Gina Marocci

A proteção da paisagem urbana no País

A diversidade das categorias de tombamentos do IPHAN em 1938 inclui também elementos componentes da infraestrutura ou equipamento urbano, patrimônio natural e jardim histórico. Na primeira categoria, chafarizes históricos, pontes e aquedutos foram tombados, com destaque nos chafarizes e aquedutos da cidade do Rio de Janeiro, elementos importantes para o acesso à água doce.

Na categoria de patrimônio natural foram tombados os morros que caracterizam e embelezam a cidade do Rio de Janeiro e as praias da cidade de Parati. E o Portão da Antiga Fábrica de Pólvora e o Pórtico da Antiga Academia Imperial de Belas Artes, ambos no Jardim Botânico, e o Campo de Santana (Praça da República), foram os tombamentos na categoria de jardim histórico.

Entre 1939 e 1945 foram tombados mais 158 monumentos sendo que mais de 80% dos processos tratavam de patrimônio arquitetônico. Nesse período, as cidades do Recôncavo Baiano, nomeadamente, Cachoeira, Castro Alves, Maragogipe, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé e Santo Amaro, tiveram um grande destaque com o tombamento de bens isolados.

O mesmo aconteceu com os tombamentos em Salvador, contudo, dois conjuntos arquitetônicos do século XVIII passaram a receber a proteção legal: Igreja de Nossa Senhora da Penha e antigo Palácio de Verão do Arcebispo (Ribeira) e Solar do Unhão e Capela de Nossa Senhora da Conceição (Avenida Contorno).

Na listagem dos bens tombados pelo SPHAN dá para perceber que a prioridade eram as edificações que representassem o modo de viver e de socializar dos brasileiros e estrangeiros abastados, dos detentores do poder civil ou religioso representado pela fé católica. Assim se construiu a identidade do povo brasileiro. Naquele momento.

Em 1952, vários conjuntos arquitetônicos e urbanísticos (conjuntos urbanos) de Salvador foram tombados. Na Cidade Baixa foram definidos perímetros: no entorno da Igreja da Conceição da Praia até a Rua do Sodré; no trecho entre Mares e Penha; entre o Bonfim e a Penha, seguindo pela beira-mar.

Na Cidade alta: no Largo da Palma (Praça Ana Nery); no Largo da Saúde (Praça Severino Vieira); entre os Subdistritos da Sé e do Passo e, por fim, no Outeiro de Santo Antônio da Barra.

No mesmo ano foi iniciado o processo de tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico incluído nos trechos da Avenida Otávio Mangabeira compreendendo as praias do Chega Nego e Piatã, que foi inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 1959.

Esse tombamento compreende um trecho de cerca de 10 km da nossa orla soteropolitana, em que foi travada uma contenda entre a Prefeitura Municipal e o IPHAN por conta da implantação de novas barracas de praia em 2007. Não vamos entrar na questão das barracas de praia, pois o que nos interessa é tratar sobre o que há de comum nesses tombamentos ocorridos na década de 1950.

Esses oito tombamentos de trechos de Salvador estão classificados como conjuntos arquitetônicos e urbanísticos ou como conjuntos arquitetônicos e paisagísticos, ambos componentes da paisagem urbana, conceito complexo, previsto na Constituição Federal de 1988 quando trata da função social e do bem-estar coletivo das pessoas no meio ambiente urbano.

No entanto, estamos tratando de tombamentos ocorridos 30 anos antes da Nova República, portanto, nesses tombamentos compreende-se as cidades como constituídas pelos espaços construídos para as mais diversas atividades humanas, pelos espaços livres, como praças, parques, praias e e outros, nos quais há o exercício da vida social, da cidadania, dos costumes de um povo.

Apesar de o uso da propriedade estar condicionado ao bem-estar social já na Constituição Federal de 1946, não havia uma indicação clara de que ela devia cumprir uma função social. Na Carta manteve-se o texto e o sentido de que mereceriam tombamento “[...] obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza [...].”

No caso dos oito tombamentos de conjuntos em Salvador, primeiramente está o apelo à história/memória do lugar, seja pela característica da arquitetura, seja pelo traçado urbano ou pelas atividades nele exercidas, e, como já falamos, na busca de resguardar espaços da descaracterização predatória.

Os tombamentos na Cidade Baixa, correspondem a trechos com monumentos tombados isoladamente, mas, também, a trechos que não possuíam, na época, exemplares arquitetônicos singulares. No trecho entre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a Rua do Sodré, onde fica o Convento de Santa Teresa, além da arquitetura característica dos séculos XVIII e XIX, o tombamento definiu um perímetro de proteção aos monumentos considerados mais relevantes, e buscou salvaguardar o frontispício da cidade, implantada em acrópole, ou seja, em dois níveis, conforme a tradição portuguesa.

Outros dois trechos, que estão na Península de Itapagipe, um no bairro da Boa Viagem e outro entre o Bonfim e a Penha, abrigam monumentos dos séculos XII e XVIII tombados isoladamente. Um trecho compreende o perímetro que envolve a Igreja e Convento de Nossa Senhora da Boa Viagem, o Forte de Monte Serrat e a Igreja e Mosteiro de Nossa Senhora de Monte Serrat, cuja paisagem tem características bem diferentes da imponente região da Conceição da Praia devido à singeleza da arquitetura desses monumentos e pela ocupação urbana, com edificações até três pavimentos, restrição de gabarito atribuída às características geológicas da Península.

Não podemos deixar de destacar os estudos elaborados na década de 1940 pelo Escritório do Plano Urbanístico de Salvador (EPUCS), o qual apontou a necessidade de escalonamento do gabarito de altura das edificações em função da proximidade com as regiões de beira-mar, a fim de garantir ventilação ao miolo da cidade.

O Plano do EPUCS também teve sua importância associada ao lançamento de bases para a elaboração do Decreto de Lei nº 701/48, que dispõe sobre o zoneamento e uso do solo na zona urbana e o código de urbanismo. Desse modo, a legislação municipal veio interagir com a legislação federal a fim de promover a proteção do patrimônio cultural soteropolitano.

Para saber mais

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Processos de tombamento e bens tombados. Atualizado em: 13 mai. 2021.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Expedição descobre potencial turístico nos Caminhos Antigos das Minas à Bahia. 12 set. 2006. Disponível

MARTINS, S. A experiência da modernidade e o patrimônio cultural. REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 1, volume 1(1):2014.