Opinião

Sei que nada sei não

A sabedoria popular baiana simplificou a sentença para um singelo "sei não"

Já dizia o grande filósofo e lógico grego Sócrates (c. 470 - 399 a. C.): “só sei que nada sei, sabendo que nada sei, sei mais do que não sabe que nada sabe”. A sabedoria popular baiana, descendente direta dos portugueses, que de alguma forma apreenderam parte importante da lógica grega, simplificou a sentença para um singelo “sei não”.

O dialeto baiano ou baianês trata-se de um falar muito particular e autêntico do português brasileiro que não se restringe apenas a Bahia, atingindo outros estados ao norte, oeste e sul. Foi um dos primeiros dialetos eminentemente brasileiros. Sua formação deve-se a influência de Salvador, e seu importante porto, o mais relevante do hemisfério sul até o século XIX. A cidade abrigava, portanto, a maioria das instituições administrativas do Brasil no período colonial, e por isto sempre sofreu influências de diversas ondas migratórias e contatos com diversos povos, entre europeus, asiáticos, indígenas e mesmo africanos.

Tal proximidade de diversas prosódias, ou seja, tipos de fala, sotaques, ritmos, acentos, permitiu misturar tudo em novo amálgama, de certo modo poético. Desta forma, por ser a cidade a primeira sede do Brasil Colônia em 1549, com características iniciais de fortaleza, mas que rapidamente transformou-se em metrópole, destacou-se ao criar identidade própria, especialmente no modo de falar. Tal atitude peculiar trata de um dos elementos centrais da identidade baiana que, além de outros aspectos culturais, passou a ser motivo de orgulho para muitos baianos.

Pode-se citar a interjeição ôxe, que é uma abreviação de oxente, que também é uma simplificação de ô gente, perdendo o significado original e hoje sendo utilizado para situações de não entendimento.

Não à toa o magnífico poeta, escritor, cantor e produtor brasileiro Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (n. 1942), nascido na Bahia, nos brindou com a canção “Língua” (1984), ao afirmar: “Minha Pátria é Minha Língua”. Na verdade, esta é uma frase de um poema no “O Livro do Desassossego” de Bernardo Soares, heterônimo do poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor e crítico literário português Fernando António Nogueira Pessoa (1888 - 1935).

A inversão na colocação da partícula negativa “sei não” em vez de “não sei” é mais uma extraordinária invenção gramatical da cultura baiana a influenciar inclusive outros dialetos nordestinos. Em termos históricos, as raízes da lógica remontam aos tempos pré-socráticos e a seus seguidores, Platão (c. 428 - c. 348 a.C.) e Aristóteles (384 - 322 a.C.). Suas regras racionais são bem simples, fundamentando-se na matemática, pois toda estrutura linguística deve ter regras a serem obedecidas para que seus enunciados tenham sentido e validade.

Por exemplo, existe em lógica o princípio da identidade, que diz que certa coisa é. Considere a sentença: “A é verdadeiro”, onde o verbo denota tal identidade. Logo, “A” não pode deixar de ser verdadeiro, algo identificado como princípio do terceiro excluído. Um último princípio rege que a identidade de algo não pode ser ela mesma e não ser ao mesmo tempo. Um modo simplificado de dizer “não” é por meio de símbolos como o til (“~”). Logo, pode-se escrever sucintamente “~A é falso”.

Enunciados linguísticos são permitidos a partir de tais simples regras, do tipo: “se A é verdadeiro”, “~A é falso”. E “se A é falso”, “~A é verdadeiro”. Parafraseando o modo de falar baiano, se “sei não é verdadeiro”, “não sei não é falso”. E se “não sei é verdadeiro”, “não não sei é falso”. Lógico!

Cabe apenas uma ressalva sobre uma eventual presença de vírgula. Num particular caso onde se inicia com “não, não sei”, isto é diverso da dupla negação “não não sei”. Detalhes estes de língua e lógica a deliciar poetas em suas canções ao caetanamente “criar confusões de prosódia” e “uma profusão de paródias”. Já dizia o grande poeta em sua canção: “o que quer, o que pode esta língua?”

Toda língua consiste numa das maiores identidades de um povo, em especial a maior referência de um sentimento, pois é por meio dela que nos expressamos. Se a língua portuguesa ficou conhecida como a “Última Flor do Lácio”, “Inculta e Bela” nos ditos do jornalista, contista, cronista e poeta brasileiro Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (1865 - 1918), o modo de falar baiano é a semente a brotar uma nova identidade nacional, genuinamente brasileira.

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Caetano Veloso | Língua