Nordeste

Penitentes choram os mortos em cemitérios e cruzes das estradas

Os Penitentes saem noite a dentro vestidos com túnicas brancas

Foto: Destaque Notícias
Eles vestem túnicas brancas, cobrem os rostos com capuzes e usam cordões de São Francisco

Durante a Quaresma, que se inicia nesta Quarta-Feira de Cinzas (17) e prolonga-se por 40 dias, parte da população de Sergipe se rende à penitência. É tradição do povo de vários municípios sergipanos passar o período quaresmal acompanhando os Penitentes vestidos de branco rezarem pelas almas do purgatório. Na esperança que o sagrado resolva as falhas humanas, esses grupos vagueiam pelas estradas nas madrugadas das segundas, quartas e sexta-feiras, considerados por eles como os dias das almas.

Os Penitentes saem noite a dentro vestidos com túnicas brancas, rostos cobertos por capuzes da mesma cor e cordões de São Francisco nas cinturas. Nas mãos de alguns estão o sino, a matraca e a cruz, que servem para identificá-los. A cruz simboliza a morte de Cristo no calvário, o sino e a matraca são usados para chamar a atenção das pessoas. As vestes brancas representam a passagem deste mundo para o além, caracterizada pelas famosas mortalhas que vestiam os corpos dos finados no ato do sepultamento.

Nas noites de Quaresma, o silêncio é quebrado pelos sons da matraca e dos sinos, além das rezas em ritmo de lamentação como forma de ajudar as almas necessitadas. O percurso feito pelos Penitentes é longo e dura toda a noite. As estações, paradas nas quais eles realizam orações e relembram os passos da paixão de Cristo, são pontos específicos como cemitérios, igrejas, capelinha, santa-cruz de beira de estrada e as casas de alguns moradores.

Cruz, velas e matraca

O impacto visual dos Penitentes impressiona, pois quando menos se espera, surge uma cruz alçada com várias velas acesas, acompanhada por mais de uma dezena de pessoas vestidas de branco, entoando cantos de lamentação. O soar da matraca completa o cenário de hercúlea penitência e desolação. Muitas sentem medo dos Penitentes, pois acreditam que eles têm proximidade com os mortos. Outro ingrediente que alimenta o universo imaginativo é o fato deles saírem a meia noite, considerada por muitos como a “hora ruim”. Há ainda quem atribua a prática dos penitentes a uma bruxaria disfarçada.

Movidos por uma fé que os faz acreditar estarem sendo acompanhados em suas jornadas noturnas por seres do plano espiritual, os Penitentes se acham pessoas predestinadas por Deus para suplicar por todos aqueles que sofrem neste ou no outro mundo. Há entre eles, porém, alguns que participam das jornadas penitenciais visando se autoajudar, seja para pagar alguma promessa ou para alcançar uma graça, que geralmente é a cura de enfermidades ou livramento de algum vício.

É preciso manter o sigilo. O homem individual é apagado diante do grupo. Os penitentes assumem no decorrer da Quaresma uma identidade própria. O sujeito perde espaço para o coletivo. Isso é simbolizado pelo uso do capuz que, de certa forma, acaba por uniformizar os componentes do grupo. Mesmo havendo atribuições distintas entre os penitentes (carregar sinos, matracas, puxar orações), no olhar do grande público os sujeitos se tornam irreconhecíveis. O homem sofrido desaparece ao escurecer, para somente despertar na alta madruga. A noite fria oculta as dores individuais, despertando o lamento coletivo.

À espera dos Penitentes

As pessoas que admiram os Penitentes passam quase toda a noite em claro esperando a visita dos irmãos das almas. Muitos agem assim por temer que se eles chegarem em suas casas e os encontrarem dormindo, a benção de Deus é impedida de entrar nas moradas. Para estas pessoas, os Penitentes são vistos como mensageiros da boa-nova. Mesmo no âmbito protetor do lar, as restrições sobre o grupo de branco são constantes. Não existe diálogo, apenas a entrada na casa e a execução das orações. Terminadas as obrigações, os Penitentes recuam de costas, rezando e soando a matraca, para enfim ocultar-se novamente na escuridão das estradas sertaneja.

Vista como a casa de Deus, a Igreja é um local onde os Penitentes têm a oportunidade de habitar no sagrado. As capelas e santa-cruz de beira de estrada são muito visitadas pelo grupo, por ter sido nestes locais que pessoas morreram num momento triste. São essas almas que carecem de maior atenção e penitência. Para livrar do sofrimento do purgatório, torna-se eminente a obrigação de penitenciar na terra. O cemitério, além das cruzes e túmulos, representa também o local habitado pelas almas das pessoas que ainda não conseguiram encontrar o caminho da luz e estariam atribuladas pelo mal. Por esse motivo, o campo santo do município sempre é o ponto final da marcha sacrificial.

E assim, durante a Quaresma, vivos e mortos perambulam pelas estradas de Sergipe. Essa descrição tenebrosa não é estranha para o sertanejo, homem curtido pelo sol e alimentado pela fé no sagrado. A crença na existência das almas ainda é algo pertinente no interior sergipano. São inúmeras as lendas que retratam a visão da alma de um ente querido ou até mesmo de algum desconhecido. Para o fiel, essas almas são as mais necessitadas e principal alvo de rezas dos Penitentes nas capelas, santa-cruz de beira de estrada e cruzeiros. Orai por nós!

Fonte: Artigo “Caminhando com as almas: A alimentação das almas no agreste sergipano”, escrito pelos acadêmicos M. C. V. Borges, J. C. Maurício, M. F. J. Santos, da Faculdade José Augusto Vieira.