Após várias cartas que trataram do patrimônio cultural material brasileiro, hoje vamos conhecer um pouco do nosso patrimônio imaterial. O artigo 216 da Constituição Federal prevê o reconhecimento dos bens culturais imateriais como patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria com a sociedade. Eles são reconhecidos como instrumentos de referência à identidade e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Incluem-se como bens culturais e imateriais as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e, por fim, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Apesar de estar na Constituição, o governo federal levou 12 anos para criar o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e instituir o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, ambos incluídos no Decreto nº 3551, de 14 de agosto de 2000.
O IPHAN possui quatro Livros de Registro: dos Saberes, que reúne conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; das Celebrações, no qual estão inscritos os rituais e as festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida social; das Formas de Expressão, que registra as manifestações artísticas; e dos Lugares, no qual estão inscritos os mercados, as feiras, santuários e praças onde se concentram ou se reproduzem práticas culturais coletivas.
O governo do Estado da Bahia, por meio da Lei nº 8895, de 2003, instituiu, também, normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural baiano com a ampliação da proteção do patrimônio imaterial nos seguintes Livros de Registro Especial: dos Saberes e Modos de Fazer; dos Eventos e Celebrações; das Expressões Lúdicas e Artísticas; e o dos Espaços destinados a Práticas Culturais Coletivas.
O primeiro registro realizado pelo IPHAN foi o do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (Livro de Registro de Saberes, 2002), que mantêm o saber envolvido na fabricação artesanal de panelas de barro, com técnicas tradicionais e matérias-primas naturais, atividade eminentemente feminina, transmitida de geração a geração. As artesãs se reuniram em uma associação no bairro da Goiabeira Velha, em Vitória do Espírito Santo.
A associação das Paneleiras de Goiabeiras tem mais de 60 associadas
Atualmente há 13 registros de saberes, que reconhecem diferentes culturas e grupos. Entre eles estão o Modo de Fazer Viola de Cocho, o Ofício das Baianas de Acarajé e os Saberes e Práticas Associados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá.
A viola de cocho é um instrumento musical produzido exclusivamente de forma artesanal, com a utilização de matérias-primas da Região Centro-Oeste do Brasil. O corpo, ou caixa de ressonância da viola, é escavado em uma tora de madeira inteiriça, do mesmo modo como são feitos os cochos onde é colocado o alimento do gado. Os artesãos são chamados de mestres cururueiros, e o instrumento é muito utilizado nas festas e danças do cururu e do siriri.
Viola de cocho - Foto: Jo Dusepo | Wikimedia
O Ofício das Baianas de Acarajé também mereceu o reconhecimento do governo baiano e foi inscrito no Livros de Registro Especial dos Saberes e Modos de Fazer. Este ofício, mais que bicentenário, remonta ao comércio de alimentos realizado pelas escravas ganhadeiras, mas, também, pelas libertas que buscavam o sustento com os seus tabuleiros repletos de quitutes.
O encanto das bonecas Karajá feitas em cerâmica está na reprodução do universo desse povo, pois elas representam seres mitológicos, os rituais, a vida cotidiana e a fauna, todo o universo que os envolve. São utilizadas não apenas como brinquedos, mas como instrumentos de socialização e reconhecimento do povo Karajá.
A aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, localizada na Ilha do Bananal, no Estado do Tocantins, é o centro simbólico do saber-fazer a boneca, por isso é visitada por comerciantes, estudiosos e ceramistas de outras aldeias.
O Livro de Registro das Celebrações contém 14 manifestações culturais, dentre elas a nossa Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, e outras festas que mesclam o religioso e o profano. Destacamos os Complexos Culturais do Bumba meu boi do Maranhão e do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins.
O Bumba meu boi do Maranhão é uma celebração enraizada no catolicismo popular, em honra aos santos do mês de junho, portanto, João Batista, Pedro e Antônio. É rica porque reúne a dança, a música, instrumentos artesanais e vestimentas típicas, tudo em consonância com uma história cheia de sincretismo.
O Tambor de Mina e o Terecô, cultos religiosos afro-brasileiros, também estão presentes nessa celebração com os orixás, voduns e encantados que requisitam um boi como obrigação espiritual. O Complexo Cultural do Bumba meu boi do Maranhão foi inscrito no Livro de Registro de Celebrações, em 2011. Em 2019, a manifestação popular recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Boi Bumbá - Foto: Clara Angeleas/MinC
O Complexo Cultural do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins (Livro de Registro das Celebrações, 2018) também é centralizado na figura do Boi em uma manifestação artística com danças, músicas e narrativas dramáticas que remontam ao tempo das missões jesuíticas do período colonial, mas que absorveu aspectos das culturas afro-brasileiras e indígenas.
Os festejos podem acontecer em diferentes momentos do ano e com variações e denominações diversas a depender do lugar. No Médio Amazonas e Parintins (AM), os festejos ocorrem geralmente na época das celebrações juninas dedicadas a Santo Antônio, São João batista e São Pedro.
Há três principais versões da dança dramática: o Boi de Terreiro, o Boi de Rua e o Boi de Arena. O Bumbódromo do Festival Folclórico de Parintins recebe em junho os festejos do Boi de Arena, que tem um caráter mais competitivo.
Nesse mesmo livro está registrado o Bembé do Mercado (2019), contudo essa manifestação cultural e religiosa que acontece em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, já estava registrada desde 2012 como patrimônio imaterial no Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações, sob a guarda do IPAC. Essa festa ocorre desde o final do século XIX, quando um grupo de negros se reuniu em praça pública para comemorar a abolição da escravatura.
Também chamada de Festa de Preto ou Candomblé da Liberdade, ela acontece desde 1889, em 13 de maio, com a participação de vários terreiros da região, e dura três dias. É realizada no Largo do Mercado Municipal e envolve cerimônias destinadas às divindades das águas. Nesses dias também ocorrem apresentações de maculelê, capoeira, samba de roda, o negro fugido, para citar algumas.
A festa se encerra com o presente a Iemanjá, e representa a riqueza cultural que o Recôncavo Baiano possui, com a beleza e o encantamento das raízes afro-brasileiras.
Na próxima semana veremos outras manifestações culturais que representam o nosso patrimônio imaterial.
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Para saber mais
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de Registro dos Saberes - Bens Culturais Imateriais.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de Registro das Celebrações - Bens Culturais Imateriais.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA. Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações