Quando falamos de concepção de patrimônio cultural queremos acentuar que a escolha de determinado elemento componente de uma cultura ou tradição para ser oficialmente protegido, nos leva a eleger um lado da nossa história em detrimento da diversidade que sempre a caracterizou. E é reflexo, também, da sociedade em que vivemos, com seus preconceitos e preceitos ditados por uma elite cultural, que não sofreu grandes transformações ao longo de séculos.
Apesar de vermos avanços, ainda na década de 1970, na percepção de que o patrimônio cultural brasileiro deveria abranger a diversidade cultural do país, a eleição de componentes e manifestações de matriz africana, ameríndia e populares demorou a acontecer pelos trâmites oficiais.
Ao lado dos órgãos federais de preservação devemos citar a legislação municipal, que sempre referendou as decisões definidas por eles, mas, a partir da criação do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (1968) e do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia (1970), a preservação do patrimônio baiano recebeu um grande reforço com obras de restauração em várias cidades. No entanto, até a década 1980 não há referência sobre tombamento de sítios ou edificações representativas das culturas africanas.
Em se tratando do IPHAN, entre 1982 e 1998 apenas três processos de tombamento se referiam a terreiros de candomblé, sendo que dois deles eram em Salvador. O primeiro terreiro de candomblé a receber um reconhecimento de patrimônio cultural foi o Terreiro da Casa Branca, situado em Salvador, com o seu sítio de cerca de 6.800 m2, tombado pelo IPHAN em 1982. O segundo, também em Salvador, foi o Terreiro do Axé Opô Afonjá, em 1998.
Terreiros da Casa Branca e do Axé Opô Afonjá
Considerado a primeira casa de candomblé aberta em Salvador, o Terreiro da Casa Branca, com as edificações, árvores e principais objetos sagrados, também foi reconhecido como patrimônio cultural pela Prefeitura Municipal de Salvador, que primeiro o tombou e depois o tornou Área de Preservação Cultural e Paisagística em 1985. O IPAC também promoveu tombamento de terreiros de candomblé: dois, em Salvador; dois em Lauro de Freitas; um em Camaçari; um em Maragogipe; um em Cachoeira e outro em São Félix. A Prefeitura Municipal de Salvador, realizou o tombamento de dois terreiros e da Pedra de Xangô e do Sítio Histórico do Antigo Quilombo Buraco do Tatu.
Pelo IPHAN, de 1999 a 2021 foram abertos 32 processos que resultaram em 10 tombamentos, sendo 7 de terreiros situados em Salvador. Importante colocar que uma boa parte desses processos ainda está em nível de instrução. O reconhecimento oficial da relevância dos terreiros de candomblé como centros religiosos é fruto de uma luta dos seus seguidores e dos avanços da democracia em nosso país, que teve como reflexo, também, a abertura de processos de tombamento de quilombos em vários estados brasileiros. São 15 processos em instrução e um tombamento, em Minas Gerais, dos remanescentes do Quilombo do Ambrósio, uma história de resistência à escravidão, que foi destruído pelo governo português em 1759.
Quilombo do Ambrósio
O tombamento de quilombos tem respaldo no Artigo 216, § 5º da Constituição Federal, e sabemos que a maioria dessas comunidades não possui documentos de posse de terra, portanto, ficam sob o risco de grilagem com sérios atentados à vida de seus integrantes. Não podemos deixar de citar a importância do Estatuto da Cidade (2001), que estabelece normas de ordem pública e interesse social, que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, sendo o usucapião, rural ou urbano, um reconhecimento de que é necessário corrigir o problema secular da situação fundiária no país.
Quando o assunto são as culturas ameríndias, a situação também é complicada. Temos o tombamento de sambaquis, sítios arqueológicos à beira de rios, lagos ou do oceano, deixados por povos pré-históricos que habitavam a costa brasileira muito antes dos tupis e dos guaranis. Esses sítios são geralmente compostos por conchas e moluscos, ossos de peixes, pássaros e mamíferos, depositados após as refeições dos grupos. E temos, também, os sítios com remanescentes de inscrições e pinturas rupestres.
Nossos povos indígenas estão representados em acervos de museus etnográficos e arqueológicos por todo o país, talvez espaços em que eles nunca estiveram ou mesmo não se reconheçam.
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Para saber mais
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Processos de tombamento e bens tombados. Atualizado em: 13 mai. 2021.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA. Livro de Tombamento dos Bens Imóveis, v. 1.
SALVADOR (BA). Prefeitura Municipal do Salvador. Lei nº 8550. Institui normas de proteção e estímulo à preservação do Patrimônio Cultural do Município de Salvador e dá outras providências. Salvador: Diário Oficial do Município, 20 jan. 2014, p. 5-10.