O Entrudo (do latim, introitus, que significa entrada) é um festejo popular cuja origem é bem anterior à Idade Média da Europa. No entanto, os italianos e franceses utilizavam a palavra carnevale e carnaval, enquanto os espanhóis o chamavam de antruejo.
Ele começou a ser festejado em Portugal já no século XIII, mas como um anúncio da chegada da Quaresma, sem uma conotação de festa popular, no entanto, no século XVI já havia se tornado uma festa de rua, em que os participantes sujavam os rostos com carvão ou com farinha, lançavam uns nos outros farinha, baldes de água, limões de cheiro, luvas cheias de areia, e usavam máscaras e fantasias.
Os festejos ocorriam nos três dias que antecediam a Quarta-Feira de Cinzas, início da Quaresma, período de 40 dias em que os cristãos católicos não comiam carne, faziam jejuns e penitências como preparação para a Páscoa.
O Entrudo, então, era uma boa oportunidade para os exageros, tanto com a comilança como com as troças e paródias. A culinária de cada região era servida de modo farto e havia grupos musicais e sátiras políticas e socias.
No entanto, nem todas as brincadeiras eram consideradas de bom gosto, como esses versos de 1844 relatam: O entrudo divertido é/ às vezes de bom gosto/ porém n’outras entretido/ anda em causar desgosto./ Começa por zombaria/ e passa a derramar/ sangue té por tirania/ que se deve evitar.
O autor dos versos ainda faz uma advertência aos foliões: Evita as apalpadelas dele, e os estortegões [não encontrei o significado]/ que costuma dar aquelas/ que lhe dão ocasiões. E continua: Do entrudo o melhor jogo/ temporalmente falando/ é o comer que ao fogo se coze/ em paz ir papando.
Farinha, como também bisnagas com água, ovos, limões e laranjas de cheiro (bolas de cera com água de cheiro), líquidos de toda espécie, como a urina, eram lançados sobre as pessoas, tudo isto era comum, mas quase sempre acabava em briga, fato que no início do século XIX, levou a Intendência da Polícia de Lisboa a proibir todos os jogos do Entrudo em observância dos decretos de 6 de fevereiro de 1734 e de 4 de fevereiro de 1735, nos quais era prevista a prisão daqueles que insistissem em realizar ou participar dos folguedos.
O Entrudo foi trazido para o Brasil pelos portugueses e, aqui, dele já se tem notícia desde o século XVII por meio de uma postura (lei municipal) da Câmara do Rio de Janeiro, que proibia, a todas as pessoas que participassem, pelo menos nas ruas, dos festejos. Contudo, mesmo com as proibições, as festividades ocorriam de modo privado nas residências, quando se reuniam parentes e amigos, e nas ruas, onde homens livres e escravos podiam manifestar-se, mas sem nunca se perder o distanciamento entre os grupos sociais.
Nas residências, as mulheres ocupavam-se da organização dos festejos, desde a fabricação das bolas de cera até a escolha dos quitutes que seriam degustados.
Entrudo numa residência no Rio de Janeiro (Earle, c. 1822)
No ambiente familiar era comum a brincadeira entre homens e mulheres, familiares e conhecidos. Apesar da rigidez dos costumes das famílias em relação à participação das mulheres em eventos sociais, nas brincadeiras do Entrudo era permitido o contato entre rapazes e moças, quando eles lhes atiravam os limões ou as laranjas, e elas buscavam meios de mostrar quem eram os seus prediletos.
Nas casas das famílias mais abastadas não se fazia festejos com os escravos, mas havia brincadeiras e as moças ficavam nas janelas jogando água nos transeuntes.
As mesas eram fartas e os exageros também, como bem coloca Gregório de Mattos em um soneto: Filhós, fatias sonhos, mal-assadas,/ galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,/ os perus em poder do pasteleiro./ Esguichar, deitar pulhas, laranjadas,/ enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,/ gastar para comer muito dinheiro,/ não ter mãos a medir o taverneiro./ Com réstias de cebolas dar pancadas,/ das janelas com tanhos dar nas gentes,/ a buzina tanger, quebrar panelas,/ querer em um só dia comer tudo,/ não perdoar arroz nem cuscuz quente,/ despejar pratos, e alimpar tijelas,/ estas as festas são do Santo Entrudo.
Após a labuta do dia, os escravos saíam às ruas em grupos mascarados chamados de cucumbis, e sujavam-se uns aos outros com ovos, farinha de trigo, polvilho, cal, goma, laranja podre, restos de comida, pintavam os rostos de branco e vestiam roupas velhas dos brancos, imitando-os de maneira jocosa.
Entrudo nas ruas do Rio de Janeiro (Debret, 1823)
Os cocumbis tocavam instrumentos musicais, cantavam e dançavam (Figura 3) e são considerados por Pierre Verger como os precursores dos blocos e cordões tão presentes nos carnavais do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife a partir da segunda metade do século XIX.
Marimba, o desfile do domingo do Entrudo após o meio-dia (Debret, c. 1823)
A partir de 1830, o Entrudo começou a ser perseguido até pela imprensa, por quem era considerado uma forma bárbara e incivilizada de manifestação popular. No Rio de Janeiro, em meados do século XIX, além de ser criminalizado, ele foi fortemente reprimido nas ruas.
Enquanto isso, a elite do Império festejava o chamado Carnaval em bailes fechados nos clubes e teatros, ao som das polcas, como espelhos de modernidade, civilização e progresso. Na segunda metade do mesmo século foram criadas as primeiras sociedades, que passaram a desfilar nas ruas da capital a fim de ocupá-las em substituição às manifestações populares.
No final do século XIX, as camadas menos abastadas criaram os cordões e ranchos para buscar uma forma de continuar a ocupar os espaços urbanos e atender às normas do disciplinamento vigente.
Os cordões saíam como procissões acompanhados dos zé-pereiras, que eram tocadores de grandes bumbos, e havia rodas de capoeira.
Os foliões saíam mascarados e trajados como palhaços, diabos, reis, rainhas, índios, baianas, e eram conduzidos por um mestre que tinha um apito para comandá-los.
Os ranchos também eram cortejos, mais presentes no carnaval do Rio de Janeiro, para onde foram levados pelo baiano Hilário Jovino Ferreira. Ele fundou o primeiro rancho em 1894, o Rei de Ouros, que trazia características dos cocumbis, congos e tradições musicais portuguesas.
Nos ranchos havia o desfile do rei e da rainha, ao som de uma marcha-rancho tocada por instrumentos de sopro e corda. Havia, também, os mestres de harmonia, de canto e de sala.
Em Salvador, os afoxés surgiram na mesma época dos ranchos, com o objetivo de relembrar as tradições culturais africanas. Afoxé vem do ioruba, e significa a fala que faz, e tem profunda relação com a religiosidade de matriz africana, que na Bahia se materializa como o candomblé. Assim, os afoxés conseguiram levar para as ruas a religiosidade do povo preto da Bahia.
Três instrumentos são essenciais ao afoxé: o agbê, uma cabaça coberta por uma rede ornada com sementes ou contas; três atabaques de tipos e tamanhos diferentes, que são o som do ijexá; e o agogô, instrumento metálico formado por duas campânulas que ditam o ritmo aos outros instrumentos.
Os primeiros afoxés foram o Embaixada Africana e os Pândegos da África. Por volta do mesmo período, o frevo passou a ser praticado no Recife, e o maracatu ganhou as ruas de Olinda.
As marchinhas de Carnaval também tomaram as ruas ainda no final do século XIX. Chiquinha Gonzaga lançou Ó Abre-alas em 1899 para o cordão Rosa de Ouro.
Na primeira década do século XX, o samba Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, tornou-se sucesso nas ruas e nos bailes.
Por este breve histórico do Entrudo percebemos que ele não acabou, mas reformulou-se. Os bailes dos clubes vieram e passaram, cordões, blocos e afoxés resistiram, e o folião pipoca tomou conta das ruas.
Encerrarei minha carta com os versos do português Manoel para sua Maria: Já me vou, minha Maria,/para o Rio de Janeiro,/ navegar naqueles mares/ para ganhar-te dinheiro./[...]/ Joguemos todos o Entrudo,/ ela comigo,/ eu com ela,/ puxei da minha borracha,/ preguei-lhe uma esguichadela.
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Para saber mais
ALFAMA, M. de. Novas cantigas que o cleberrimo Manoel de Alfama mandou à sua Maria para cantar este entrudo. Lisboa, [17--]. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, cópia pública. Disponível em: <https://purl.pt/35401.
CURIOSO DE MINDE (pseudônimo). Versos: Conselhos para cautela ter quem hé menos esperto do entrudo. Lisboa: Typographia S. J. R. da Silva, 1844. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, cópia pública. Disponível em: <https://purl.pt/16363.
ARAÚJO, P. V. L. Outros tempos, outros carnavais: brincadeiras de entrudo e de carnaval no Brasil (século XIX). Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 13, n. 1, jan.-jul., 2020, p. 10-37.
OLIVEIRA, P. C. M. de. Carnaval baiano: as tramas da alegria e a teia de negócios. 1996. Dissertação (Mestrado em Administração) - da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.