Gina Marocci

Como Salvador colonial fazia para se livrar do que enchia os urinóis

Até o rei D. José I foi envolvido no problema

O acesso à água tratada ocorreu em Salvador a partir da instalação de um conjunto de chafarizes pela Companhia do Queimado, nas principais praças de Salvador, na segunda metade do século XIX.

Hoje iremos falar sobre o esgotamento sanitário, ou seja, do destino que era dado às águas sujas oriundas das mais diversas atividades domésticas, comerciais e industriais, como, também, aos chamados dejetos humanos: cocô e xixi.

Se o acesso à água tratada era difícil, imaginem, então, livrar as ruas dos esgotos a céu aberto. Para nós, isso não é novidade, pois, mesmo com programas governamentais como o Bahia Azul, da década de 1990, ainda hoje não se tem cobertura total do esgotamento sanitário em Salvador.


Uma latrina pública

Até a primeira metade do século XIX, a estrutura de esgoto das casas urbanas era muito simples. Poderia ser uma cloaca, um buraco com assento, em alguns casos, com tubulação de barro para descarga no próprio solo. O Solar Ferrão, no Pelourinho, tem vestígios de uma cloaca, abaixo da escada monumental.

Foto: Museu de Alvito S. Pedro

O urinol embaixo da cadeira

Em alguns casos, existia um cômodo, chamado de quartinho ou sala de banho, onde ficava uma cadeira muito interessante, chamada de retrete, que tinha um buraco no assento e um compartimento para se colocar o urinol. E depois? O que fazer com os líquidos e sólidos armazenados nos urinóis? Claro que este serviço era executado pelos escravos, como veremos mais adiante.

A grande questão do esgotamento sanitário é quando esses dejetos correm livremente pelas ruas que, diga-se de passagem, em uma grande parte das cidades brasileiras, até o final do século XIX, não tinham sequer calçamento.  

Na Salvador colonial, as águas servidas escorriam pelo meio das ruas, acumulando-se em poças e deixavam uma lama fétida que se misturava ao lixo.

Em julho de 1759, a Câmara, em carta ao rei, D. José I, solicitou que fosse permitido obrigar aos moradores de Salvador, a canalizar as águas servidas que saíam das casas, pois, ao serem lançadas nas ruas, tornavam-nas sujas e fétidas. Sugeria ainda, a Câmara, que os serviços, por serem dispendiosos, fossem totalmente assumidos por particulares.

Em janeiro de 1760, a resposta do Conselho Ultramarino, endereçada ao vice-rei, Marquês do Lavradio, referendara a proposta da Câmara de Salvador, no entanto, em resposta ao rei, o vice-rei argumentara ser o trabalho inviável, porque só havia condutos reais em algumas ruas principais. Ele considerava que a Câmara deveria se preocupar em desobstruir as ruas, entulhadas com restos de obras deixados por mestres pedreiros, os quais haviam sugerido o serviço das águas servidas.

Interessante é que em 1745, o procurador do Senado havia feito um requerimento para notificar aos proprietários a obrigatoriedade de se colocar nas ruas sumidouros subterrâneos para escoamento de águas para favorecer o saneamento da cidade.

Em 1747 foi requerido o pregão para arrematação das obras de reparo das ruas, limpeza das fontes e colocação, por baixo da terra, “de um cano que sai das casas onde mora o Dr. Moram, e outros três na rua do Dr. Luís Ventura, e colocá-los em um cano que está na rua do Maciel, no canto das casas de Diogo Rocha; a rua que vai para o caminho novo, até onde mora Francisco Pires Lima; a rua que vai da fonte dos Padres até o forte de S. Francisco, e daí até o guindaste dos Padres do Carmo, que é a principal da praia, por trás da igreja do Pilar, até a cruz do Pascoal.”

Em sendo a carta da Câmara, endereçada ao rei, de 1759, ou seja, 12 anos após as obras dessas ruas, supõe-se que, apesar dos seus esforços, a Câmara não conseguira estender o trabalho a outras áreas da cidade.

Pode-se pensar, também, que a solicitação ao rei tenha sido necessária para pressionar o cumprimento da determinação da Câmara, já que era comum o descomprometimento da população. Ao mesmo tempo, fica patente o excesso de burocracia a que se submetiam os órgãos coloniais, principalmente as câmaras municipais, cujas ações, em muitos momentos, eram neutralizadas pelos governadores e capitães-generais.

Em relação aos dejetos humanos que eram, como já falamos, aqueles reservados em grandes urinóis, a Câmara determinava que eles fossem retirados das casas à noite, em vasilhames tampados, pelos escravos tigreiros, tigrados ou tigres, ou por negros livres. Ganhava-se dinheiro até alugando escravos para este serviço.

Como parte do conteúdo dos vasilhames, que continha ureia e amônia (por causa da urina), vazava, esses escravos ficavam com marcas mais claras na pele, como listras, por isso eram chamados de tigres.


Escravos descartam dejetos

Apesar das posturas proibitivas, os dejetos orgânicos eram jogados pelas encostas, nos rios e no mar. O poder municipal e os governadores atentavam para os graves problemas de saúde pública, porém as ações concretas se resumiam a promover punições pelo descumprimento da legislação.

Muitas fontes públicas ficaram contaminadas com os esgotos que corriam a céu aberto, o que provocava sérios problemas de saúde aos seus usuários. Os surtos frequentes de varíola e malária eram justificados pela insalubridade da cidade.

Na próxima semana conversaremos sobre o manejo dos resíduos sólidos e da água pluvial.