Eliete I. Sousa

A Semana Santa de antigamente parecia mais longa (e mais santa)

A quaresma é um tempo santo de preparação do espírito e de conversão

cruzes
Foto: Pixabay/Creative Commons

Chegou o Domingo de Páscoa .

No início dos anos sessenta, era eu ainda criança, e os dias da Semana Santa eram chamados de ‘Dias Grandes’. 

Os dias grandes eram guardados de forma bem diferente do que se vê hoje, ou do que se via na cidade grande. A religião, para pessoas humildes no interior, é levada muito a sério.

A quaresma é um tempo santo de preparação do espírito e de conversão. Tempo de oração, de abstinências e de resguardo das coisas mundanas. Tempo de sacrifícios. 

A Sexta-feira da Paixão era um evento esperado por quarenta dias com muita apreensão. A Semana Santa é tempo de purificação, de dedicação ao sagrado, de orações e de jejuns.

Meu pai já começava o jejum na Quarta-feira de Cinzas... 

Crianças não jejuavam, mas eu insistia para jejuar, ao menos tentava, porque criança quer ser gente grande, quer fazer o que os adultos fazem, quer imitar os pais para mostrar que é forte e merecer admiração. 

Lembro que meus pais não me deixavam fazer o jejum severo imposto aos adultos, mas fingiam que me atendiam. Mamãe sempre me convencia a ‘comer uma coisinha’ no decorrer do dia para esperar o jantar, que acontecia pontualmente às 18 horas, ao cair da tarde. Como se dizia, na boca da noite. 

Quinta e Sexta-feira Santas o jejum era sagrado para meu pai, mas só na Sexta-Feira era obrigatório para todos. Menos para as crianças. 

Para quem estava acostumado com um café-da-manhã, chamado de ‘quebra-jejum’, que era quase um pequeno almoço, esperar a hora do jantar não era fácil. Ôh, dia grande!!! 

Aí, minha espera ansiosa já era para chegar o sábado. Sábado de Aleluia, para encher a pança, já no café da manhã e, à noite, malhar o Judas. 

A minha birra era não comer uma ‘coisinha’ para não quebrar o jejum. Mas mamãe percebia quando eu já estava amarelando, ficando esvaecida, e me convencia, como dizia ela, a comer uma ‘coisinha’, que para mim não era pecado. Crianças não precisam jejuar, pois não têm pecados para redimir, nem estrutura para aguentar.

Eram emocionantes aqueles dias. Aguardávamos com ansiedade como se aguarda a Noite de Natal.

Quinta-feira, a cerimônia do lava-pés. Nunca vi meu pai lavar os pés com tanto capricho, com tanto esmero, na esperança de serem lavados de novo pelo padre. E era dia de vigília. Jesus tinha sido preso e estávamos apreensivos.

Sexta-Feira Santa, era o dia mais aguardado para o sacrifício. 

A Paixão de Cristo, neste dia crucificado, nos impunha muitos resguardos. Não se podia fazer absolutamente nada naquele dia. Era um dia de tristeza e desolação. Qualquer coisa era pecado. 

Não se batia um prego para não furar o dedo; não se lavava o cabelo, nem se perfumava, não era dia para vaidades; não se montava para não cair do cavalo; não se viajava de carro para evitar acidentes, e não se mergulhava em fontes para não bater a cabeça numa pedra. Não se fazia qualquer movimento brusco: guardava-se todo o dia como se a morte estivesse à espreita de quem quebrasse o resguardo. 

Não se fazia festa, crianças não cantavam roda, não era dia de alegria. Não se comia doces..., as compotas eram reservadas para o Domingo de Páscoa. Não se brigava e não se batia. As surras eram guardadas. Não se varria nem arrumava a casa: o único trabalho era dedicado à feitura da comida. Comida sagrada para se alimentar e fortalecer o espírito.

E não se comia mistura. Nem carne vermelha, nem bicho que voa (ainda não comemos). 

Não se comia carne, mas se comia peixes e a comida era preparada com muito esmero. As verduras eram criteriosamente selecionadas. 

O milho verde ralado se transformava em polenta; o feijãozinho verde, a quibebe de abóbora ou de mandioca, a caçarola de maxixe, tudo regado com nata, cheiro-verde e toque de amor. Tudo fresquinho. 

Aquele surubim que papai comprou, de Remanso, mamãe o fazia no capricho e o servia com pirão no jantar da Sexta-Feira, e incrementava com ovos escalfados que papai gostava. Também gosto muito. 

Ovos escalfados, que papai falava ‘ovos escolfados’, é ovo pochê.

Era quase uma festa para mim. A dedicação de mamãe no preparo das comidas me trazia a sensação de quem espera a ceia de Natal. Mas não se podia comer com gulodice, comia-se para alimentar o espírito e não para saciar a fome.

Mas o sábado, ah, estava pra chegar!

Durante a semana os rapazes preparavam o boneco de Judas. Um boneco de tamanho natural, uma representação de Judas Iscariotes, o traidor de Jesus, um espantalho, que no sábado à noite era colocado no centro da rua e feito de alvo para ser malhado. 

Era um espetáculo de desabafo, uma vingança cristã, e se começava a malhação. Os jovens davam-lhe chibatadas, os garotos lhe tacavam pedras e, por fim, caído, sob chutes e pontapés, a meninada lhe ateava fogo.

Já não malhamos o Judas como antigamente. Os  terreiros que havia na frente das casa se transformaram em praças e as ruas calçadas cederam lugar para os carros. 

A ansiedade das crianças de hoje é pela chegada do Domingo de Páscoa para se lambuzar de chocolates.

Felizmente, o Domingo de Páscoa continua sendo o da Ressurreição, nos trazendo esperanças de vitória e de vida renovada. Nosso Cristo Redentor ainda é o mesmo, e  temos esperanças na salvação. 

Uma Feliz Páscoa a todos!