Gina Marocci

A história do Passeio Público de Salvador - I

Para contar a história do Passeio Público de Salvador nós precisamos entender a importância desse espaço numa cidade colonial, uma sociedade com severas restrições às atividades coletivas e em espaços públicos.

Na Europa, os primeiros jardins públicos datam do século XVII, quando as maiores cidades dela construíram os chamados passeios ajardinados. Assim, em Berlim (1647) construiu-se um lugar arborizado para passeio, que ligava a cidade a um parque (o famoso Tiergarten), e em Amsterdã (1682), uma região alagadiça foi transformada em um grande jardim público.

Outras cidades também ergueram seus espaços públicos ajardinados, que eram enriquecidos com esculturas, chafarizes e bancos instalados para descanso dos frequentadores.

No século XVIII, esses espaços consolidaram-se como áreas para ver e ser visto, para contemplar espécimes exóticas trazidas das colônias espalhadas por todos os continentes.

Esses jardins públicos eram frequentados por pessoas elegantes, cujas roupas denunciavam a hierarquia social existente pelos tecidos e modelos apenas permitidos para determinado grupo.

Podiam ser vistos nesses espaços membros da nobreza e da burguesia comercial e financeira, que conquistava sua promoção social por meio de aquisição de terras, cargos e casamentos com membros da aristocracia, e juntos assistiam a apresentações musicais, festejos cívicos, jogos e outras atividades, construindo um modo de vida em sociedade cheio de gestos e etiquetas que afastavam toda a espontaneidade das relações sociais, tornando o palco e a rua intimamente ligados.

O Passeio Público foi o primeiro jardim público de Lisboa. Construído em 1764, por determinação do Marquês de Pombal, teve como autor do projeto o arquiteto Reinaldo Manuel, que fazia parte da Casa do Risco, escritório responsável pelo projeto de reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755.

Era uma larga alameda, com muitas árvores, muros revestidos de hera, flores, numa atmosfera que se descolava da antiga cidade e buscava uma sincronia com novos costumes, principalmente vindos da França.


Passeio Público de Lisboa em ilustrações do início do século XIX

O Passeio Público, no entanto, não era para todos nem para muitos. O jardim era fechado aos mendigos, aos vagabundos, aos ciganos, aos escravos negros e aos vadios. Era um espaço murado com portões para controlar o fluxo das pessoas.

Em 1826, o Passeio foi remodelado pelo arquiteto Malaquias Ferreira Leal, que substituiu os muros por grades de ferro, também projetou lagos e cascatas para entretenimento do público.

E como foram criados esses jardins públicos no Brasil? Bem, a história começa com a criação dos jardins botânicos. A Academia Científica do Rio de Janeiro, que foi fundada em 1771, reunia intelectuais cariocas e estudiosos das ciências naturais que tinham muito interesse pela flora brasileira; já à Coroa Portuguesa interessava descobrir o valor econômico e a possibilidade de concorrer com outras colônias tropicais no mercado internacional com produtos da nossa flora. Inspirada no Passeio Público de Lisboa, a Academia organizou um horto botânico muito antes da Carta Régia de 1796, na qual D. Maria I determinava a criação de jardins botânicos em algumas cidades brasileiras.

O Passeio Público do Rio de Janeiro foi o jardim público construído no governo do Vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Sousa, entre 1779 e 1783, na região da lagoa do Boqueirão da Ajuda (hoje, entre a Lapa e a Cinelândia), na qual se despejavam dejetos da população. Então, resolveu-se aterrá-la e para a instalação do jardim foram plantadas árvores, para garantir aos usuários muita sombra, arbustos e flores; o Mestre Valentim da Fonseca e Silva ficou responsável pelas esculturas, chafarizes e um terraço de onde se avistava o mar.

Nele ocorreram, em 1786, as festividades pelo casamento de D. João com D. Carlota Joaquina, contudo, é interessante notar que este espaço, restrito a algumas camadas da sociedade, vai abrigar uma comemoração outrora realizada em ruas e praças, ou seja, para todos.

Além da obrigatoriedade do festejo, costume rigidamente seguido na colônia, foi eleito um novo referencial, ou seja, oficialmente, o Passeio Público deveria ser palco de manifestações recreativas coletivas.


A lagoa do Boqueirão, o projeto do Mestre Valentim e a entrada do Passeio Público

Em 1808 foi inaugurado o Jardim de Aclimação com o objetivo de aclimatar espécies exóticas da Índia como a noz-moscada, a canela, o cravo-da-índia e a pimenta do reino e outras especiarias vindas do Oriente. Recebeu o nome de Real Jardim Botânico em 1822, quando foi aberto à visitação pública. Na primeira metade do século XIX, contudo, nem o Passeio Público nem o Jardim Botânico eram efetivamente espaços de recreação, o que fez prevalecer o uso incentivado por festividades oficiais.

O Jardim Botânico de Belém foi instituído em Carta Régia em 1798, e outra carta determinou o estabelecimento de jardins botânicos em São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

Em Belém, os trabalhos iniciaram em 1798, sob a orientação do francês Michel Grenouiller, que instalou sementeiras das madeiras de construção nativas.

Em Minas Gerais, o jardim botânico foi instalado em 1800, em Vila Rica, atual Ouro Preto.

Os jardins botânicos de Salvador, São Paulo e Olinda não foram implantados no século XVIII porque os governadores não conseguiram comprar terrenos para este fim. Só nas duas primeiras décadas do século XIX é que essas três cidades tiveram os seus jardins.

Em Salvador, o jardim foi criado com o nome de Passeio Público pelo Conde dos Arcos (1810-1818). O Jardim Botânico de São Paulo só foi criado em 1825, e o de Olinda parece ter sido instituído após a vinda da Corte ao Brasil.

O destino de muitos jardins coloniais foi a decadência ao longo do século XIX. Em Olinda e Ouro Preto observou-se isso. Mesmo o importante Jardim Botânico de Belém, que distribuía mudas para toda a colônia, sofreu um processo de decadência.

O Jardim Botânico de São Paulo foi destinado à diversão pública desde 1825, sendo que a Assembleia Legislativa mudou o seu nome para Jardim Público em 1838 e, finalmente, ficou sob a custódia da municipalidade em 1893, quando foi criado um viveiro de mudas para a arborização da cidade.

Qual o significado de uma praça, um largo, um espaço de uso público para a sociedade colonial brasileira? E de um Passeio Público? Sabe-se que as praças, largos e adros das igrejas abrigavam inúmeras atividades: serviam de mercado, manifestações religiosas e civis, como procissões, comemorações de casamentos reais, funerais, execuções, torneios, touradas, teatro ao ar livre, convocação da população para a divulgação de determinações do governo, exercícios militares e, também, como espaço de denúncia, de rebelião.

A utilização desses espaços possibilitava o contato com pessoas de todas as camadas da sociedade, independentemente de cor ou de situação econômica. É importante lembrar que as festas religiosas e algumas comemorações oficiais exigiam a presença da população, havendo, inclusive, punição para quem não justificasse a ausência.

No contexto colonial, onde caberia esse tipo de lazer, que se identifica não apenas com a contemplação, mas com o ócio? Por que a apatia em aproveitar um espaço, reconhecido por viajantes estrangeiros da época como belo e agradável?

Talvez a resposta esteja na fragilidade das estruturas urbanas, tão precárias, ou talvez esteja na própria visão de mundo do homem colonial. Porém, o mesmo acontecia com o Passeio Público de Lisboa que, segundo um viajante do final do século XVIII, era mais utilizado pelas senhoras estrangeiras e, aos domingos, algumas senhoras da classe média. As ricas senhoras portuguesas por lá não apareciam.

Em nosso próximo texto faremos uma viagem à história do Passeio Público de Salvador.

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Para saber mais

MAROCCI, G. V. P. Salvador, século XVIII: a emergência de novos padrões urbanísticos. 1996. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.

SEGAWA, H. M. Ao Amor do Público. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1996.