Artes Visuais / Cidade

Casal de Salvador cria casa-museu com arte produzida nos subúrbios

Acervo já tem 20 mil peças de artistas populares

Salvador é conhecida por se dividir em Cidade Alta e Cidade Baixa. A classificação data de um período em que a capital baiana era o centro político da colônia e ainda é usada por algumas pessoas, principalmente o segundo nome. No entanto, com a mudança intensa da geografia da cidade, as periferias se expandiram. Uma das mais antigas é o Subúrbio Ferroviário, que tem esse nome por ser um conjunto de bairros ligados por uma estrada de ferro.

É em um desses bairros, Plataforma, que fica o Acervo da Laje. A casa-escola-museu encabeçada pelos educadores José Eduardo, 47, e Vilma Santos, 54, surgiu em 2010, quando Zé, como costuma ser chamado, fazia doutorado em Saúde Pública, no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.

A ideia começou de maneira simples. Zé pesquisava a repercussão de homicídios entre jovens da periferia da capital baiana e Vilma dava aulas para estudantes do ensino fundamental. Um professor dele pediu que a turma pesquisasse quais belezas o subúrbio de Salvador guardava. “Porque até então, a maioria dos olhares era sobre a questão da vulnerabilidade, da miséria e das situações de violência”, lembra. Então, eles começaram a mapear artistas locais e fazer imagens do território.

Como o trabalho foi ganhando corpo, ele conta que o passo seguinte foi reunir obras de arte. “A ideia era ter materialidade desses artistas, porque até então, o território era marcado pela falta”, comenta. Os dois começaram, juntos com outros apoiadores locais, a ir atrás dessas peças. A primeira obra a fazer parte do Acervo foi uma máscara azul de Iemanjá, do artista Otávio Bahia, que morava no bairro de Fazenda Coutos. “A gente começou a pesquisar outras peças dele no Mercado Modelo e todos os vendedores diziam que não se achava mais, mas fomos encontrando algumas”, relembra Zé. 

“A gente fez um mapeamento de artistas e um indicava outro, dentro do subúrbio mesmo. Começamos a fazer entrevistas, conhecê-los, saber como tinha sido o começo dos trabalhos deles”, conta Vilma. Então o casal, além de buscar artistas, começou a rodar o subúrbio em busca das obras.

Desde então, eles passaram a colecionar, não para eles apenas, obras de artistas de Plataforma e dos outros bairros vizinhos. A ideia foi crescendo e alcançou outros bairros periféricos de Salvador e do Brasil. Atualmente, o Acervo da Laje conta com mais de 20 mil peças entre esculturas, azulejos, quadros, fotografias, pedaços de embarcações… “Isso tudo a gente leva para as exposições, e cada peça mostra que a gente pisa num território carregado de ancestralidade”, afirma Zé.

O Acervo da Laje enquanto espaço de visitação surgiu em 2011, quando o casal começou a abrir a laje da casa dos dois para que moradores da região pudessem conhecer tanto os artistas locais quanto suas produções. Ainda no mesmo ano, eles expuseram parte do acervo em uma casa no bairro de Plataforma.

Em 2014, o casal e seus companheiros de trabalho tiveram a primeira experiência de expor em circuito de arte central, quando participaram da Bienal da Bahia. “Depois daí, não teve como fechar mais”, brinca Zé. E a coleção foi aumentando: máscaras em madeira e alumínio, peixes, esculturas, uma biblioteca de manuscritos e livros raros sobre futebol, poesia, sobre a Bahia e arte, hemeroteca, CDs e discos, croquis, conchas… “E história com azulejos, porcelanas, tijolos de olarias antigas, começando a mostrar o passado do território de uma forma até então não pensada”, aponta. 

Um dos pontos importantes da ideia por trás do Acervo é também deslocar o olhar do público para a produção artística feita no subúrbio e por pessoas “suburbanas”, além de promover o acesso aos moradores de bairros periféricos a essas obras. “Os museus de Salvador estão todos no centro e guardam peças que contam a história da cidade, mas a gente não se vê lá”, afirma Zé.

Mas o Acervo da Laje se expandiu e hoje também ocupa galerias em museus considerados centrais, como o próprio Museu de Arte Moderna da Bahia, onde realiza uma ocupação artística com exposição e oficinas. A ideia, segundo os dois, é ocupar, levar as pessoas da periferia para estes espaços, conversar sobre a territorialidade do subúrbio, sua história. “Resgatar a autoria de nossas narrativas”, frisa o professor. 

Peças do Acervo também puderam ser vistas do MAM do Rio de Janeiro, na exposição A Memória é uma Invenção. E, em setembro, devem ser vistas em uma exposição que celebrará os 40 anos do Sesc Pompeia. 

De fato, um dos trabalhos do Acervo é lutar para que os museus e espaços artísticos elitizados sejam permitidos a pessoas das inúmeras periferias espalhadas pelo País. Seja pela presença enquanto artista expositor, seja como público espectador. Quando as obras saem das duas casas ocupadas pelo Acervo, o ponto de partida já é horizontal, como contam os professores. “Os curadores vêm aqui, eles fazem como todo mundo: pegam o barco para chegar aqui, a gente dá uma volta com eles pelo bairro, tem a hora do cafezinho”, diz Vilma.