas as últimas reformas no conjunto, que alteraram a fachada para a feição atual. Alguns detalhes ornamentais foram inseridos acima das vergas das portas e das janelas e um nicho com a estátua de Santo Antônio foi instalado no frontão.

Em 1931 foi retirado o chafariz da Cabocla e construiu-se a fonte luminosa atual, com estátuas de bronze trazidas da França.


A Praça da Piedade na primeira década do século XX e cerca de 1930

No próximo texto falaremos sobre os edifícios no entorno da Praça da Piedade e mais sobre a história dela.

..:: ::..

Para saber mais

OLIVEIRA, M. M. de. As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça do Brasil. Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2004.

REIS, J. J. Há duzentos anos: a revolta escrava de 1814 na Bahia. Topoi, 15 (28), jun. 2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/topoi/a/CCkcVFtgRYrPLfKYSmyrGDQ/?lang=pt>. Acesso em: 25 nov. 2022.

SALVADOR. Atlas Parcial. Salvador, BA: Prefeitura Municipal de Salvador, 1955.