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Mais de 4 mil mulheres foram mortas em 2020 na AL e Caribe

O feminicídio, forma extrema e letal de violência de gênero, continua afetando milhares de mulheres e meninas

Foto: Utopiar/Divulgação
Iniciativa Utopiar, marca de roupa feminina ensina técnicas têxteis a mulheres que sofreram violência doméstica

Foram 4.576 mulheres mortas na América Latina e Caribe vítimas de violência contra a mulher, em 2020. É o que revela o novo relatório do Observatório da Igualdade de Gênero da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), divulgado esta semana. 

Mesmo com queda nos casos, os números da região preocupam. Honduras, por exemplo, lidera as taxas do crime na América Latina. O pais passou de 6,1 feminicídios a cada 100 mil mulheres em 2019 para 4,7 em 2020. Já no Caribe de língua inglesa, quatro dos nove países e territórios registraram um aumento na taxa de feminicídio a cada 100 mil mulheres.

No Brasil, dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos revelam mais de 100 mil casos de violência contra a mulher, na pandemia.

Para prevenir e eliminar esse tipo de violência, o Observatório indica que é necessário ampliar a mensuração e visibilidade de outras formas de violência contra a mulher, desenvolver planos e programas públicos baseados em evidências que incorporem estratégias de prevenção e reparação, e fortalecer o financiamento de serviços essenciais de qualidade, assim como a melhoria do acesso à justiça.

O Observatório da Igualdade de Gênero da Cepal divulgou nesta quinta-feira (25) as últimas estatísticas disponíveis sobre o feminicídio na região. Pelo menos 4.091 mulheres foram vítimas de feminicídio em 26 países (17 na América Latina e 9 no Caribe) em 2020, uma redução de 10,6% em relação a 2019, quando 4.576 casos foram notificados. O Observatório de Gênero consolida e atualiza anualmente os números de feminicídios e mortes violentas de mulheres por motivos de gênero fornecidos pelos governos. 

O relatório foi divulgado no marco do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, que é celebrado todo dia 25 de novembro. O indicador regional é uma aproximação porque ainda não existe uma metodologia comum para gerar estatísticas padronizadas sobre esse crime.

O feminicídio, forma extrema e letal de violência de gênero, continua afetando milhares de mulheres e meninas todos os anos na América Latina e no Caribe apesar de sua visibilidade, da resposta do Estado e da pressão massiva dos movimentos de mulheres que o têm expressado sua rejeição à violência de gênero em toda a região.

Números que preocupam

Na América Latina, as taxas mais altas de feminicídio são registradas em Honduras (4,7 a cada 100 mil mulheres), na República Dominicana (2,4 a cada 100 mil mulheres) e em El Salvador (2,1 a cada 100 mil mulheres). Os dados são preocupantes mesmo que esses três países tenham registrado uma redução em relação a 2019, assim como Bolívia, Brasil, Colômbia, Guatemala, Paraguai, Porto Rico e Uruguai.

Honduras passou de 6,1 feminicídios a cada 100 mil mulheres em 2019 para 4,7 em 2020, enquanto na República Dominicana a taxa caiu de 2,7 para 2,4 e em El Salvador de 3,3 para 2,1.

O relatório do Observatório da CEPAL, revela também que Argentina, Chile, México e Nicarágua mantiveram as mesmas taxas de feminicídio de 2019, enquanto Equador, Costa Rica e Panamá registraram aumento em relação ao ano anterior. Destes, o Panamá declarou o aumento mais significativo.

No Caribe de língua inglesa, entre 2019 e 2020, quatro dos nove países e territórios com dados disponíveis sobre mortes violentas de gênero registraram um aumento na taxa a cada 100 mil mulheres. Em Granada, aumentou de 1,9 para 5,5; em São Vicente e Granadinas de 0 a 5,5; no Suriname de 1,1 a 2,8; e em Trinidad e Tobago de 2,9 a 3,1. Nenhum país ou território desta sub-região possui classificação de crime de feminicídio ou feminicídio.

"Não nos cansaremos de tornar visível a violência que afeta as mulheres e meninas em nossa região diariamente e que tem um impacto sobre a sociedade como um todo, pois constitui um obstáculo para a realização da igualdade, do desenvolvimento sustentável e da paz", disse a secretária executiva da CEPAL, Alicia Bárcena.

Alerta urgente

Em 2021, o apelo torna-se ainda mais urgente com a expansão da campanha “Una-se até 2030 pelo fim da violência contra a mulher”, que busca mobilizar governos, sociedade civil, organizações de mulheres, jovens, setor privado, mídia e o todo o sistema das Nações Unidas para enfrentar a pandemia global de violência contra mulheres e meninas.

A violência feminicida está presente em todo o ciclo de vida das mulheres, embora se expresse com maior intensidade durante a idade reprodutiva.

Em termos absolutos, em 18 dos 26 países que reportam à CEPAL, o maior número de casos de feminicídio em 2020 correspondeu à faixa etária entre 30 e 44 anos (344 mulheres). Adolescentes e mulheres adultas jovens entre 15 e 29 anos representavam a segunda posição com maior incidência de feminicídio, com 335 vítimas em 2020. Segundo a CEPAL, a situação de meninas e adolescentes na região também gera um alerta: pelo menos 40 meninas menores de 15 anos foram vítimas de feminicídio.

Segundo a Comissão regional, o feminicídio não atinge apenas as vítimas diretas, mas também todo o seu ambiente e, em particular, seus dependentes mais próximos. Ao menos 357 crianças e adolescentes, além de outros dependentes, estavam sob os cuidados das vítimas do feminicídio contabilizadas em 2020 em sete países latino-americanos: Argentina, Chile, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Paraguai e Uruguai.

Embora os países da região tenham avançado na última década na produção de estatísticas sobre o feminicídio, é necessário fortalecer os sistemas de registro em nível nacional e padronizar as informações, a fim de ter melhores dados para a análise das características. do crime, em nível nacional, bem como para melhorar a comparabilidade regional e internacional.

Causas e soluções

A tolerância social e institucional, a impunidade e a dificuldade de acesso oportuno e de qualidade a serviços de saúde e justiça, entre outros fatores, contribuem para a ocorrência e perpetuação de todas as formas de violência contra a mulher.

Nesse sentido, é necessário ampliar a mensuração e visibilidade de outras formas de violência que fazem parte do ciclo da violência feminicida; em particular, a violência sexual, que está intimamente ligada ao feminicídio. São comuns assassinatos de mulheres e meninas que foram precedidos de atos de violência sexual perpetrados por autores que não necessariamente têm ou tiveram uma relação sentimental ou familiar com as vítimas.

O fortalecimento da estrutura normativa deve ser acompanhado por outros passos, tais como o desenvolvimento de planos e programas públicos baseados em evidências que incorporem estratégias de prevenção e reparação, e o fortalecimento e financiamento de serviços essenciais de qualidade, assim como a melhoria do acesso à justiça.

“Destacamos a importância das medidas sobre a violência contra as mulheres e meninas sejam centrais no âmbito dos sistemas de informação e das estatísticas oficiais dos países. Hoje, prevenir e realizar o direito das mulheres e meninas a uma vida livre de violência é um horizonte impostergável e urgente na região”, concluiu Bárcena.


Nomes de vítimas de feminicídio e 'desconhecidas' numa exposição no México - Foto: ONU Mulheres/Alfredo Guerrero

Procura por ajuda

Renata Rizzi, fundadora da iniciativa Utopiar, marca de roupas femininas sediada em São Paulo que ensina técnicas têxteis a mulheres que sofreram violência doméstica, contou à ONU News que aumentou o número de pessoas buscando ajuda.

“Certamente o número de violência doméstica subiu no Brasil. A gente tem uma lista de espera de mulheres para entrar na Utopiar. Principalmente no começo da quarentena, foi muito difícil. A Prefeitura suspendeu os atendimentos presenciais a não ser em casos urgentes, daí funcionava o abrigamento sigiloso. As mulheres estavam passando mais tempo em casa com o agressor num momento de incerteza. Meu celular tocava de madrugada com gente pedindo ajuda.”

O projeto apoia as vítimas principalmente a conquistarem independência financeira e encontrarem acolhimento.

“Em pouco tempo ficou evidente que mais do que a geração de renda, [era necessário] o resgate da autoestima. São mulheres que ouviram por muito tempo que são inúteis, incapazes, feias, burras... e elas realmente começam a acreditar nisso. Quando a gente entra com as oficinas de capacitação e elas começam a produzir peças super bonitas e veem que são capazes de aprender coisas novas, vai tendo esse resgate da pessoa”.

Renata Rizzi destacou também que as mulheres têm dificuldade em romper o chamado “ciclo da violência” principalmente porque o assunto ainda é um tabu na sociedade e as vítimas são frequentemente culpabilizadas pela violência. 

“A violência doméstica é um tabu. Quando você vai contar para alguém, é novamente violentada e questionada ‘como você deixa ele fazer isso com você?’, quase como se a mulher fosse responsável pela violência que sofre. Então muitas vezes elas não falam sobre o assunto. Daí, durante as oficinas da Utopiar, elas vão se conectando e falam. Às vezes, são histórias muito diferentes, mas muito parecidas, e elas vão se reconhecendo nas histórias umas das outras” 

A iniciativa já ajudou mais de 60 mulheres com as oficinas e gerou mais de R$ 50 mil para as participantes. 

Para os dias de ativismo da ONU Mulheres, a marca reverterá as vendas para a ONG Casa Mariás, que oferece apoio psicológico, jurídico e abrigamento sigiloso para pessoas em situação de violência doméstica. 

O objetivo da empresa é transformar a vida de 5 mil mulheres nos próximos 10 anos no país, que ocupa a 5ª colocação entre 83 nações com o maior número de crimes contra as mulheres, de acordo com o Mapa da Violência, organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Campanha

A campanha global “Una-se pelo Fim da Violência contra as Mulheres” começou neste 25 de novembro, Dia Internacional para eliminação da prática. Em mensagem de vídeo o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu mudanças para erradicar a violência.

As ações, marcadas pela cor laranja, um sinal de alerta para o problema que atinge todas as classes sociais, seguem por 16 dias até 10 de dezembro, quando é marcado o Dia dos Direitos Humanos. Desde 1991, essa campanha atua para prevenção e eliminação da violência contra mulheres e meninas.

Em 2021, o lema O mundo de laranja: Acabar com a violência contra as mulheres agora! revela que um terço de mulheres foi abusada em algum momento da vida.

E na pandemia, António Guterres lembra que o problema piorou.

Segundo ele, quase um quarto das mulheres contou que a violência aumentou durante a Covid-19.  Uma proporção semelhante revelou que se sentia menos segura em casa. Para Guterres, as cicatrizes permanecerão para as próximas gerações.

O chefe da ONU vê uma relação direta entre a violência a mulheres, a opressão civil e o conflito violento. Atos como abusos, misoginia e escravidão sexual são usados como ferramentas de guerra e usados no extremismo violento.

A ONU Mulheres publicou um relatório, realizado em 13 países, mostrando que dois terços das mulheres sofreram algum tipo de violência e são mais propensas à insegurança alimentar.

O secretário-geral António Guterres diz que esse tipo de violação continua sendo a questão mais prevalente dos dias atuais.

O chefe da ONU afirma que a violência contra as mulheres não é inevitável e políticas e programas certos geram resultados. "Estratégias abrangentes e de longo prazo protegem os direitos das mulheres e meninas e promovem movimentos fortes."

Guterres ressalta que esse é o modelo usado pelas Nações Unidas na Iniciativa Spotlight, uma parceria com a União Europeia.

Pelo menos 84 leis e políticas foram aprovadas ou fortalecidas e mais de 650 mil mulheres e meninas ganharam acesso a serviços contra a violência de gênero, mesmo durante a pandemia.

As Nações Unidas alertam que o problema agrava em situações como a pandemia, crises humanitárias, conflitos e desastres climáticos.

Um outro desafio é reportar esses atos: apenas uma em cada 10 mulheres disse que procuraria a polícia para ajudar, se fosse vítima.

Spotlight

A Iniciativa Spotlight lançou nesta sexta-feira (26) o relatório “Enfrentando o desafio”, que avalia o impacto alcançado entre 2020 e 2021.

O documento, lançado em Nova Iorque, ressalta que 650 mil mulheres e meninas receberam serviços contra a violência de gênero, apesar das restrições e dos bloqueios relacionados à Covid-19.

Mais de 65 milhões de pessoas foram alcançadas por 80 campanhas multimídia em favor da mudança de comportamento. Estas iniciativas foram realizadas localmente em mais de 15 idiomas.

O relatório ilustra resultados atingidos em direção ao fim violência contra mulheres e meninas no contexto da pandemia que “tornou o ano 2020 incomparável”.

Mesmo com essa situação, acredita-se que o envolvimento de mais parceiros nessa atuação poderia a “ajudar a eliminar de vez” todas as formas de violência contra vítimas de sexo feminino.

Um total de 1.111 organizações de direitos do grupo relataram ter agora maior influência para ajudar a eliminar a violência contra o grupo em níveis local e popular.

Seis países desenvolveram metodologias para produzir dados nacionais sobre violência contra as mulheres e meninas. Ainda em nível de Estados, pelo menos 84 leis e políticas foram assinadas ou fortalecidas em 17 nações.

O período em análise marca um aumento de 32% nos orçamentos para prevenir a violência contra mulheres e meninas nos países.

A iniciativa tem o objetivo de alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres para que seja cumprida a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Pelo menos 880 mil homens e meninos foram educados sobre masculinidade positiva, o respeito no seio de relacionamentos familiares, a resolução não violenta de conflitos e a paternidade.

A Iniciativa Spotlight destaca que cerca de 1 milhão de jovens aderiram a programas realizados dentro e fora das escolas durante o período avaliado.

Em nível global, foram alocados US$ 146 milhões para a sociedade civil até agora, no que corresponde a 48% dos fundos das atividades.

O documento ressalta ainda o avanço em termos de casos ao destacar que no período houve uma subida de 22% no número de condenações de autores de violência em relação a 2019.