Esses primeiros meses de aulas presenciais têm sido difíceis para o menino Rafael, de 7 anos, no 2.º ano do ensino fundamental de uma escola estadual do Itaim, zona leste de São Paulo. Ele reclama de falta de ar e coração disparado. Pergunta sempre à professora quando a aula vai terminar. Às vezes, morde o dedo indicador; não sangra, mas ficam marcas dos dentinhos na pele.
Surgiram problemas gastrointestinais, com traços de sangue no cocô. Quando a mãe, Paula, chega para buscá-lo, percebe o filho segurando as lágrimas. Ele só chora com a mãe. Em casa, fica quieto no sofá. Já foram três atestados médicos, de uma semana cada, por crise de ansiedade identificada no pronto-socorro. Rafael começou a visitar um psicólogo.
O sofrimento de Rafael e Paula (os nomes de pais e alunos usados na reportagem são fictícios) ilustra as dificuldades emocionais que pais e educadores estão percebendo nos estudantes, das redes pública e privada, após praticamente dois anos de aulas remotas ou híbridas por causa da pandemia. O mesmo fenômeno também é observado fora do Brasil – nos Estados Unidos, o novo cenário tem chamado a atenção de autoridades.
O Brasil foi um dos países que passaram mais tempo com as escolas fechadas e muitos gestores foram criticados por priorizar bares e shows na reabertura do comércio e dos serviços em fases de redução de contágio do coronavírus. Especialistas afirmam que a diminuição do convívio social, a não ser de forma virtual, e o prolongado uso de telas são o pano de fundo dessas dificuldades. Parte das crianças desenvolveu fobia ou insegurança sobre a imprevisibilidade de interações face a face. Para os mais novos, o contato direto tem sido quase uma novidade.
As circunstâncias vividas em casa – como adoecimento de parentes, desemprego, dificuldades financeiras e até a violência doméstica – também estão entre as hipóteses para explicar os prejuízos à saúde mental. Além disso, estudantes e professores voltam aos colégios com a missão de recuperar o tempo perdido e superar os prejuízos de aprendizagem no período de classes remotas. Por outro lado, a maioria dos especialistas aponta que esse é um período de transição.
Sofrimento coletivo
Em Pernambuco, a angústia virou um drama coletivo no início de abril. Com falta de ar, tremor e crise de choro, 26 alunos da Escola de Referência em Ensino Médio Ageu Magalhães, zona norte do Recife, foram atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Uma estudante teria passado mal e desmaiado e os outros começaram a chorar. Conforme os médicos, os jovens foram atendidos no local após crise de ansiedade generalizada com “sudorese, saturação baixa e taquicardia”. Não houve hospitalização.
Neuza Pontes, gestora da Gerência Regional de Educação Recife Norte, conta que nunca havia presenciado um episódio assim em seus 29 anos de experiência. “Especialistas disseram que é possível uma histeria e uma crise de ansiedade coletiva. Foi um efeito dominó, como um contágio”, compara. As aulas foram retomadas no dia 11, mas nem todos os estudantes voltaram.
Os problemas dos alunos já aparecem nas estatísticas. A Secretaria da Educação de São Paulo e o Instituto Ayrton Senna divulgaram neste ano uma pesquisa em que sete de dez estudantes da rede pública relataram sintomas de ansiedade e depressão em níveis altos durante a crise da covid-19. O dado não aponta um diagnóstico médico fechado, mas sinais que exigem maior atenção.
De 642 mil alunos do 5.º e 9.º ano do fundamental e da 3.º do médio que participaram do estudo, mais de 440 mil relataram problemas de saúde mental. “Há inúmeras variáveis envolvidas, pois se trata de um contexto multifatorial. Mas, a partir desse diagnóstico, a gente compreende que os estudantes estão precisando de ajuda”, diz Catarina Sette, especialista em educação integral do Instituto Ayrton Senna.
O problema também se revela em amostras menores. No Centro Educacional Pioneiro, na Vila Clementino, zona sul paulistana, os educadores já realizaram este ano 210 atendimentos socioemocionais para os alunos do fundamental II (10 a 14 anos). A quantidade já se aproxima dos 250 apoios – total do ano passado. “São questões que já existiam, mas percebemos que elas estão aparecendo em número maior”, afirma o coordenador pedagógico, Mario Fioranelli Neto, que atribui o aumento a “uma desconexão do aluno com a escola no retorno das atividades presenciais”.
O psiquiatra Rodrigo Bressan, professor de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vai além. “Não voltamos para os mesmos lugares após a pandemia. Para os estudantes, é uma outra escola”, afirma. “O desafio é parecido com o do início da pandemia, de sair da zona de conforto. Da mesma forma que foi ansiogênico (capaz de produzir ansiedade) entrar na pandemia, sair também é”, diz o autor do livro Saúde Mental na Escola – o que os educadores precisam saber.
Mariana, aluna de 12 anos de um colégio particular de São Paulo, já havia demonstrado algumas crises de ansiedade em casa na pandemia. No primeiro dia das provas trimestrais, no mês passado, ela começou a chorar e a professora percebeu que ela não parava de tremer. A menina saiu da sala. A mãe foi chamada às pressas e a aluna do 7.º ano do fundamental foi para casa. Durante toda a semana de provas, ela não foi mais à escola.
Os educadores entraram em contato com a família. Depois de muita conversa, em que tentaram tirar o peso emocional da avaliação, a jovem fez as provas na segunda chamada. O desempenho da garota foi ruim, mas fez as provas, o que foi um avanço na visão dos professores.
Depois dessa crise, ela ficou ansiosa mais duas vezes e pediu para ir embora mais cedo. Foi atendida. Hoje, a menina continua o acompanhamento psicológico que fazia durante a pandemia.
Já Tiago ficou mais triste e isolado. O aluno de 11 anos de uma escola privada na zona leste tinha muitos amigos, com a casa cheia no fim de semana. No isolamento, tudo ficou vazio. A mãe, uma professora de 38 anos, tentou amenizar o problema comprando um videogame. Até funcionou por um tempo, mas hoje ele só quer jogar e concentrou todo o vínculo com amigos nas disputas online. Quando volta do fim de semana ou feriado, ele fica com coração acelerado e sente dor de cabeça. “Ele diz que a pandemia roubou a infância dele”, conta a mãe.
Obviamente, existem gradações nessa retomada. Algumas dificuldades são de readaptação. É o caso da educadora Erika Rohrbacher, mãe do Pedro, de 15 anos, do João, de 13, e do Miguel, de 9, todos alunos do Colégio Stocco, em Santo André, na Grande São Paulo. Ela respira aliviada ao identificar que os três estão se adaptando bem. Ela ouviu apenas queixas do João sobre o barulho na sala de aula – durante a pandemia, eles ficavam sozinhos, estudando em casa.
A educadora e colunista do Estadão Rosely Sayão avalia que as dificuldades socioemocionais envolvem a sociedade toda, com a retomada das atividades presenciais, mas crianças e adolescentes têm menos filtros do que os adultos e, por isso, expressam mais suas dificuldades. Tem opinião semelhante a educadora Luciene Tognetta, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que já esperava uma “pandemia emocional”. Ela comparou a pressão sobre as escolas e professores pela rápida adaptação pós-quarentena ao drama dos hospitais e médicos que sofreram no início da crise sanitária.
Novas rotinas
Diante do cenário de desafios, que os educadores classificam como “fase de acomodação” ou “readaptação”, alguns colégios criam novas rotinas e aprimoram os programas já existentes nessa áreas. O Colégio Dante Alighieri, nos Jardins, região central de São Paulo, fez uma semana de integração para acolher os alunos que só se conheciam pelas telas e também os novatos. Contratou ainda um educador físico e um recreador para mobilizar alunos na hora do intervalo em torno das brincadeiras em grupo e em espaços livres.
“É uma maneira para que eles se desvinculem das telas dos celulares. A ideia é que as crianças recuperem as habilidades de brincar em grupos maiores”, explica a educadora Miriam Guimarães, coordenadora de Orientação Educacional do colégio.
Algumas escolas adotam mudanças para o período de provas, momento de maior tensão para os alunos – afinal, foram quase dois anos com testes virtuais. A Escola Carandá Educação, de Mirandópolis, zona sul, passou a intercalar com as provas atividades que estão fora do currículo tradicional, como oficinas de dança e jogos de capoeira. “São momentos de respiro, com assuntos que eles próprios sugerem e que os professores oferecem. Não são assuntos curriculares clássicos”, diz a diretora Ana Cristina Dunker.
Nas escolas estaduais, os educadores pretendem aproximar alunos e professores dos profissionais de saúde mental. Ana Zuanazzi, especialista em educação integral do Ayrton Senna, destaca a necessidade de um trabalho intersetorial, entre os campos de saúde, educação e assistência social.
Secretária da Educação paulista, Renilda Peres afirma que cerca de 100 psicólogos vão atuar presencialmente nas Diretorias Regionais de Ensino a partir de junho. O Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar (Conviva) prevê o atendimento nas escolas dos alunos e, em alguns casos, dos professores.
Em Pernambuco, a Secretaria da Educação promoverá encontros regulares dos alunos e suas famílias com psicólogos. A medida deve ser adotada em toda a rede estadual, não só na unidade onde houve o surto coletivo. Além disso, estuda-se incorporar a disciplina Educação Socioemocional ao currículo do ensino médio. “Sentimos a necessidade de uma ação forte com os professores para trabalhar as habilidades socioemocionais dos alunos”, justifica Neuza, a gestora regional de educação. Os alunos que já têm histórico de ansiedade foram encaminhados para acompanhamento médico.
Olho no olho
Para as famílias, saber como agir também é tarefa difícil. “Mesmo com a ligação afetiva, os pais devem tentar se distanciar para entender o desafio”, orienta Bressan, coordenador do programa Cuca Legal, com foco na saúde mental nas escolas. “Não ajuda muito reclamar da escola, por exemplo, e olhar só as dificuldades”, continua.
A educadora Ana Cristina Dunker avalia que um caminho importante é que os pais tragam os sofrimentos dos filhos para a escola procura uma solução coletiva não só individual. É uma parceria. "É importante tentar aprender na relação com os outros fazendo uma grande conversa. Não tem crescimento sem desafio, mas ele não precisa ser conquistado com sofrimento agudo", completa.
A psicóloga Adriana Severine afirma que é importante conversar com os filhos – sem interrompê-los ou ficar olhando mensagens no celular durante o papo. “Uma conversa olho no olho vai mostrar como os pais podem interferir, seja no medo do vírus ou na dificuldade de se relacionar”, diz.
Preste atenção
-- Alterações de comportamento, como crises de choro e acessos de raiva, também merecem atenção;
-- Cansaço, falta de energia e de ânimo;
-- Queda da concentração (ficar ‘desligado’' muitas vezes);
-- Excesso de tempo em frente às telas (computadores, celulares e televisão);
-- Frequência nas aulas (muitas faltas devem começar a preocupar);
-- Converse com a professora para saber como a criança está indo na escola;
-- Exagero nos padrões alimentadores (comer muito ou passar horas sem comer);
-- Pergunte se os amigos são reais ou virtuais – o ideal é ter uma maioria significativa de amigos que podem ser definidos como ‘concretos’;
-- Procure um profissional de saúde mental (psicólogo ou psiquiatra).
-- Fique atento à qualidade do sono, se seu filho acorda muitas vezes à noite e ou tem dificuldade para voltar a dormir;